Boletim Letras 360º #594
Ronaldo Correia de Brito. Foto: Samuel Macedo |
A partir de uma ligação
telefônica do ditador russo a Boris Pasternak, Ismail Kadaré investiga as
relações entre arte e política, em um trabalho que dialoga diretamente com sua
experiência pessoal.
Um ditador na linha evoca o
suposto telefonema de Stálin a Boris Pasternak, em junho de 1934, que deu
origem a rumores e interpretações que contribuíram para enfraquecer ainda mais
a imagem do grande escritor russo. Ismail Kadaré explora as versões factíveis
da ligação a partir de relatos de testemunhas, repórteres, biógrafos,
escritores como Isaiah Berlin e Anna Akhmátova, e até arquivistas da KGB. À
primeira vista, tem-se a impressão de que o livro se baseará na relação entre
os interlocutores, porém Óssip Mandelstam — poeta russo nascido na Polônia,
morto num campo de prisioneiros pelo governo stalinista em 1938 — assume papel
central como representante dos vários autores que escreveram sob a sombra de
regimes ditatoriais. Ao entrelaçar as relações entre poder, política e criação
artística, esta obra é tanto um sofisticado exercício literário quanto uma
tentativa de compreender como a arte e o autoritarismo se constroem à vista um
do outro. Publicação da Companhia das Letras; a tradução é de Bernardo Joffily. Você pode comprar o livro aqui.
Este romance multifacetado, construído a partir de uma soma de
narrativas, palavras e imagens, é uma investigação fascinante sobre o
desaparecimento da cultura, da memória e de idiomas indígenas e sobre os limites
mais distantes que a linguagem pode conceber.
Tais desaparecimentos desvelam também os perigos da globalização e os
lugares ocultos na América Latina que ainda resistem a ela. Julio Gamboa é um professor universitário
desiludido que há anos deixou seu país natal, a Costa Rica, para se estabelecer
nos Estados Unidos. Certo dia, recebe uma convocação póstuma de uma
ex-namorada, a renomada escritora britânica Aliza Abravanel, para que edite o
romance que ela escrevia ao morrer, enquanto travava uma longa batalha contra
uma doença neurológica. Segundo instruções da própria Aliza, Julio é a única
pessoa capaz de realizar essa tarefa, bem como de solucionar os enigmas
presentes no manuscrito, ainda que os dois tenham se visto pela última vez há
mais de trinta anos. Gamboa
segue para a colônia de artistas onde Abravanel viveu os últimos dias, no norte
da Argentina, e, ao se dedicar à leitura do complexo texto e dos relatos sobre
Nueva Germania — a comuna antissemita fundada pela irmã de Nietzsche no
Paraguai, no fim do século XIX —, envolve-se em uma série de histórias
interconectadas de perda, o que o leva de volta à Guatemala, onde ele e Aliza
se separaram. Será que essa jornada fortuita poderá oferecer a Julio a chance
de acertar as contas com o passado? Austral é publicado
pela editora Instante; a tradução é de Bruno Cobalchini Mattos. Você pode comprar o livro aqui.
Chegada ao Brasil de uma nova
obra da escritora portuguesa Ana Margarida de Carvalho.
Dois homens se encontram numa
estrada do Alentejo, em Portugal, perto da fronteira com a Espanha, de onde
ecoa a guerra civil. Dirigem-se para um destino comum, mas cada qual com o seu
fardo: um, carrega o peso da vingança; o outro, uma carga de azeitonas. Entre
dois entardeceres, a narrativa avança, sinuosa e inexorável, como uma trilha de
formigas num terreno acidentado, uma atrás da outra. E nesse magistral
enfileiramento de enredos e personagens, a única constante é o inconsciente
gesto para proteger a cabeça ― seja da fúria do vento ou da violência humana. O
gesto que fazemos para proteger a cabeça é publicado pela editora
Dublinense. Você pode comprar o livro aqui.
A vida e os estertores dos
últimos dias.
Quando o médico da família decreta
que sua mãe idosa “não é mais autossuficiente”, Didier Eribon precisa encontrar
uma instituição que lhe ofereça cuidados contínuos. O autor do aclamado Retorno
a Reims não pode imaginar de que o dia em que ele a acompanha até a casa de
repouso será a última vez que irá vê-la. O luto leva o filósofo francês a
reconstituir a parábola exemplar de uma “mulher do povo”: da infância em um
orfanato ao trabalho como empregada doméstica e depois como operária, uma vida
angusta em um casamento infeliz. Essa despedida é uma oportunidade de contar
uma história íntima, abrindo-a para uma reflexão mais ampla, em que uma mulher
parece se tornar a imagem de um povo e nos força a aceitar a dinâmica invisível
que relega a doença e o envelhecimento às margens da existência. Vida,
velhice e morte de uma mulher do povo sai pela editora Âyiné. A tradução é
de Luzmara Curcino. Você pode comprar o livro aqui.
Um regresso a Safo para dizer
dos laços entre mulheres.
Com uma escrita fragmentada que
remete ao estilo único de Anne Carson, Selby Wynn Schwartz parte da poesia Safo
para contar uma história revigorante de mulheres cujas narrativas se entrelaçam
à medida em que forjam identidades queer e reivindicam o direito às suas
próprias vidas. Enquanto ficcionaliza os verdadeiros laços entre mulheres
reais, Schwartz nos convida a imaginar uma rede ainda mais extensa de amantes e
maneiras de amar, um mundo inteiro que nunca existiu completamente, mas que,
nestas páginas, sempre existiu. As filhas de Safo recupera e homenageia
a ancestralidade de artistas pioneiras do final do século XIX e início do
século XX, formando um emocionante catálogo de intimidades e invenções, desejos
e sonhos. Com tradução de Nara Vidal, o livro sai pelo selo Contemporânea da Autêntica. Você pode comprar o livro aqui.
O novo livro de poesia de Francesca Cricelli.
Uma velha estação termina. Um corpo transforma outro corpo. Um país é
deixado para trás. O brilho da lua de Reykjavík a iluminar um mundo que prepara
o fim do mundo. Em seu novo livro de poesia, Francesca Cricelli parte da ideia
de inventário para fazer uma apuração do que tem sob seu cuidado, quando tudo
parece já ter saído do lugar. No poema de abertura, o estranhamento de quem
perdeu algo essencial, mas ainda não por inteiro: “conheço um país, mas não o
reconheço ―/ quando em mim adentro suas tramas/ armo-me até os dentes”. E não
seria justamente essa a sensação a assombrar todos os exilados? Para Cricelli,
este é um livro-diário, “mas polido”, no qual o brilho de uma erupção vulcânica
e o branco impassível da neve de uma terra estranha assumem as formas de uma
poética que dialoga com poetas como Inger Christensen, Ida Vitali, Ana Cristina
César e Vasko Popa. E o desejo de inventariar surge do impulso de ponderação do
tempo e dos deslocamentos, que assim cria o “inventário imaterial” de uma poeta
que caminha pelo mundo reunindo íntimos souvenirs. Este é o primeiro livro que
Francesca escreve usando o português como ponto de partida, divergindo do
método em que escrita e tradução formavam um só ato. Em Inventário, a despedida
momentânea do italiano abre caminho ao português que também é lar. Daí, surge
uma voz de versos íntimos e inquisitivos, que reparte com leitores suas
transformações, internas e externas. Entre elas, a maternidade, que irrompe nos
versos de forma tão bela quanto inquieta: “é sempre violenta a reintegração de
posse de um corpo:/ costelas, aréolas/ passageiras as ocupações/ e giram as
folhas no ar/ rubor antes do gelo”. Inventário é o projeto de colheita de
alguém que sabe estar vivendo numa época em que tudo agora vibra como
prenúncio. Publicação editora Nós. Você pode comprar o livro aqui.
Uma visita ao rural no sul do Brasil no novo romance de Mariana Salomão
Carrara.
Em uma pequena roça no Sul do país, a vida segue o seu curso. O cultivo
do tabaco dá sustento a Guerlinda, Carlos e seus filhos, que dia após dia
enfrentam as oscilações da natureza, esguichando venenos e adubando as vergas
para que as folhas cresçam e atinjam a qualidade ideal. Na angústia da espera —
e em meio a investidas das poderosas empresas que dominam o mercado fumicultor
—, ainda é preciso decifrar os códigos da infância e da adolescência e aprender
a complexa linguagem do amor. Alice, a filha mais velha, deseja participar do
tradicional concurso de beleza Musa do Sol, e sua resistência ao trabalho
inflama a difícil relação com a mãe; Maria é a irmã do meio e a única que
frequenta a escola, porém vive em um mundo à parte; e Pedrinho, com seus quase
três anos, ainda não conseguiu falar, mas já participa da rotina nas plantações
entre as densas nuvens de agrotóxico, que em tudo se infiltra. Quando chega a
época da colheita, os dias se transformam e a família recebe ajuda da mãe de
Guerlinda, Elvira, que mesmo com seus estímulos e sua peculiar ternura parece
incapaz de emendar a casa tomada por silêncios incômodos e perdas iminentes.
Em A árvore mais sozinha do mundo,
Carrara joga com as formas narrativas e constrói o enredo a partir da visão de
objetos que rodeiam a casa: o espelho lusitano, na sala; a roupa de proteção,
que acompanha os filhos na lida com os defensivos agrícolas; a velha
caminhonete Rural da família; e a árvore que observa tudo do alto, no quintal
em frente à propriedade. Com uma prosa a um só tempo corrosiva e calorosa, que
destila um humanismo inabalável, eis o retrato de um país que encobre — de
norte a sul — as suas mazelas mais profundas. Publicação da editora Todavia. Você pode comprar o livro aqui.
REEDIÇÕES
Nova edição do livro que apresenta um panorama temático do teatro russo visto
pelo original prisma da paródia e do grotesco.
Conhecida por manter uma longa tradição literária, a Rússia também tem
no teatro uma de suas mais importantes manifestações artísticas. Partindo de
uma série de análises aprofundadas da obra dramática de Nikolai Gógol, fundador
de toda uma tradição satírica — em especial em suas peças O inspetor geral
(1836), O casamento (1842) e Os jogadores (1842) —, Arlete
Cavaliere, professora titular da USP, passa então a traçar a influência dessa
estética sobre a dramaturgia do teatro russo moderno. Isto se dá em ensaios sobre o percurso
artístico de Anton Tchekhov, das pequenas farsas do início de sua carreira aos
dramas tragicômicos que hoje integram o repertório universal do teatro, como A
gaivota (1896) e O jardim das cerejeiras (1904); sobre as flutuações
entre o moderno e o tradicional no teatro simbolista, com uma leitura perspicaz
do drama lírico Balagántchik (1906), de Aleksandr Blok; e sobre os usos
da dicotomia sério-cômico nos experimentos futuristas de Vladímir Maiakóvski,
ápice do teatro soviético de vanguarda. Sem restringir-se ao aspecto puramente literário dessas obras, a autora
inclui em seu itinerário crítico análises das encenações visionárias de
Stanislávski e Meyerhold, usando-as também como fios condutores de seu estudo.
A nova edição de Teatro russo,
ricamente ilustrada, traz ainda um ensaio sobre a cena russa contemporânea
centrado na obra de Vladímir Sorókin, autor da polêmica peça Dostoiévski-trip
(1997) e um dos grandes nomes do pós-modernismo na Rússia. Publicação da
Editora 34. Você pode comprar o livro aqui.
RAPIDINHAS
A continuação da saga de Dumas
1. A editora Zahar confirmou que publicará ainda neste ano o primeiro volume de O
visconde de Bragelonne, a sequência de Os três mosqueteiros e Vinte
anos depois, de Alexandre Dumas.
A continuação da saga Dumas 2.
O livro do escritor francês é o primeiro tomo de uma série composta ainda por Louise de La
Vallière e O homem da máscara de ferro, que também sairão pela mesma casa
editorial, mas ainda sem previsão de lançamento.
Reedição de Cida Pedrosa. A editora Cepe anunciou a segunda edição de Claranã, livro em que a poeta pernambucana revisita os sons da infância sertaneja: a récita dos cordéis, a toada das emboladas, as cantorias de viola.
Sergio Lima nasceu no dia 28 de dezembro de 1939, em Pirassununga, São Paulo.
Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, quando estudou
a recepção do movimento surrealista no Brasil, sua obra transita entre teoria e
crítica literárias e a poesia. Importante nome do surrealismo no país, Sergio
Lima congregou vários outros nomes da cena poética, como Claudio Willer, Raul
Fiker, Leila Ferraz, Floriano Martins, entre outros, no que ficou designado
como Grupo Surrealista de São Paulo. Entre as obras publicadas estão: na
poesia, Amore (1963), sua estreia referida por André Breton na revista
parisiense La Brèche, A festa (deitada) (1973), A alta
licenciosidade (1985) e Aluvião rei (1992); na teoria e crítica
literárias publicou títulos como A aventura surrealista (Tomo I, 1995;
Tomo II, 2010), O olhar selvagem: o cinema dos surrealistas (2008) e
O rasgo absoluto (2016). Foi o realizador da XIII Exposição Internacional
do Surrealismo, da qual resultou a revista A Phala, e da exposição
Collage: homenagem ao centenário de André Breton (1896-1996). Sergio
Lima morreu no dia 25 de julho de 2024, em São Paulo.
DICAS DE LEITURA
Na aquisição de qualquer um dos
livros pelos links ofertados neste boletim, você tem desconto e ainda ajuda a
manter o Letras.
1. Juventude sem Deus, de Ödön
von Horváth (Trad. Sergio Tellaroli, Todavia, 176p.) A crise de consciência de
um professor em meio ao ambiente sufocante do regime imposto pelo governo de
Adolf Hitler. Você pode comprar o livro aqui.
2. A segunda vinda de Hilda
Bustamante, de Salomé Esper (Trad. Sérgio Karam, Autêntica Contemporânea, 160p.)
A personagem que dá título a este romance regressa do mundo dos mortos para
transformar o passado e o presente, a sua cidade e as pessoas do entorno. Você pode comprar o livro aqui.
3. O país dos outros, de Leïla
Slimani (Trad. de Dorothée de Bruchard, Intrínseca, 320p.) Durante a
Segunda Guerra, uma jovem se apaixona por um belo soldado marroquino do exército
francês. Toda idealização amorosa, não tarda, e será convertida num drama de
solidão, tensão e opressão. Você pode comprar o livro aqui.
VÍDEOS, VERSOS E OUTRAS PROSAS
Em 2023, o Diário de Pernambuco
realizou uma longa entrevista com o xilogravurista e cordelista J. Borges.
A conversa está disponível no YouTube em dois episódios: no primeiro, o assunto
é sua formação; no segundo, a feitura da sua arte.
BAÚ DE LETRAS
No último dia de julho de 2024,
completa 80 anos da morte de Antoine de Saint-Exupéry. No arquivo do Letras,
o leitor encontra este breve perfil do autor de O pequeno príncipe. E, a
partir dessa janela, pode chegar a outras duas publicações em torno da obra e
do escritor francês.
Ainda das efemérides. No próximo dia 2 de agosto é celebrado o centenário de James Baldwin, um dos mais destacados escritores da literatura estadunidense no século passado. Marcamos a data, pinçando três textos do nosso arquivo:
a) Em junho de 2020, nosso editor
escreveu acerca do romance Se a rua Beale falasse; passava-se dois anos
da adaptação deste livro para o cinema pelo diretor Barry Jenkins — o texto está aqui.
Ainda das efemérides. No próximo dia 2 de agosto é celebrado o centenário de James Baldwin, um dos mais destacados escritores da literatura estadunidense no século passado. Marcamos a data, pinçando três textos do nosso arquivo:
Em 2012, quando a Cosac Naify publicava a edição com os contos dos Irmãos Grimm vastamente ilustrada com as xilogravuras de J. Borges, editamos esta matéria.
...
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