Edgardo Cozarinsky

Por Maya González Roux


Edgardo Cozarinsky. Foto: Sophie Bassouls


 
Edgardo Cozarinsky morreu em sua cidade natal, Buenos Aires, no dia 2 de junho. Escritor e cineasta, cineasta-escritor ou apenas escritor, já que considerava a montagem o momento-chave do cinema — “os filmes são escritos durante a edição”, dizia. É difícil lançar uma única luz sobre este pródigo contador de anedotas, de memória colossal, figura sempre em busca e aberta à experiência, aos encontros casuais, ao imprevisível, amante da noite, das sombras e das elipses, generoso com os seus interlocutores. Talvez todas estas imagens se juntem numa só: a do viajante. Sim, Cozarinsky foi acima de tudo um curioso e incansável viajante.
 
Neto de imigrantes judeus que vieram da Ucrânia e da Moldávia para a Argentina no final do século XIX, Cozarinsky nasceu em 1939 (talvez dois anos antes, mas essa era uma anedota que ele reservava para os íntimos). Na juventude, ávido pelas novas ondas do cinema, foi um grande leitor de Cahiers du Cinéma. E, claro, de Jorge Luis Borges: o seu magnífico Borges em /e/ sobre cinema é um exemplo do persistente interesse no cruzamento entre cinema e literatura. Por aqueles anos, conseguiu conviver com alguns membros proeminentes do círculo de Victoria Ocampo e ser colaborador da revista Sur com traduções e resenhas.
 
Durante 1966, graças a uma bolsa que obteve para realizar pesquisas sobre a obra de Ingmar Bergman, passou alguns meses em várias cidades europeias que alimentaram o seu desejo pelo cinema. Ao retornar, filmou seu primeiro trabalho no gênero; um título de difícil leitura, ou Puntos suspensivos. Esperando a los bárbaros (1971, o subtítulo pertence a um poema de Kaváfis), uma espécie de ensaio, no sentido literário do termo, que se distanciava claramente do cinema industrial e que não conseguiu ser divulgado na Argentina devido à censura. Embora muito diferentes deste, os filmes posteriores mantêm uma clara tendência para o fortuito: filmar, sustentava Cozarinsky, significava abrir-se à experimentação; um filme nunca deve ser a ilustração do roteiro, caso contrário o resultado não seria algo vivo.
 
Sempre em busca do novo, dominado pelo clima político, em 1974 deixou a Argentina e se estabeleceu em Paris. Mas isso não fez dele um exilado: não o foi, como tantas vezes disse, e nunca se reconheceu como tal. Foi aluno de Roland Barthes, a quem apresentou o ensaio “El relato indefendible” — uma brilhante defesa da fofoca como origem do romance — numa versão mais longa que a publicada e premiada em 1973 pelo jornal La Nación, e que mais tarde incluiu em seu famoso e hilariante Museo del chisme (2005).
 
Foi naquela cidade de “deslocados”, como ele disse mais de uma vez, que finalmente pôde se sentir argentino, mas um argentino que escolheu apenas os aspectos positivos e preciosos dessa “argentinidade”. A França permitia que ele permanecesse estrangeiro sem forçá-lo a se limitar a modelos ou a filmar como um cineasta francês. Mas há mais. Porque ao escolher certas características e memórias, ao recortá-las, eliminá-las e recuperá-las, criando então uma singularidade, Cozarinsky fazia uma montagem de sua própria argentinidade.
 
A liberdade que o país francês lhe oferecia e o interesse constante pelo experimental estão na origem de La guerra de un solo hombre (1981), um emblemático documentário em que acontecimentos históricos — a Ocupação da França — são narrados a partir da intimidade dos Diários de Ernst Jünger lidos por Niels Arestrup. Era então um romance “colocado em conversação” entre materiais diversos que nada tinham a ver com a “encenação” clássica. O filme, que avança como se fosse um livro feito de citações, um “livro montado”, foi o início não tanto de uma circulação mais ampla, mas de um reconhecimento por parte da crítica especializada.
 
Seguiram-se títulos com os quais participou em vários festivais internacionais de cinema: Jean Cocteau: autorretrato de un desconocido (1983), Guerreros y cautivos (1989), Bulevares del crepúsculo (1992, em francês tem um título mais sugestivo, BoulevardS du crépuscule. Sur Falconetti, Le Vigan et quelques autres… en Argentine), Portrait de Borges en Aleph (1992), Ciudadano Langlois (1995, sobre o fundador da Cinemateca Francesa Henri Langlois), Um siglo de escritores: Italo Calvino (1995), El violín de Rothschild (1996), Fantasmas de Tánger (1997), Le cinéma des Cahiers (2001), Scarlatti en Sevilha (2001), Medium (2020), ou a trilogia altamente aplaudida Apuntes para una biográfia imaginaria (2010), Nocturnos (2011) e Carta a un padre (2013), entre muitos outros.
 
Ele passou onze anos sem retornar ao seu país. Só voltou a pisar solo argentino em 1985, a convite do Instituto de Cinema. Curiosamente ou não, durante a sua estadia decidiu ficar num hotel. Nesse mesmo ano também regressou, mas na literatura, com a sua primeira ficção: Vodu urbano, com prólogo de Susan Sontag e Guillermo Cabrera Infante. O livro foi aclamado pela crítica e reconhecido como uma pequena joia inclassificável, talvez pelo seu estatuto ambíguo entre imagem e palavra, como é, aliás, o seu cinema. Embora tenha sido lida como uma “narrativa de retorno”, na verdade o desejo de Cozarinsky por movimento, viagem e peregrinação persistia, como ele repetia com frequência. Não deveria nos surpreender que a segunda parte do Vodu seja intitulada “O álbum de cartões postais de viagem”.
 
Contudo, é verdade que este primeiro regresso foi o início lento de muitos outros. O ano de 1999 foi decisivo porque o autor fincou uma bandeira, não numa terra ou num país, mas na literatura. Depois de receber um diagnóstico contundente num hospital de Paris, cidade onde sempre residiu, Cozarinsky decidiu que não deveria perder mais tempo e começou a escrever, ainda no hospital, as primeiras histórias que compõem A noiva de Odessa (2001). A partir desse momento, não parou de escrever e publicar textos de beleza incisiva como El pase del testigo, El rufián moldavo, Palacios plebeyos, Tres fronteras, Maniobras nocturnas, Lejos de dónde, Blues, La tercera mañana, Dinero para fantasmas, En ausencia de guerra, Disparos en la oscuridad, Dark, En el último trago nos vamos, Los libros y la calle, Variaciones Joseph Roth, entre muitos outros. Quase todos os títulos partilham a predileção do autor pela forma breve e por uma escrita sobretudo intuitiva — como o seu cinema — que, ao cultivar a contemplação, dispara em várias direções a partir de encontros fortuitos ao estilo do seu admirado W. G. Sebald.
 
Judeu da diáspora, como se definia — e defensor da causa palestina — só se reconhecia como tal fora do seu país, viajando. Todas as cosmopolizes o seduziram e despertaram os seus sentidos, como Buenos Aires. Cozarinsky foi uma testemunha sensível do século XX que mergulhou no ritmo das grandes cidades, captando a sua pulsação. Despediu-se escrevendo estes versos: “Lembra-te de mim, murmura o pó / e o vento o dispersa”. Depois de tudo, e mais ainda se o desejo de movimento do viajante persistir, a escrita, a tradução e a memória são outras formas e desafios de viagem. 


* Este texto é a tradução livre de “Edgardo Cozarinsky (1939-2024)”, publicado aqui, em Letras Libres.

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