Por Tedi López Mills
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William Carlos Williams. Foto: Arquivo da Universidade da Pensilvânia. |
Certa vez, enquanto procurava informações sobre o poema “The Desert
Music” de William Carlos Williams na Internet, me deparei com um site curioso:
Write An Instant William Carlos Williams Poem.1 Parecia uma
grande oportunidade. Abri a página e vi que para exemplificar sua metodologia o
site utilizava um poema curto e intensamente circunstancial do poeta
estadunidense, incluído na primeira edição de seus Collected Poems de
1934:
Isto é só para dizer
Eu comi
as ameixas
que estavam
na geladeira
as quais
você decerto
guardara
para o desjejum
Desculpe-me
estavam deliciosas
tão doces
e tão frias
2
O procedimento proposto pelo site era muito simples, mas não
transcreverei aqui o resultado do meu exercício. Inicialmente, este poema de
Williams foi uma espécie de paradigma do movimento dos Imagistas. À luz deste
jogo, revela-se literalmente que se trata de uma questão de peças
intercambiáveis, talvez o exemplo mais grosseiro daquela definição que Williams
deu à poesia em 1944: “uma pequena (ou grande) máquina feita de palavras”. A
estrofe, suponho, seria o motor da máquina ou o lugar onde os significados
seriam postos em ação. Williams, desde 1923, insistia “que escrever tem a ver
com palavras e apenas com palavras e que todas as discussões em torno disso têm
a ver com palavras individuais e suas associações em grupos”.
Palavras para falar de palavras: há uma razão pela qual Williams
desencadeou uma rebelião do silêncio em queda livre através de seus próprios
poemas. A poesia não é música, disse, e acabou por equipará-la, no final de Paterson,
sua obra-prima ou pelo menos a obra mais extensa, aos passos de uma dança:
Não sabemos nada e nada podemos saber
senão
dançar, dançar para uma medida
em contraponto,
Satiricamente, o pé trágico.3
Em 1957 lançou um slogan melancólico: na ausência da poesia, tudo no
mundo morreria sem ter voz. Seguindo suas linhas, a máquina de Williams
revela-se como um dispositivo em perpétua contradição, o que a torna de certa
forma mais confiável. Em 1950, numa carta a um dos seus discípulos, ele
escreveu que havia algo errado, equivocado, nas leituras públicas de poesia:
“Ou o salão não é adequado ou as pessoas que comparecem não são adequadas; ou
talvez pareça assim por causa da vergonha mútua que surge ao tentar falar em
público de algo que, por sua própria natureza, é muito pessoal”. Ou talvez o
obstáculo seja que os poemas — e, portanto, o mundo — não geram a voz que
merecem, mas recebem apenas aquela que têm. A de Williams — gravada inúmeras
vezes — era estridente, anasalada, pouquissimamente musical; tão
deliberadamente norte-americana quanto eram gaélicas as de seu amigo Ezra Pound
ou de seu contemporâneo T.S. Eliot.
A voz fazia parte de uma ideologia e depois de uma militância. Pound e
Eliot inventaram uma entonação adaptada aos seus destinos europeus. Já Williams,
por sua vez, sempre lamentou o encantamento dos leitores e do público com o
“estilo literário” inglês. Por isso, explicou na mesma carta de 1950, não havia
ido a uma das leituras que Dylan Thomas fez na sua turnê pelos Estados Unidos
naquele ano. O público, segundo ele, não conseguia entender que a poesia
norte-americana era completamente diferente: “NÃO PODEMOS E NÃO DEVEMOS
ESCREVER ASSIM”, enfatizou em letras maiúsculas. Por um lado, havia a prosódia
da contingência (Estados Unidos) e, por outro, a da história (Inglaterra).
Williams não queria ser o ventríloquo de uma tradição alheia. “Eles [o público]
me ouvem e fogem. Eu não sou o que eles procuram, eles querem aquilo a que
estão habituados, a velha tradição, o virtuoso numa modalidade reconhecível. Querem
o que não posso e o que não vou oferecê-los.”
A figura deste drama era triangular: num ângulo Williams, nascido em
1883; no outro Pound, em 1885, e no terceiro Eliot, em 1888. O autor de Paterson
fez o ritual da viagem pela Europa em varias ocasiões, mas acabou por
permanecer nos Estados Unidos, na sua terra natal, Rutherford, onde exerceu, ao
mesmo tempo, os ofícios de médico e de poeta. Pound e Eliot seguiram rotas
centrífugas. Para Williams, Pound sempre permaneceu na linha tênue entre o
adversário e o amigo; Eliot, no entanto, tornou-se seu nêmesis. Em março de
1938, em uma carta a Pound sobre o poeta estreante Louis Zukofsky, Williams
comentou: “Tenho a impressão de que ele é muito jovem e está sob a influência
de T.S. Eliot. Eu imediatamente o impedi, avisando-o para voltar à vida se
quisesse que eu o ajudasse e para se afastar de Eliot o mais rápido possível.”
Numa outra carta de 1944, ele declarou que Eliot deveria ser punido por exercer
a pior influência na literatura estadunidense. Além disso: “A terra devastada
foi a grande catástrofe de nossas letras”
A defesa literária do território local e nacional é geralmente
mesquinha, uma vez que, na sua perspectiva, o “estrangeiro” é quase qualquer
coisa que se desvia do que já se conhece. A leitura busca uma confirmação
íntima e autorizada: isso me recorda quem sou e de onde venho.
Felizmente, a poesia de Williams superou esta estrutura elementar. Em última
análise, o seu lema sempre foi: “Compôr: não ideias, mas coisas”. E as coisas
não possuem traços de nacionalidade, a menos que se opte pelo folclore de
certos nomes. Williams atribuiu mais poderes à imaginação do que à política; no
entanto, travou uma guerra provincial: Rutherford e Paterson contra o resto da
geografia. “Levo uma vida muito sombria”, escreveu a Pound em 1936, “mas muito
completa em meu mundinho. Conheço seus odores e seus perfumes.” Segundo a sua
fé, não poderia haver nada mais universal do que o que se via da sua janela. O
poeta que vive localmente e cujos sentidos são empregados nas coisas mais
particulares é o criador da verdadeira cultura: “Eis aí o ofício do poeta e o
poeta vive onde trabalha, na sua localidade”. Pound e, sobretudo, Eliot viraram
as costas precisamente a essa terra, a essa intempérie, desprovida de
referências, que estava tão à mão. Pound pelo menos teve o pretexto da
desmesura; Eliot, pelo contrário, colocou toda a sua vontade em transformar a
máscara do inglês, do cosmopolita, na sua verdadeira face.
Por volta de 1948, Williams fez uma descoberta singular: o que se falava
e se escrevia nos Estados Unidos era outra língua, não o inglês. Numa carta
desse ano salienta: “devemos começar por afirmar que falamos (aqui) a nossa
própria língua, diferente [...] e que não é o inglês. Pois o inglês denota um
passado histórico do qual deriva a sua prosódia, que nunca poderá ser real
para nós.” O peso dessa descoberta foi esmagador para Williams e moldou a forma
de suas obsessões. Definir o que era esse idioma importava menos do que
colocá-lo perpetuamente em crise e transformá-lo numa espécie de consciência,
num olhar por cima do ombro. O Novo Mundo-Nova Linguagem serviu a Williams para
gerar uma oposição onde máquina de palavras foi finalmente colocada em operação
contra os costumes mais antigos do cânone poético. O real seria essa
estrofe-rochosa que Williams praticou: escrever e ler como experiências de uma
vertigem não romântica, não simbólica, mas imediata, dos próprios olhos ao
deslizarem pelo poema:
A descida
feita
de desesperos
e
sem conquista
compreende uma nova revelação:
o reverso
do desespero.
Para o que não conquistamos, o que
é negado ao amor,
o que perdemos na antecipação —
uma descida se abre,
infinita e indestrutível.4
Entre as palavras haveria um jogo de espelhos: fora e dentro se refletiriam
na mesma superfície e sem o menor peso histórica ou conceitual. A linguagem
nativa captada e ouvida por Williams estava ligada à materialidade das palavras
num território onde ainda não haviam criado raízes nem gerado muletas ou
inércias e onde tudo, forma e conteúdo, ainda estava por fazer. Numa outra
carta, de 1932, a afirmação contra a versificação tradicional era definitiva:
“Pessoalmente, gostaria de começar dizendo: não escreva sonetos. Esse verso
está morto, não é adequado à linguagem […] A poesia a criação de novas formas
[…] não pode mais haver uma obra séria na poesia que seja escrita com dicção
‘poética’.” As restrições foram libertadoras. Não é que Williams não tivesse a
formação cultural que permitiu a Pound e Eliot apropriarem-se de um território
alternativo aos Estados Unidos, mas sim que ele decidiu escrever ignorando o
que já sabia. Os termos da sua batalha podem agora ter um certo tom de
ingenuidade, mas isso diz respeito menos às ideias do que à veemência da sua
expressão. É difícil ressuscitar o contexto emocional em que se desenrolou a
campanha “americana” de Williams e atribuir-lhe o valor de novidade e urgência
que teve quando ele, um profeta e vanguarda do seu país, ousou afirmá-lo. No
início foi tão pessoal que parecia quase um delírio. Contudo, a nova linguagem
teve a sua epifania: os poemas de Williams, nos quais era possível ler
essencialmente o universo das coisas com uma entonação e prosódia que conceberam
o seu jardim de correspondências, a sua memória coletiva e até o
desencadeamento dos seus próprios lugares comuns.
A caricatura se esconde nas definições. No caso de “estadunidense” já
seria uma metacaricatura, onde cada generalização cria uma paródia. Por
exemplo, de acordo com Joseph Brodsky, “há uma diferença entre a forma como um
europeu percebe a natureza e a forma como um americano o faz”. E ele descreve:
o europeu sai de sua cabana no campo e encontra a cultura em pleno movimento:
uma hospedaria, um amigo e um todo historicamente nomeado; o americano, sendo
solitário, sai de seu casulo e
se vê diante de uma árvore: um encontro entre iguais. “Homem e árvore se
confrontam em seus respectivos poderes primários, livres de referências: nenhum
deles tem um passado […] Basicamente, trata-se de epiderme se enfrentando com
casca.” Na caricatura, por sua vez, espreita a sombra mais nobre de um mito
fundador. A tese — e agora persistente preconceito — do americano como uma
criatura sem história, sem densidade cultural, teve uma primeira etapa
fundamental para forjar uma espécie de contracultura. Thoreau elucidou seu
arcaico itinerário galgando o campo selvagem; Emerson, a sua filosofia, e
Whitman, a sua homenagem. Coube a Williams, entre outras coisas, suavizar o tom
da grandiloquência que ousara identificar o mundo com a primeira pessoa, a celebrar
a arcádia em cada indivíduo. Contra Whitman apontou: a poesia não é natureza; é
poesia. O que equivale a dizer tudo e não dizer nada. O mistério está na
tautologia: as coisas são o que são. E é aí que reside o poder absoluto das
metáforas.
Segundo Octavio Paz, desde o início Williams expressou desconfiança em
relação às ideias. Além de seu medo quase congênito de abstrações, suspeito que
fosse mais um conflito de autoria: queria as suas próprias ideias, não as dos
outros. Até certo ponto, Williams percebeu qualquer influência como uma doença
que precisava ser curada. Numa carta de 1932 esclareceu que “os poetas
franceses não exerceram sobre mim a menor influência”. Uma negação tão
categórica parece encobrir exatamente a condição oposta. Seja como for, a noção
de influências prejudiciais ou benéficas é tão instável que esta instabilidade
seria suficiente para a pôr em causa. Jorge Cuesta defendeu a afrancesamento da
cultura mexicana porque, afirmava, era uma manifestação completamente natural e
as acusações contrárias apenas demonstravam a pequenez da identidade
nacionalista: “Não lhes interessa o homem, mas o mexicano; nem a natureza, mas
o México; não a história, mas a anedota local.” Os embates são geracionais. Sempre há guardiões do autóctone
que denunciam as transgressões: o afrancesamento ou americanização ou a
argentinização ou qualquer versão do estrangeiro que inaugure um caminho ainda
desconhecido. Não há garantias estéticas. Às vezes, as ideias mais estreitas
abrem a porta para poemas extraordinários que são fontes de contágio incomum.
Este foi finalmente o caso
Willians. Seu “regresso ao americano” funcionou como a oficina onde cada
poema construiu uma máquina de palavras de forma autônoma e sem preservar as
cicatrizes de sua origem.
Notas da tradução:
1 É possível ler uma tradução para
o português por Beethoven Alvarez, de
“The
Desert Music”,
aqui.
2 A tradução aqui citada é de
Antonio Cicero.
3 A tradução citada é de Ricardo
Rizzo (Paterson, Luna Parque; Fósforo, 2023).
4 De Paterson, tradução
referida acima.
* Este texto é a tradução livre de
“Lá máquina del docotr Williams”, publicado aqui em Letras Libres.
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