Trilogia, de Jon Fosse

Por Eduardo Galeno


Jon Fosse. Foto: Morten Krogvold


Trilogia, de Jon Fosse, é publicado pela primeira vez no Brasil pela Companhia das Letras. Traduzido por Guilherme da Silva Braga diretamente do norueguês, o livro, do premiado com o Nobel de Literatura de 2023, conta com três novelas em que três pontos distintos, mas não excludentes, demarcam a história de amor de Asle e Alida. Asle e Alida, que rodam e rodam em torno de um ponto: o amor.
 
Minhas impressões e percepções ao ler Trilogia foram as mais emocionalmente difusas. De um lado, esse apelo ao cacoete onírico na narrativa — que não segue um padrão definido, requinte minimalista; do outro, a circunstância em que tudo parece girar até o leitor ficar embebido de náusea (quem é marinheiro de primeira viagem teria, a meu ver, problemas). Mas pontuemos: faz parte de uma chancela única. Tanto a escrita despreocupada com formações sintáticas maiores e melhor elaboradas quanto a retórica pegajosa das novelas (que formam um romance) apresenta uma via. Esse caminho é, adicionado ao do amor, o do encontro.
 
Asle e Alida são dois jovens pobres — adolescentes, na verdade — que esperam um filho na fria cidade de Bjørgvin, costa norueguesa. Alida, que tem problemas relativos à família, conhece Asle. Numa de suas performances musicais — gênio herdado do pai —, Asle conhece Alida. É assim que a união entre os dois começa, assim que Sigvald, filho, também começa. Assim que uma trilogia é estabelecida inicialmente.
 
Os anos passam. Bem, eles vão, depois disso, cuidando das intempéries, da vida errante, em meio a todos os casos e acasos que ela tem. Eles têm o filho e levam esse curso, apesar de todas as dificuldades. Tudo é duro, parece, para eles. Mas tudo também é leve, fino, macio — a partir do momento em que essas construções naufragam na certeza do encontro entre ambos, num afeto retentor (porém, sem aquele gosto de felicidade que estamos habituados).



Nessa vacilação, quase todas as nuances são como provas: a pouca relação que eles têm com as pessoas leva a um exame de dramaticidade que persiste na narração de Fosse (um ponto crucial, que ocorre no segundo ato do livro, demonstra o que tento dizer). A volição da letra fosseana eleva o simples ao complexo, embora o complexo esteja sendo derramado numa simplicidade de dizer. Por isso, todo movimento nesse romance é um movimento triplo. Fosse, livro, público. Asle, Alida, o pequeno Sigvald. Três.
 
Três que são Dois, Dois que são Um. É um esquema básico, na verdade, que pressiona as três partes constitutivas do livro: a + b + c. Vigília + Os sonhos de Olav + Repouso. Onde as coisas são possíveis por serem correlatas (os problemas familiares de Alida que ressoam dentro do seu interior e exterior, o gesto trágico na ação de Asle), essas mesmas coisas podem virar uma espécie de monumento de interpretação. É como ter em mãos um livro de tese: Fosse quer provar algo que ele acredita ser verdadeiro.
 
O que é: que o amor e o encontro são invencíveis, fazendo o tempo e as noções de vida e morte, como conhecemos, serem jogados na ala da piada. É engraçado que o real vira irreal e o irreal vira real em Trilogia. Em outros termos, Fosse faz da literatura — como toda experiência após Baudelaire — um campo de discussão. Essa discussão é estendida até o cume de uma investigação sobre, principalmente, o poder que um acontecimento tem sobre nós.
 
Existe uma incorporação muito nítida em Trilogia. É um corpo aparecendo por intermédio de um ponto nuclear: a música que ressoa nos ouvidos, na primeira vez em que se corresponderam, é a mesma música de desespero quando da última vez. Eis que chega um devir insuperável que resiste a qualquer intrusão, amparado pela sobredeterminação da realidade, seus vacilos, seus desgarres, em resumo: a crueldade do real. No romance de Fosse, como se fosse um sonho, tudo é possível (indo do caso da simultaneidade eventual e chegando na perfuração ontológica). Lendo, marquei algumas vezes uns bons pontos que me fizeram ter essa sensação:
 
Eu e você, diz Asle
E o pequeno Sigvald, diz Alida
 
Nós três, diz Alida
Você, eu e o pequeno Sigvald, diz Asle
Nós três, ele diz
 
e eles estão juntos como um pássaro em que cada um é uma asa, e assim juntos os dois voam pelo céu azul e tudo é azul e leve e azul e branco
 
Na seção sobre como o amante se torna semelhante ao amado, Ficino expôs de maneira sucinta e rápida, mas não menos clarificante, a unidade das imagens entre os seres que se amam. “O pensamento exagerado”, diz ele, “move os espíritos interiores e neles desenha a imagem da coisa desejada.”¹
 
Acredito que esse é o caso de Alida e Asle, de modo que, mesmo nos imbróglios que os separaram², há ainda um toque — referente às imagens — que nunca desfaleceu. Há sempre um toque de obsessão nesses casos. O enunciado primário não é medido em palavras, mas na própria incorporação física de um no outro.
 
e ele sente que o amor de Alida flui sem parar para dentro dele e esse amor transborda e mistura-se à música dele e transborda por tudo o que cresce e respira
 
e Alida pensa que ela e Asle ainda são namorados, ainda estão juntos, ele com ela, ela com ele, ela nele, ele nela, pensa Alida
 
O estágio é: ele(a) é mais próximo(a) de mim do que eu mesmo(a). A fusão triunitária rende naquilo que permanece indiferente às durações do mundo. Vendo a conversão de Fosse ao catolicismo, creio que aí reside a raiz explicativa do tratado pelo número de fusão tripla (sendo Sigvald, o filho, o resultado da fusão dupla). Fosse não fala apenas de amor e encontro. Amor e encontro formam pano de fundo místico para outro nome: eternidade. O livro de Fosse é intimista e planta um testamento sobre sua condição enquanto ser que muda.
 
Me vem ao pensamento que Fosse interpreta a sua inquietação, mesmo que não conscientemente, sobre o mistério da Trindade. “Crede-me: eu estou no Pai e o Pai em mim” — está em João (14:9), bem como, pelos exemplos que dei acima, está no romance aqui resenhado. Não tem nada de exagero, portanto, em dizer que a propagação narratológica de Trilogia se refere a uma causa que circula na espiritualidade cristã, especificamente a que apela ao ágape e ao Spiritus Sanctus como mediação.
 
Para quem tem paciência com esse discurso, resta a leitura.


______
Trilogia
Jon Fosse
Guilherme da Silva Braga (Trad.)
Companhia das Letras, 2024
200 p.
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Notas
1 Apesar de estar deslocado em outro sentido n'O livro do amor, de Marsilio Ficino, o comentário é extremamente preciso e cabe no texto.
 
2 A separação, eu acho, é apenas aparente, superficial. A essência fica noutra questão: o que realmente importa. Tendo os nomes trocados ou não, permanecem os mesmos.
 

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