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Jean Genet. Foto: Hulton Deutsch |
Quase desde o momento em que viu a
primeira luz, a existência de Jean Genet foi marcada pela marginalidade. Filho
de mãe que o entregou para adoção logo após o nascimento e posteriormente
adotado; fugiu do internato de formação profissional — para onde foi encaminhado
— antes de completar catorze anos, feito que o leva à reclusão na detenção de
menores; acusado de roubo e imoralidade; viandante pela Europa, Genet construiu
em
Diário de um ladrão (sua autobiografia publicada em 1949) um
personagem digno de entrar de vez na história da literatura, e um universo no
qual deixaria uma marca indelével, composto por lindos meninos, criminosos,
sexo e morte.
Mas se em
Diário de um ladrão,
como Juan Carlos Onetti disse uma vez sobre Céline, o autor “aceitava fissuras
e confessava”, deixando cair ao passar algumas gotas de ternura balsâmica no
coração dos leitores,
Pompas fúnebres, o livro que nos interessa, Genet
nos deixa uma amostra de horror a cada passo.
O amante do protagonista, Jean,
foi assassinado durante a libertação de Paris, “caída nas barricadas de 19 de
agosto de 1944, pela bala de um miliciano encantador, adornado pela graça e
pela sua idade”. Uma única frase e já estamos no território de Genet, um lugar
onde o horror e o fascínio se sobrepõem. Pascal Quignard já disse isso em um
famoso livro intitulado
Le sexe et l’effroi: para que o espanto
acrescente fascínio e surja o mistério, é necessário um
fascinus. O
fascinus,
isto é, a personificação do falo na Roma antiga: o universo genetiano em seu
esplendor.
Certamente, para muitos leitores
hoje, Genet é um prato difícil de digerir. Da negação da contradição e da
necessidade de garantias que o “sujeito contemporâneo” procura com zelo
angustiado, o mistério é difícil de aceitar. “Estou embriagado de vida, de violência,
de desespero”, diz o narrador em alguma passagem de
Pompas fúnebres.
Ninguém que procure sentir-se seguro será questionado por estas confissões.
Trezentas páginas não são
suficientes para Jean Genet esgotar o duelo. “Meu ódio pelo miliciano era tão
forte”, escreve ele, “tão belo, que equivalia ao amor mais sólido. Sem dúvida, era
ele quem matara Jean. Eu o desejava. Sofria tanto com a morte de Jean que
estava determinado a usar qualquer meio para me libertar de sua memória”.
Porém, ao mesmo tempo, Jean, o
amante, protege em seu púbis os piolhos que pertenceram a Jean, o amado. O que mais
é possível fazer quando se acredita que a alma acabou com o corpo, a não ser
salvar o pouco corpo que resta, mesmo que não seja mais do que uma gota de
sangue da pessoa amada contida em um inseto.
“Quanto mais a alma de Jean está
em mim — quanto mais o próprio Jean está em mim — mais sou sensível aos delinquentes
sem grandeza, aos covardes, aos traidores.” O mal já estava desenfreado; a dor
funcionou como um amplificador. Num mundo que é o mesmo de sempre, mas
“corrigido pela dor”, não se pode amar a nobreza. “Eu matei, saqueei, roubei,
traí. Alcancei a glória!” Este é, segundo Jean, o caminho do delinquente, mas
também o do poeta, que igualmente lida com o mal, e para quem o único pecado
seria a autoaniquilação, que poria fim à mente criativa. Um caminho de perfeita
solidão.
Quem não mata, mata-se. E matar é,
além disso, a forma mais completa de possessão. “O Führer enviava os seus
homens mais bonitos para a morte. Era a única maneira de possuir todos eles.
Quantas vezes eu quis matar aqueles garotos lindos que estavam me incomodando
porque não tinha paus suficientes para foder todos juntos nem esperma
suficiente para enchê-los!”
Ora, se o caminho para a glória
consiste em destruir tudo ao redor, sem se matar, até o próprio sepultamento
como ato de masturbação final, onde está a coroa fúnebre no final desta
jornada? Qual será o caminho se, como expressa o protagonista, depois de fazermos
tudo o que fizemos, acabarmos descobrindo que os domínios do mal são tão ou
mais frequentes que os domínios do bem?
Jean (o amante) foi para o reino
do mal para ficar sozinho e encontrou uma multidão, deveria agora voltar atrás
e dedicar-se ao bem? “A morte de Jean D. me deu raízes. Finalmente pertenço
àquela França que amaldiçoei e pela qual tanto ansiava. Estou comovido com a
beleza do sacrifício pelo país”, concluirá mais tarde.
Mas não nos enganemos: é bem
possível que Jean esteja mentindo para nós, e que a frase sequer conte como
ironia. É bem possível que de tudo isso, o que se salva, como uma joia
encontrada entre lama e pedras em meio à miséria de uma cidade ocupada pelos
nazistas, não seja outra coisa senão o poema. Como aquela mensagem
criptografada em uma cena do único filme de sua vida, intitulado
Canção de amor,
que ele filmou ao sair da prisão (para a qual não voltou depois da intervenção
de Sartre, Picasso e outros intelectuais da época), onde dois prisioneiros
trocam baforadas de fumaça de cigarro através de um pequeno buraco na parede da
cela.
Uma nuvem de fumaça como única
forma de comunicação. Poesia em imagem. Metáfora das relações entre as pessoas
e metáfora, talvez, da literatura, da grandeza do texto que, passando por um
minúsculo buraco, atinge com beleza — como cada uma das frases perfeitas de
Jean Genet — o centro da garganta dos seus leitores.
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