Seis poemas de Tao Yuan-ming em “Regresso a Casa”

Por Pedro Belo Clara
(Seleção e versões)



 
O BARCO VAZIO
 
O barco vazio flutua à deriva, sem remo
Volteando uma e outra vez, sem parar
O ano começa; olho para o alto e de súbito
Estamos já a meio do ciclo das estrelas
 
Na janela virada ao sul, nada esbatido ou mirrado
Os bosques do norte vicejam de folhas e fruta
O Abismo Etéreo derrama uma chuva bem-vinda
No rubor da madrugada, a melodia das brisas estivais
 
Se aqui chegámos, não devemos também partir?
O destino do homem prevê um dia final
Abraçando o eterno, aguardamos pelo fim
Do braço faço almofada, quem perturba a paz em mim?
 
Aceitando as mudanças, suaves ou duras
Indiferente à turbulência dos desejos —
Vivo já em tão sublimes alturas
Que necessidade há de subir aos picos sagrados?1
 
 
PRIMAVERA NA MINHA QUINTA, PENSANDO NOS ANTIGOS
 
O velho mestre2 deixou-nos o ensinamento:
Cuidai do Caminho e não da pobreza
 
Tem a minha reverência, mas estava além da compreensão
Assim, dedico-me a uma vida de labutas
 
Tomando a pega do arado, satisfeito pelo labor da estação
Sorrindo e gargalhando incito os outros lavradores
 
Os campos planos acolhem os ventos vindos de longe
Os rebentos encantadores trazem vida nova nos corações
 
Ainda que não seja época de colheitas
Estas pequenas coisas dão-nos grande prazer
 
Arar e semear têm o seu tempo de descanso
Nenhum viajante pára para nos perguntar o caminho3
 
Ao sol-pôr vamos juntos para nossas casas
Um jarro de vinho espesso animará a vizinhança
 
De canção em canção, fecho o meu portão de galhos secos
Dalgum modo sou agora um dos seus
 
 
A MINHA CABANA
 
Construí a minha cabana num lugarejo habitado
Mas não escuto ruído de cavalo e carroça
 
Perguntas como tal coisa é possível
Um espírito distante rodear-se de solidão
 
Apanho crisântemos debaixo da cerca, do lado poente
Aos poucos, a Montanha do Sul torna-se visível
 
Fica tão bonita quando o sol se põe
Nas alturas, bandos de pássaros regressam a casa
 
No seio de tudo isto há algo de real e verdadeiro
Queria explicá-lo, mas não encontro palavras
 
 
VELHOS AMIGOS
 
Velhos amigos que partilham dos meus gostos
Levando um jarro de arrasto, caminhamos juntos
 
Quebrando arbustos para nos sentarmos à sombra dum pinheiro
Vem uma taça, ou duas, e todos sentem-se bem
 
Velhos estridentes de barbas grisalhas tagarelando, distorcendo palavras
Perdendo toda a compostura enquanto enchemos as taças
 
Quando não tenho ideia de quem sou
Que importa o que outros pensam?
 
Que vasto, vago e encantado lugar para viver
Profundo é o gosto do vinho…
 
 
REPREENDENDO OS MEUS FILHOS
 
Cabelos brancos cobrem agora as minhas têmporas
O corpo tem a firmeza das papas
 
Tenho cinco filhos, jovens e robustos
Nenhum se interessa por escrever ou pintar
 
A idade do A-shu é de oito mais oito
Não há quem o iguale no que toca à preguiça
 
Aos quinze anos, devia estar a ler livros
Mas a poesia leva-o à loucura
 
Embora tenham ambos treze anos
Yung e Tuan não conseguem somar seis com sete
 
T’ung-tzu tem quase nove anos
Só pensa em apanhar pêras e castanhas
 
Bem, se é meu destino chegar a este ponto
Faz-me o favor de voltar a encher a taça!
 
 
CANÇÕES FÚNEBRES (I)
 
Se vives, então também terás de morrer
O nosso fim iminente não é um destino injusto
Na noite passada era um homem como qualquer outro
Esta manhã tenho assento entre os fantasmas
 
O sopro do espírito dissipou-se – para onde?
O corpo definhado consagrou-se ao caixão oco
Meus amados filhos chorando, à procura do pai
Os bons amigos ao tocar-me emocionam-se
 
Não mais saberei do ganho ou da perda
Como poderei ter noção do certo e do errado?
Mil outonos passarão. Após dez mil anos
Quem se lembrará das honras e das desgraças?
 
O único arrependimento:
Não ter bebido todo o vinho que desejaria
 
______
 
Tudo o que hoje se conhece sobre este poeta, podendo aceitar-se a sua verdade com uma certeza consideravelmente sólida, deve-se ao que Tao Yuan-ming escreveu sobre si mesmo (ou Tao Yuanming, como por vezes surge grafado) e ao elogio fúnebre composto pelo amigo Yen Yen-chih.
 
Nascido na actual Jiujiang (literalmente “nove rios”), no sudeste da China, no distante ano (ao que consta) de 365, Tao cresceu
numa família de oficiais e letrados. Apesar do berço elevado para a época, o pequeno Tao viveu esses anos numa pobreza recorrente. Na verdade, um oficial do império de menor grau teria um ordenado quase idêntico aos ganhos dum humilde lavrador. O seu avô fora um homem de alta posição no império de então, mas de alguma forma o estatuto foi-se diluindo no suceder das gerações.
 
O tempo que o acolheu era pouco propício à prosperidade: o período das Seis Dinastias (222 – 589), que vigoraria durante toda a vida do poeta. Tribos bárbaras haviam expulsado os imperadores da dinastia Chin do norte do país, uma nova capital fora fundada e a tensão política e militar era imensa. Foi uma longa época de intensa luta pelo poder, de batalhas e usurpações, fazendo por vezes lembrar os últimos anos do império Romano.  
 
Não obstante a comoção externa, Tao sempre recordou esses anos primeiros com doçura e saudade, o tempo “do alaúde e dos livros”, ocupações às quais já dedicava um sincero amor. Aos dez anos, porém, o seu pai morre e Tao, juntamente com a mãe e duas irmãs, começa a viver em casa de familiares próximos e a trabalhar nos campos, auxiliando ao sustento da família.
 
Cresceu com os ideais confucianos bem enraizados, pelo que uma existência de lavrador nunca poderia ser via única. Incentivado pela família, tornou-se indispensável a sua entrada no serviço público. Ao atingir a maioridade, contrai matrimónio, que será breve, dado o falecimento da esposa. Volta a casar, tempos depois e, perto dos trinta anos de idade, cumpridos os requisitos necessários, entra ao serviço do estado imperial. Enfim um oficial, como seu pai e avô, mas imensamente infeliz logo nos primeiros tempos de serviço. Abandona o seu primeiro posto, de Libador Provincial, devido às pressões que sofre no cargo a partir de instâncias mais altas.
 
(Importa esclarecer que tal ofício, apesar do nome, talvez não se relacione tão directamente quanto deixa transparecer com a figura de quem realiza libações, ou conduz cerimónias ritualistas oficiais. Poderá tê-lo feito, bem como assumido a posição de examinador nos testes de acesso aos cargos públicos. Tao fartou-se das constantes pressões que sofria para favorecer certos candidatos de certas famílias em detrimentos doutros, oriundos de posições sociais mais baixas.)
 
Regressa à vida rural, mas a pobreza de novo vivida força-o a reentrar no sistema. Os relatos podem ser contraditórios, mas terá primeiro trabalhado para o governador da sua província natal e depois ocupado o papel de estrategista na defesa do império, ao serviço dum determinado general — assistindo em primeiro plano aos tempos politicamente conturbados que se viviam. De seguida, tornou-se secretário de campanha de outro general do exército. Fatigado duma vida itinerante, logra obter um cargo mais perto de casa, como Magistrado de P’eng-tse. Não duraria muito tempo. Aliás, o próprio admitiria que apenas aceitara o cargo por aquela região ser fértil em arroz. E dado que este oficial-poeta, honesto e nada bajulador, era amante dum bom sake… Bem, que mal haverá em adicionar o útil ao agradável? (Nesse capítulo, acabou por se tornar um inovador ao trazer para a sua poesia a arte e o gosto de beber, abraçando-o sem qualquer culpa. Muitos seguiriam o exemplo nos séculos vindouros.)
 
Apesar do benefício da sua educação, e tendo trabalhado ao serviço do estado por mais de dez anos, retirou-se de vez da vida activa perto dos quarenta anos de idade. Há quem aponte a sua recusa em prestar uma visita protocolar a um inspector imperial, quando ainda Magistrado, como a causa do rápido abandono do cargo. Terá sido o momento em que supostamente proferiu a célebre frase: “não me ajoelharei como um criado por cinco punhados de grão”. O autor, porém, quando escreveu sobre o assunto, apontou o falecimento duma irmã como o catalisador de algo que já havia planeado há muito.
 
Assim, cansado das sórdidas cenas políticas de então, das obrigações morais e comportamentais impostas, das práticas de favorecimento e da astúcia mesquinha que envenenava os homens, Tao decidiu em definitivo rodear-se da família, da Natureza e dos prazeres simples — entre estes, o seu bem-amado vinho de arroz, sempre que era possível obtê-lo. Nunca se coibiu em admitir que desempenhou os cargos oficiais somente para “servir o estômago”. As seguintes palavras esclarecem os seus sentimentos:
 
“O meu espírito necessita de liberdade, odeia ser forçado ou restringido. A fome e o frio são amargos, mas ir contra a minha natureza põe-me doente.”
 
O regresso aos campos coincidiu com a invenção dum pseudónimo, bastante usual nos poetas de então. Nem sempre o utilizou, daí que hoje o conheçamos mais pelo nome de nascimento do que pelo nome adoptado. Mas é interessante reparar atentamente na forma escolhida: Tao Quian, cujo caracter chinês correspondente pode significar “oculto” ou “escondido”. Dada a reclusão autoimposta, compreender-se-á o motivo da escolha.
 
O retorno à vida rural, conforme dizíamos, imortalizado no seu célebre conjunto de poemas de nome semelhante, nem sempre se pautou por uma existência idílica. Dependendo da terra tão directamente, Tao e a família experimentaram intensos períodos de fome e pobreza. Valeu-lhes diversas vezes, num momento inicial, a preciosa ajuda do governador da província onde habitavam, provendo-lhes alimentos e roupa. O político sentia-se fascinado por Tao, cuja fama de poeta-eremita aumentava de dia para dia, e desejava conhecê-lo quanto antes. Tao, sempre fiel aos seus princípios, inicialmente recusou o encontro, até ser capturado nas teias duma “armadilha” amigável. Os dois acabaram por desenvolver uma sincera amizade.  
 
A época em que viveu, de tão conturbada, revelou-se pobre sob o ponto de vista da produção poética — e das artes em geral, como se compreenderá. Ainda assim, Tao Yuan-ming foi de longe o seu poeta mais importante. Na consideração de muitos estudiosos, o melhor poeta entre os quatrocentos anos que separam as dinastias Han e Tang, dos maiores que a China conheceu nos seus primórdios, antes do florescimento cultural verificado nesta última dinastia.
 
Devido às agitações políticas, qualquer homem de bom-senso optava por evitar os cargos públicos, e aqueles que denotavam talento ou inclinação para a poesia tendiam a exilar-se em zonas rurais. Outros, seguiam a via dos eremitas. Naturalmente, os trabalhos produzidos neste período passaram a adquirir uma característica ilustrativa forte, uma imagética que, passada para o poema, reflectia paisagens e estilos de vida condizentes, ligados à vivência e ao cultivo da terra. Terão sido estes os princípios que fundaram a escola “Campo e Jardim” uma poesia naturalista de grande pendor contemplativo. Considera-se Tao Yuan-ming um dos seus aderentes, ainda que o próprio pudesse não ter noção de tal. Alternando a poesia com a prosa, os seus trabalhos também se estenderam ao ensaio e ao texto elegíaco ou de homenagem.
 
Um espírito livre e honesto, produziu uma poesia simples e sincera, bem-humorada, íntegra, intimista e eloquente, acessível a qualquer um. Centrada no momento presente, abarcando tudo o que agora estivesse a acontecer, fosse pensamento ou acção, é um tipo de expressão que não comporta filtro, não se restringindo em expor momentos mais amargos e sombrios — com a mesma naturalidade de compor um verso sorridente, de pura exaltação.
 
Se tivermos em consideração o tempo histórico em que surgiu, com tudo o que até então havia sido escrito, a produção poética de Tao Yuan-ming é veramente revolucionária. E não nos referimos somente à forma do poema em si, mas ao seu conteúdo: corta em absoluto com a vida que todos, na sociedade, tinham por ideal ou desejável, apregoando pelo exemplo um regresso às origens, a uma existência mais simples e pura, igualmente mais verdadeira. Traz para a sua expressão os prazeres singulares duma vida ligada à terra, plantando e colhendo, e o desfrutar dos seus gostos mais íntimos sem traço de vergonha, como beber vinho sem limite pré-concebido.
 
Há ainda um cariz meditativo a merecer apreciação. Tao era um seguidor de Confúcio, e nesse caminho deparou-se várias vezes com contradições entre os preceitos do seu mestre e as condições que a existência lhe colocava. Era igualmente o tempo em que florescia o Taoísmo, nascido do legado do velho Lao-Tsè (ou Lao Tzu), e embora fossem duas vias distintas, a ambas era comum o elemento do Tao, a Via ou Caminho. De modo bastante sumário, era uma referência, para os confucianos, ao caminho de vida correcto e digno que cada homem devia seguir; os taoistas, mais transcendentais, viam o Tao como o rumo natural de todas as coisas, e se o Homem vivesse a sua existência de forma fluida, sem imposição ou negação, cumprir-se-ia a si mesmo. A poesia de Tao comporta algumas referências a este conceito, a Via, mas não se perde em complexas ponderações filosóficas.
 
Terá falecido aos sessenta e dois anos de idade, pois existem discordâncias quanto às datas correctas (por outra hipótese, teria setenta e seis quando faleceu). Um dos primeiros e mais louvados poetas da reclusão, pai de vários filhos, com um segundo casamento atribulado, muito por culpa das suas decisões de cariz anacoreta, tornou-se para a posteridade um dos maiores poetas da China antiga, a fonte que alimentaria a imaginação de renomados poetas posteriores, como Li Bai (Li Po) ou Du Fu (Tu Fu), para os quais se revelou um mestre, capaz de ensinar outro modo de viver e de observar o homem e o mundo. Um autêntico símbolo de reverência dos grandes imortais da poesia chinesa, que nunca vendeu o espírito por posição social, nunca atraiçoou o coração em nome da fama e da riqueza.
 
Notas:
* Seleção e versões partir da tradução inglesa de Dan Vech em Returning Home (White Pine Press, 2023).
 
1 Segundo a tradição, existem na China cinco montanhas sagradas. No texto original, Tao refere-se a Hua e Song. Ainda hoje em dia são percorridas por milhares de pessoas, todos anos, em devota peregrinação.
 
2 Trata-se de Confúcio (551-479 a.C.), de cuja filosofia Tao Yuan-ming era seguidor. Há uma referência subentendida a uma certa passagem dos Analectos, onde Confúcio dá o conselho de seguir a via do serviço público ao invés duma existência como agricultor, praticamente condenada à pobreza.
 
3 No texto original a palavra é vau, e não caminho. Trata-se duma referência a um episódio protagonizado por um discípulo de Confúcio. O velho mestre, durante uma certa viagem, pediu ao discípulo Tzu-lu que perguntasse a alguns lavradores que ali se encontravam, vivendo em reclusão, qual seria o caminho para o vau. Procuraria uma passagem, portanto, por forma a prosseguir a sua viagem. Ora os lavradores, sábios na sua simplicidade, aconselharam-no a parar de tentar mudar o mundo e simplesmente retirar-se dele. O pobre discípulo, em espanto, remeteu-se ao silêncio. Terá sido um daqueles momentos de iluminação instantânea, o satori, como as tradições orientais tanto relatam? Não sabemos, mas talvez Tao e os restantes estivessem prontos a dar o mesmo conselho a quem por lá parasse.

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