Os perigos do Imperador: um romance do Segundo Reinado, de Ruy Castro
Por Henrique Ruy S. Santos
Ruy Castro. Foto: André Dias Nobre |
O procedimento não é novo: um
narrador inicia a obra relatando as condições fortuitas e acidentais por meio
das quais veio a ter contato com os manuscritos ou os documentos que deram
origem ao caso que será contado. O Romantismo, aqui e alhures, foi profícuo
nesse tipo de artifício. Basta lembrar do nosso José de Alencar d’A guerra
dos mascates (e outros romances), do também lusófono Almeida Garrett e
mesmo do Goethe do Werther, todos românticos cuja consciência literária
e histórica os fazia entender que os meandros da escrita também podiam ser uma
aventura que valia a pena ser contada.
De certo modo, é tomado por essa
consciência histórico-literária que Ruy Castro inicia seu Os perigos do
imperador com um prólogo dedicado a narrar “como esta história aconteceu —
ou quase”. O prólogo menciona a hoje quase esquecida viagem de D. Pedro II aos
Estados Unidos em 1876, viagem esta de que “nada de muito importante [...]
resultou”, afinal, “nos três meses de sua duração, não se redigiu um tratado,
não se assinou um contrato, não se trocou um caracol” (p. 7), motivo pelo qual
o evento passou à História como simples nota de rodapé, sem maior interesse
para historiadores ou biógrafos do último monarca brasileiro.
Mas onde a historiografia, com seu
necessário apego às fontes confiáveis e factuais, é apenas alusiva, a
literatura, com sua reserva ilimitada de imaginação, é capaz de apontar a
possibilidades não cogitadas pela própria realidade. E assim, o que antes era
uma simples anedota histórica sem demais intercorrências, no romance de Ruy
Castro transforma-se num enredo de intrigas conspiratórias para derrubar a
Monarquia e matar D. Pedro II.
A narrativa é construída a partir
de documentos reais e fictícios coligidos pelo narrador, que faz interferências
pontuais apenas nos pontos em que os documentos supostamente deixariam lacunas
na história. Entre a “documentação” reunida, encontram-se passagens do diário
pessoal de D. Pedro II, reportagens do jornalista do New York Herald
James J. O’Kelly (responsável por acompanhar o imperador brasileiro em toda a
trajetória de sua viagem, desde os preparativos no Rio de Janeiro até o
atentado nos EUA), cartas trocadas entre os conspiradores republicanos e até
mesmo trechos de um caderno de anotações do poeta Sousândrade (encontrado pelo
narrador na feira de antiguidades da Praça XV, no Rio de Janeiro, em mais um
desses lances de serendipidade), que, no romance de Ruy Castro, toma parte na
conspiração de derrubada da Monarquia e tem participação indireta no atentado a
D. Pedro II.
Com essa barafunda de personagens
e figuras históricas, seria de se esperar certo embaraço na condução narrativa,
tendo que se ver às voltas com tantas figuras mais ou menos conhecidas do
público e com certo caráter mirabolante do enredo. A opção formal de Ruy
Castro, no entanto, é bastante feliz e desloca o centro de interesse do romance
para um terreno em que o autor pode transitar com mais familiaridade: ao contar
a história principalmente por meio dos documentos reunidos, o interesse deixa
de ser o aprofundamento psicológico de personagens e passa a ser muito mais a
reconstituição de uma época, realizada pelos pontos de vista de diferentes
atores sociais envolvidos nas agitações do período.
O tom privilegiado, então, passa a
ser mesmo o da anedota histórica, de pouca gravidade, e mesmo os fatos
históricos de maior seriedade, como as conspirações políticas que ameaçavam a
dissolução da Monarquia e a posterior instauração da República, são narrados
como fatos curiosos de um período a que o nosso posicionamento histórico
concede uma distância relativamente irônica.
E a época retratada é das mais
importantes para a nossa formação enquanto nação, e os pontos de vista
privilegiados, priorizando ora os simpatizantes de D. Pedro II, ora seus mais
ferrenhos detratores, permitem abarcar o período em suas múltiplas contradições:
as tensões locais entre os diferentes regimes, Monarquia e República; a
transição do domínio europeu das relações mercadológicas e ideológicas para o
protagonismo da economia estadunidense no cenário global; e a dinâmica cultural
do Segundo Reinado, sustentada por uma mistura peculiar de referências
europeias e a típica “cor local”. Tudo isso encapsulado na contradição
ambulante que é o D. Pedro II de Ruy Castro, o que é indicado já em sua
descrição física:
“O imperador seria ainda mais
imponente se sua voz fosse grave e retumbante para fazer jus ao corpanzil. Mas
era fina, frágil, cantante, o que, combinando com os olhos cor de água-marinha,
lhe dava ares quase infantis, como os de um bebê gigante” (p. 19)
Mas não só no físico, a figura do
imperador parece concentrar em si muitas das contradições que assombram o
Brasil desde sempre. Trata-se de uma figura algo anacrônica, o único monarca em
um continente cercado por repúblicas; apesar disso, aparenta ser um homem
esclarecido, cultivador das artes e incentivador do progresso científico; é um
monarca que admira o republicanismo e os abolicionistas, mas que não só convive
com a escravidão em seu país, como é mesmo um dos principais responsáveis por
sua manutenção. Diante de tantas contradições, Ruy Castro é tímido na fabulação
e prefere enxergar o imperador como o vulto histórico enigmático que foi, sem
arriscar sínteses psicológicas. Como se disse, perdem em profundidade os
personagens, e ganha em colorido a época retratada.
______
Os perigos do imperador
Ruy Castro
Companhia das Letras, 2022
200 p.
Comentários