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Mostrando postagens de julho, 2024

Não posso ficar com você: “Vidas passadas”

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Por Cristina Aparicio Há filmes que parecem construídos a partir de momentos, filmes que condensam a realidade e a fragmentam em inúmeras imagens. É o que se poderia definir como cinema postal, de slides, de páginas de um álbum de fotografias vintage que guarda memórias. Mas o que exatamente são essas imagens arquivadas? Com o passar do tempo, a única coisa que parece verdadeiramente imutável é o que as fotografias mostram. Tudo o que envolve a cena fotografada (as emoções, o que está imediatamente antes ou depois da sua captura, o que está por trás da câmera...) está sujeito à capacidade de cada pessoa fixar as coisas na memória, a toda uma subjetividade da qual depende de mil fatores psicológicos, emocionais, circunstanciais... Então o que fica, o que é real, o que sempre dura, é a imagem fixa, que funciona como um interruptor que abre uma porta para a recordação. Não é por acaso que quase não há fotografias num filme como Vidas passadas , um filme que reflete precisamente sobre o po

O voo vertical de Saint-Exupéry

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Por Bruno H. Piché Antoine de Saint-Exupéry a bordo do Caudron Simoun, 1935. Arquivo Saint-Exupéry-d'Agay.   Às vezes acontece que toda a vida de um homem, o seu significado mais profundo e último, ficam contidos num único dia. Na manhã de 31 de julho de 1944, o comandante Antoine de Saint-Exupéry decola a bordo de um desprotegido bimotor P-38 Lighting para realizar uma missão de reconhecimento, sua última missão: sobrevoar em alta altitude a rota Grenoble-Chambéry-Lyon. Vista do ar, a paisagem parece ainda mais familiar, quase cativante; não pôs os pés em território francês nos últimos quatro anos. A ocupação alemã se prolongava, o país está dividido entre o regime colaboracionista de Vichy, a resistência e um governo no exílio. Os ânimos declinam. Antes de partir, Saint-Exupéry escreve uma carta a um amigo: “Se eu for abatido, não me arrependerei de absolutamente nada”. Para travar a guerra, as forças conjuntas da França e dos Estados Unidos preferem prescindir das emoções dos m

Os ossos de Lord Byron

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Por Christopher Domínguez Michael   A Mariana Enriquez   Byron é uma atmosfera, um clima, um estado de espírito, mais do que um verso, ou um certo conjunto de versos.   Exclama-se: Byron! diante de uma situação, um contraste de paixões, uma saída sarcástica ou irônica, como em Werther os apaixonados, diante de um aspecto especial da natureza, exclamavam Klopstock! Mario Praz, La casa de la vida (1958, 1979) Você diz que seria melhor, talvez, traduzir os poemas curtos Byron: O corsário , O Giaour etc. Sem dúvida valerá a pena; mas acho que também é ruim. Você tem razão: Byron não é tão imortal quanto nos convém. Carta de Juan Valera a Marcelino Menéndez Pelayo (1878)   Lord Byron, desenho de Henry Meyer, 1816 Entre as numerosas epígrafes que poderia escolher para encabeçar este ensaio sobre o bicentenário da morte de Lord Byron, creio que não há duas mais antagônicas do que a exclamação do antiquário neoclassicista Mario Praz e a objecção sincera de Juan Valera, romancista e excelen

Seis poemas de Robert Walser

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Por Pedro Belo Clara Robert Walser. Foto: Carl Seelig   O LONGE   Eu queria estar parado, mas o longe chamava; passei por árvores escuras, sob as árvores escuras quis parar um instante, mas o longe chamava; passei por prados verdes e nesses prados verdes eu queria parar, mas o longe chamava; passei por casas pobres, e junto de uma delas eu queria parar, contemplando a pobreza; e enquanto o fumo, calmo, sobe ao céu, o que eu queria era ficar parado, longamente. Ia dizendo isto e ria, e o verde dos prados ria comigo, e o fumo ia subindo, sorridente, mas o longe chamava.     FORA DO MUNDO   Faço o meu caminho a sós, leva-me longe, bem fundo; depois, sem um som, sem voz, estou só e fora do mundo.     FILOSOFIA A MAIS   Sempre a subir e a descer, levo uma vida assombrada. Chamo por mim sem parar e fujo dessa chamada.   Vejo-me em poses de riso, depois em tristeza funda, como um orador sem siso; e tudo isso se afunda.   Em minha vida, quero crer, nunca nada fez sentido. Eu nasci para me per

Boletim Letras 360º #594

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Ronaldo Correia de Brito. Foto: Samuel Macedo LANÇAMENTOS   O novo romance de Ronaldo Correia de Brito recria um Brasil mitológico, onde a vontade dos homens se impõe pela força .   Em  Rio sangue , histórias e lendas se mesclam — como afluentes de um rio — a uma saga familiar entremeada por embates de poder e paixões. José e João são ainda crianças quando desembarcam no Recife. A família, do norte de Portugal, deixou tudo para trás com a intenção de fazer dinheiro na colônia. José, o mais velho, será ordenado padre contra a própria vontade. Vacilante na fé, é silencioso e contido, diferente do irmão, atrevido e violento. A oposição entre os dois dá o tom desta saga, onde se entrelaçam gerações e etnias. Por meio de uma narrativa épica, intensa e luminosa como o sol do sertão,  Rio sangue  se desdobra em histórias e lendas que integram a marca da oralidade e do imaginário. O sertão de Correia de Brito é um espaço que transcende a realidade. Ele reinventa sua geografia e o habita com di

Osman, um anchietano

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Por Eduardo Galeno   Uma citação do LP de 1968 de Caetano Veloso, a que abre o álbum:   “Quando Pero Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis e verdejantes, escreveu uma carta ao rei: tudo que nela se planta, tudo cresce e floresce.”   E é justo o Anchieta desse texto que era um ajuste entre formações de línguas distintas, onde tudo cresce e floresce (segundo Osman Lins, em 1978, num de seus ensaios mais contundentes). Espanhol de nascimento, indo defender o antigo Estado português no desespero da Contrarreforma, mas iniciando a nossa epopeia nas letras, José de Anchieta marca indubitavelmente, como figura, uma chancela que somente depois, na prova do século XX, iria subir às nossas cabeças.   A interpretação de Lins em relação ao padre é tão óbvia que fica difícil dizer. Mas, resumidamente, era essa: existe algo de messiânico em cada pessoa que escreve, em cada escritor, em cada tropel dos significados. Porque a circunstância seja diferente para nós — condici

Jean Genet, pântanos de horror e fascínio

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Por Mercedes Alvarez Jean Genet. Foto: Hulton Deutsch Quase desde o momento em que viu a primeira luz, a existência de Jean Genet foi marcada pela marginalidade. Filho de mãe que o entregou para adoção logo após o nascimento e posteriormente adotado; fugiu do internato de formação profissional — para onde foi encaminhado — antes de completar catorze anos, feito que o leva à reclusão na detenção de menores; acusado de roubo e imoralidade; viandante pela Europa, Genet construiu em Diário de um ladrão (sua autobiografia publicada em 1949) um personagem digno de entrar de vez na história da literatura, e um universo no qual deixaria uma marca indelével, composto por lindos meninos, criminosos, sexo e morte.   Mas se em Diário de um ladrão , como Juan Carlos Onetti disse uma vez sobre Céline, o autor “aceitava fissuras e confessava”, deixando cair ao passar algumas gotas de ternura balsâmica no coração dos leitores, Pompas fúnebres , o livro que nos interessa, Genet nos deixa uma amostra d

Caminhos que se cruzam em Istambul

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Por Ernesto Diezmartínez Vencedor do prestigiado prêmio Teddy 2024 em Berlim (voltado para o melhor do cinema com temática LGBTQ+) e depois vencedor do prêmio similar Maguey no último Festival Internacional de Cinema de Guadalajara, Caminhos cruzados (Suécia, Dinamarca, França, Turquia, Geórgia, 2024), quarto longa-metragem do cineasta sueco de origem georgiana Levan Akin está programado para aparecer na plataforma de streaming Mubi dentro de alguns meses.   Tal como no seu filme anterior, E então nós dançamos (2019) — que esteve na competição de Cannes no mesmo ano de lançamento e ganhou vinte prêmios ao redor do mundo — em Caminhos cruzados Levan Akin continua no mesmo percurso desafiante e provocador, pelo menos no contexto cultural da Geórgia, país para onde seus pais partiram quando ainda fazia parte da extinta União Soviética.   Embora Akin tenha nascido, sido criado e educado na Suécia, ele nunca quis se distanciar de suas origens culturais, por mais que E então nós dançamos