Por Alejandro Zambra
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Vincent van Gogh. Natureza-morta com prato de cebolas (1889). Museu Kröller-Müller. |
É difícil ler a correspondência
alheia sem pensar nas próprias cartas. Minha geração foi a última que escreveu
e recebeu cartas. Só algumas, muito poucas, sobreviveram às mudanças.
O que buscamos nas cartas alheias?
Segredos, revelações, detalhes? “Se a letra sair torta é porque bebi muita
cidra esta noite”, escreve Sylvia Plath à mãe. “Te digo que estou triste. Te
digo que estou só. Te digo que estou morta. Preciso de um ataúde e de um
discurso ridículo”, lemos em uma atordoante carta de Violeta Parra a Gilbert
Favre.
Às vezes as revelações não
aparecem. A correspondência entre Mishima e Kawabata é, por exemplo, estranhíssima.
Durante longas passagens presenciamos nada mais do que uma incansável troca de
cortesias. Mishima manda um salmão e Kawabata responde com bocados de castanha
e misteriosas palavras de alento: “Diga sua mãe o que quiser, sua escrita é
magnífica.” Mishima confessa a seu mestre que a Disneylândia lhe pareceu o
lugar mais divertido do planeta, e os leitores graciosamente perdem tempo
imaginando o hipercinético Yukio pregado no alto de uma montanha-russa.
Por esses dias estou lendo as
cartas que Julio Ramón Ribeyro enviou a seu irmão Juan Antonio. Bryce Echenique
descreveu esta correspondência como “o testemunho de um dos mais intensos e
lindos exemplos conhecidos de amor fraternal”, o que poderia nos fazer pensar
que o livro coleta reflexões profundas sobre os vínculos familiares, mas Bryce na
verdade alude à cumplicidade absoluta que se dá entre os irmãos. Não são cartas
necessariamente emotivas; são cordiais e carinhosas, mas por vezes muito
pragmáticas, pois Ribeyro pede a Juan Antonio — de Madri, Paris ou Berlim,
entre outras cidades — todo tipo de favores. Tampouco se trata de cartas
“literárias”, longe disso, ainda que Ribeyro confie ao irmão pormenores dos
livros que escreve ou planeja escrever. Particularmente belas são as rigorosas
e entusiasmadas cartas em que relata suas primeiras ideias sobre as cidades que
vai conhecendo: de súbito parece que Ribeyro viaja apenas para poder contar ao
irmão como é o mundo.
Nelas reconhecemos, aliás, a mão
de um grande escritor. Quem fala sem dúvida é o autor de
Só para fumantes,
este conto extraordinário que Ribeyro escreveu só para nós. Assim começa uma
carta de 1958: “O que seria de mim se o cigarro não tivesse sido inventado? São
três da tarde e já fumei trinta. Acontece que tenho escrito cartas e para mim
escrever é um ato complementar ao prazer de fumar.” Em uma mensagem posterior
Ribeyro se despede por meio de um prodigioso corolário: “Me resta um cigarro,
por isso dou por encerrada esta carta.”
É certo que Ribeyro conhecia esta
frase de Paul Léautaud: “Eu gosto mesmo é da literatura escrita como se
escrevem as cartas.” Léautaud apontava para um estilo, para o estilo da
necessidade. Ao ler a correspondência alheia buscamos uma zona de necessidade
frequentemente ausente na ficção. Nada de narradores vociferantes ou
personagens insólitos: vez por outra é bom ficar alegremente parado nos degraus
que antecedem a literatura.
Abril, 2009
* Tradução de Guilherme Mazzafera. O
texto “Correspondencia ajena” encontra-se compilado no volume No leer
(Editorial Anagrama, 2018).
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