Sloterdijk e os aspectos da modernidade

Por Herasmo Braga


Peter Sloterdijk. Foto: Daniel Biskup


 
Peter Sloterdijk na trilogia Esferas, para muitos considerada sua magnum opus, o homem sempre teve a necessidade de viver amparado em algo estável, consolidado, duradouro, e por conta disso elaborou ao longo da sua existência diversas camadas protetoras, constituidoras de imunidades para si, para que nada estivesse fora do controle ou da sua compreensão. Desse modo, elaborou, desenvolveu diversas cosmologias para que tudo em torno de si tivesse algum sentido e desse a necessária comodidade terrena. E assim, ao longo do tempo se firmou este imaginário que nada o inquietava, mesmo com o surgimento de novas ideias, novas rupturas que provocassem qualquer declínio deste ser estável, realizavam-se, então, substituições que, mesmo diante de novos paradigmas, o homem não perderia a sua segurança.
 
Todavia, inauditos contextos vão se constituindo e coadunando em um momento histórico ainda não experimentado pela humanidade: a modernidade. Nesta ímpar conjuntura da humanidade, algumas formas domesticadoras, na expressão de Sloterdijk, não se tornaram convincentes, portanto, as elaborações explicativas ficaram insuficientes e outras peças substitutivas que antes causavam quase os mesmos efeitos, agora provocavam inéditas consequências. Em Esferas I: Bolhas, Sloterdijk traz um pensamento de Pascal para capturar a atmosfera das singulares circunstâncias em voga: “‘o silêncio eterno dos espaços infinitos me amedronta’ — expressa a consciência íntima da época”. Destarte, o andamento das certezas começara a perder-se pelos caminhos, e as incertezas tão esquecidas ou mesmo marginalizadas vão ganhando novos espaços e compondo de maneira mais acentuada a mentalidade dos sujeitos neste novo tempo.
 
Assim, todo aquele acervo de abrigos que nos assegurava o pensamento tranquilizador e formas de vida guiadas pela manutenção de comportamentos, formas de ser e se portar, tornam-se démodée. Como nos complementa Sloterdijk, “Viver na época moderna significa pagar o preço da ausência de camadas protetoras”. Então, acabou se configurando a modernidade para o homem até então guarnecido do mundo, como novo ambiente caracterizado de modo hostil.
 
A modernidade, portanto, traz inéditas situações e disposições ao homem, e no seu esculpir, apresenta incluso, no processo de substituições, elementos que não equivalem a outrora, no sentido de oferecer certa estagnação ao seu modus vivendi. As peças permutadas produzem novos efeitos nos sujeitos, contextos e influência, de maneira peremptória, nas novas trajetórias históricas, sociais e culturais, como nos atesta Sloterdijk: “A modernidade se caracteriza por produzir tecnicamente suas imunidades e separa cada vez mais suas estruturas de segurança das tradicionais criações literárias e cosmológicas. A civilização de alta tecnologia, o Estado de bem-estar social, o mercado global, a esfera midiática: todos esses grandes projetos visam, em uma época sem camadas de proteção, emular a imaginária segurança das esferas, tornada impossível”. Dessarte, se a modernidade desfaz formas de imunidades, ela também produz novas formas para que o homem possa desenvolver o seu ímpeto individualista com a total desconsideração do outro.
 
Atentando-nos a essa ideia, podemos evidenciar que as principais movimentações estéticas no decorrer da construção moderna que tivemos no início com os feitos históricos das grandes navegações e quando se acentua a substituição de Deus pelo homem na centralidade e relevância no mundo, o sujeito encontra-se atormentado com este dilema. Podemos apontar isso no Barroco, nas questões terrenas e divinas, que se encontram em desarmonia, pois se promove a substituição da hegemonia de uma, a divina, pela terrena, dominada pelo homem.
 
No momento, então, de consolidação definitiva do “homem ao centro”, teremos o movimento estético do Romantismo que, além de consolidar o sujeito na centralidade de tudo, desenvolveu nele novos sentidos como a particularização de tudo em torno de si e do não esquecimento, mas total desconhecimento do outro, mesmo após a vigência de todas as correntes artísticas e pensamentos deste momento no século XVIII, continua a vigorar e compor o imaginário social do ser contemporâneo.
 
É como se diante de todas as “imunidades”, camadas protetoras, e em um “mundo de espumas”, como nos mencionou Sloterdijk, o apagar do outro garantisse o poder do ser e restabelecesse, portanto, todas as necessidades de sentir-se protegido. E com isso realiza-se um dos grandes desejos do sujeito moderno, como registra Sloterdijk: “o sonho de uma esfera do eu, monádica e abrangente, cujo raio seria o pensamento próprio — um pensamento que atravessa sem dificuldade seus espaços até a periferia mais exterior, dotado de uma discursividade onírica e cômoda que não enfrenta a resistência de nenhuma coisa exterior real”. Nesse ínterim, o vaidoso romântico encontrou o seu parâmetro e legitimidade para sustentar a sua grandeza constituída unilateralmente a partir dele, tão somente.
 
Assim, desta maneira, todas as atmosferas e ambiências que o rodeiam são marcadas pelo seu lugar solar de destaque, em que tudo irá girar em torno, tornando-o capaz de constituir novas tradições e sistemas de ideias apoiado em seu ego delirante e galopante, mas que logra espaços a cada poder social conquistado. Tomemos como assente desta realização individual as questões envolventes a moralidades e eticidades que se observa em boa parte das narrativas contemporâneas ao portarem-se sob a égide destas questões em suas constituições.
 
 

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