Margeando as experiências estéticas pelas ficcionalizações narrativas

Por Herasmo Braga


Pablo Picasso. Mulher lendo.


 
Entre os diversos aspectos que revelam a precarização nas formas de se perceber o mundo ao redor encontra-se nos processos de incomunicabilidade em voga. Cada vez mais nos silenciamos pelas imagens, cada vez mais nos virtualizamos por meio de repetições, cada vez menos interagimos por ações dialógicas, cada vez menos apreendemos os sentidos. Isso não são traços pessimistas, mas simples descrição do que nos cerca. Precarizar as ações e efeitos interpretativos com perdas dos sentidos é comprometer a própria existência do ser.
 
Umberto Eco em Sobre a Literatura enuncia-nos a seguinte observação: “Os textos literários não somente dizem explicitamente aquilo que nunca poderemos colocar em dúvida, mas, à diferença do mundo, assinalam com soberana autoridade aquilo que neles deve ser assumido como relevante e aquilo que não podemos tomar como ponto de partida para interpretações livres”. Com base nestas primeiras observações de Eco paira uma assertiva que não se deve perder: interpretar não é relativizar!
 
Desse modo, alguns dos elementos que os textos literários trazem de maneira explícita centram-se nos sentidos. Assim, sentir o texto não é divagar, falsear, e sim relacionar-se; compreender a partir deste ponto os mundos refratados que se fazem presentes no instante do contato com a vivência leitora; ater-se a cada experiência vivenciada pelas linhas desses mundos nos quais se imersa em diálogos produtivos, desenvolver a forte capacidade de discernimento para com ela apoiar-se ao relevante, ao que acresce em sentidos.
 
Neste ato, também refletir sobre a linguagem é perceber o óbvio, como quando se trata de questões relacionadas ao uso dela que não tem a mínima possibilidade de ser particularizado. Por exemplo: todo texto será sempre a memória de outros textos. Destarte, crer-se original, individualizado é ato alienante e até mesmo desvario, que encontra respaldo entre muitos.
 
Quando Aristóteles, na sua Poética, nos distingue sobre as narrativas, na qual uma aborda o que de fato aconteceu, a histórica, no caso, a outra, aquilo que poderia acontecer, a poética, ao nos debruçarmos sobre essa sutil e significativa diferença, notemos que o fato em si, enquanto apenas sentido factual em si, não apresenta tanto peso, pois os maiores feitos consistem em, primeiro, ter algo acontecido para que o testar diferenciador entre as propostas históricas e ficcionais possa cada uma atuar dentro das suas margens, dos seus limites.
 
Logo, não haver confusões e distorções que coloquem em xeque os limites interpretativos da realidade pragmática a todos concedidos, e o potencial imaginário narrativo a todos permitidos, sem a miscelânea comprometedora de ausência de parâmetros para concepções tidas como verdades, as ficcionais, e as mentiras quando tentam sobrepor e desconsiderar o fato atribuindo relativações mal-intencionadas com finalidades questionáveis.
 
Voltando ao ponto, o fato apenas como fato no âmbito descritivo não traz toda a sua potência, pois o que acaba tendo os seus maiores desdobramentos e ressonâncias são as representações atribuídas e desenvolvidas a partir dele. É sob a égide destas integralizações adicionadas nas subjetividades que o fato terá os seus efeitos dilatados e evidenciados. Nessa lógica, é na presença destas representações que estarão as ações cognitivas sendo realizadas.
 
Ao acrescentarmos as referências estéticas oriundas dos textos literários, esse acercamento dos efeitos imaginativos utilizados para o desenvolvimento da intriga, mesmo quando tomado algum contexto histórico traumático ou mesmo sinalizador de transformações sociais, essa construção verossímil irá promover novas significações nos sujeitos receptivos aos textos ficcionais. Isso ocorre por conta das representatividades, que são mediadas pelas mimeses, que, na versão aristotélica e no seu mundo, que é o da verossimilhança, irá de fato ter um compromisso com a verdade, mas não distorcendo-a, e sim potencializando os sentidos, levando para além do aparente.
 
Com esse suporte de entendimento, nos deparamos com a ideia de Gaston Bachelard, em A poética do espaço, quando nos enuncia: “A arte é então uma reduplicação da vida, uma espécie de emulação nas surpresas que excitam a nossa consciência e a impedem de cair no sono”. Assim, é neste átimo que passamos melhor a nos situar diante do texto literário e os seus sentidos de potências que imergem em camadas cada vez mais profundas das nossas subjetividades, acentuando as nossas sensações e percepções. Inclusive, o sentido de validação do sentido de estética, que foge ao conceito limitador que alguns “homens de parca imaginação” se equivocam ao relacioná-lo com uma espécie de elitização pelo viés da exclusão, quando o significado próximo das suas acepções primárias condiz com o ato de promover e experimentar sensações, percepções diante das obras, para que elas possam agir nos indivíduos e desenvolver ressignificados.
 
Interpretar, sentir, apropriar-se das experiências presentes nos textos literários é traçar o percurso do conhecer-se, do apreender o quão imersos estão os indivíduos em meio às narrativas vivenciadas, ficcionalizadas. Do mesmo modo, o tanto que nos distanciamos dos entendimentos dos processos de constituição do ser e da compreensão do mundo pelo devido interpretar.
 
Destarte, a Literatura acaba por ser, junto com as demais artes, o despertar dos danos causados por essas esterilizações da constante homogeneização de tudo. Por esse motivo, alguns procedimentos adotados em relação à Literatura não são apenas injustificáveis, mas até mesmo incondizentes com a própria vivência do texto literário. Podem-se destacar as generalizações ainda hoje presentes de tudo ser visto ou percebido como Literatura. Até mesmo quando se dispõem como sinônimo de conjunto de obras de determinadas áreas específicas como literatura médica, literatura jurídica e por aí vai.
 
Outro ponto pueril é na própria definição do que venha a ser Literatura. Alguns atribuem conceitos limitadores e até mesmo com ares definitivos. Outros aplicam os relativismos que não produzem sentido elucidativo algum sobre ela. Outros tantos associam-na a exercícios práticos do cotidiano como passatempo, momentos de deleite, instâncias para descansar a mente, entre tantas outras superficialidades. Pior do que então não se ter um mínimo de consciência sobre o que vem a ser o texto literário e os seus múltiplos significados oriundos de conjuntos de saberes singulares, reside no ato do não saber interpretar.
 
Padronizou-se que interpretar é apenas extrair informações do texto e atender as necessidades interrogativas sobre ele. Nessa ação não se leva em conta nem mesmo o discernimento hermenêutico de como proceder a essa atividade de compreensão. Interpretam-se conteúdos alegóricos de maneira literal, os de conteúdo literal, de forma figural. Os topológicos, de maneira anagógica. Nisso residem diversos tipos de equívocos e de não compreensão mínima sobre os textos. Ao nos depararmos com os oriundos das obras literárias, somam-se essas distorções interpretativas com a incompatibilidade de leituras dos gêneros. Assim, leem-se poesias como se fossem contos, crônicas como se fossem romances, romances são entendidos como poemas, e vão se sucedendo as diversas complicações no percurso de realizar-se com um texto literário. A catarse neste cenário será de menor intensidade, a imaginação, distante das suas potencialidades, se é que se será possível chegar a algo com tamanhas precarizações.
 
Ao se analisar a receptividade dos textos literários, algumas ideias necessárias que contribuem fortemente para a melhor compreensão e foram formuladas por grandes pensadores da linguagem e sua integração na formação do tripé, em que temos o autor, o texto, e tão importante quanto os outros dois, o leitor, como Hans-Georg Gadamer, Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser, acabam também tendo os seus conceitos fundantes — para melhor avaliação nas observações nestes processos integradores do autor, texto e leitor — comprometidos pelas deturpações das suas ideias. Para não se expandir sobre os inúmeros desvios, toma-se a concepção de leitor estético.
 
Os apressados de plantão irão se debruçar com o esboço de definição, sendo o leitor das grandes obras literárias, ou como se atribui hoje, de maneira injusta e pejorativa, o leitor canônico. Portanto, será o leitor apto a investir tão somente nas denominadas obras clássicas da Literatura. Não se faz o mínimo exercício de refletir, por exemplo, os sentidos que são tomados pela expressão estética desde as suas primeiras manifestações e que ao longo da nossa tradição histórico-cultural, oriunda fortemente da Grécia antiga, constitui-se no nosso imaginário social e de entendimento conceitual.
 
Sendo assim, dever-se-ia tomar o leitor estético como sendo o leitor que sente, percebe as dimensionalidades culturais, imaginárias, tradicionais, dialógicas, históricas e das subjetividades humanas presentes nas linhas ali resultantes de compartilhamento de experiências que atravessam e atravessaram o tempo do átimo da sua formulação até a chegada na reconfiguração do leitor.
 
Nesse contato interativo estético é que as sensações dos textos são somatizadas e com ganhos significativos entre todos os envolvidos. Ao nos debruçarmos sobre a escrita de Marcel Proust nos seus volumes de Em busca do tempo perdido, nas diversas manifestações memorialistas ao longo da obra, foram nas narrativas despertadas por objetos. As ações do passado do narrador Marcel que se encontravam adormecidas vieram à tona por meio dos elementos como os campanários, as catedrais, as árvores, que produziram nele imagens que lhe despertaram sensações que, quando foram vividas, não ficaram compreendidas, mas quando ativadas, essas memórias e as sensações revividas com intensidade passaram a fazer sentido. Isso é ser um leitor estético. É aquele que se revela pela imersão do texto ora vivenciado.
 

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