Macedonio Fernández, o eterno retorno

Por Álvaro Abós




“Imitei-o ao ponto da transcrição, até ao apaixonado e devoto plágio”, confessou Jorge Luis Borges, com os olhos rasos de lágrimas, na manhã chuvosa em que Macedonio Fernández foi sepultado. Era 18 de fevereiro de 1952. Tal confissão não foi uma mera manifestação de pesar. No dia seguinte, Borges levou o obituário à revista Sur, onde foi publicado no número 209/ 210. Posteriormente, escreveu outros textos sobre o autor de Museu do romance da eterna, como o prólogo de uma antologia de 1961. A devoção filial por Macedonio nunca cessou em Borges. Porém, nesse prólogo e nos comentários orais que Adolfo Bioy Casares recolheu após quarenta anos de amizade e trabalho comum em seu Borges (2011), o autor de El Aleph reitera repetidas vezes a seguinte ideia: Macedonio Fernández era um gênio verbal. Só quem o ouviu pessoalmente pôde apreciar a sua qualidade intelectual e humana. Como escritor, sustentava Borges, era confuso e medíocre (“Os poemas são pessímos... Macedonio, nos poemas sobre a morte da esposa, coloca um problema insolúvel: quer minimizar toda a importância, como morte, essa morte — é antes uma união, uma perfeição maior — e ele dedica um livro inteiro a esse fato sem importância...”).
 
Segundo Borges, Macedonio nem sequer possuía uma vontade firme como escritor. Suas produções eram meras notas. De alguma forma, Borges matava o ídolo que havia construído. Se Macedonio só valia apenas para aqueles que o ouviram — e quem mais o escutara fora ele mesmo, Borges —, para o resto do mundo, para nós, para todos que não estivemos no café La Perla de Once, ouvindo Macedonio, não nos restava mais nada a não ser sentir saudades do mestre perdido.
 
Mas, não.
 
Por muitas razões. Porque Macedonio leva o seu trabalho a sério, mas encara a sua pessoa como uma brincadeira. Porque é capaz de rir da sua profissão de escritor, sem deixar de professá-la. Porque pede muito, mas dá mais. Porque abre caminhos e não fecha nenhum.
 
Macedonio Fernández foi um narrador original e paradoxal. Foi um poeta lírico de terna humanidade. Seu quarteto “O amor chegou./ Enquanto durou, tornou tudo agradável./ Quando foi embora/ não deixou nada que não doesse”, é segundo César Fernández Moreno, o mais belo poema de amor da língua espanhola. Macedonio foi um humorista de tradição portenha e popular. Foi um interregador de ideias, um glosador e uma personagem da cidade de Buenos Aires, cuja mitologia contribuiu para forjar, fazendo parte dela ("Buenos Aires, cidade suprema rodeada de sombras, vive nas trevas do seu destino, como o transatlântico iluminado na vasta escuridão do mar”). Foi um procurador da felicidade para si e para o próximo, um mestre que tinha horror ao clichê magistral. Foi um argentino livre que soube combater a doença do poder com palavras claras (“O desejo de mandar indica inferioridade”). Macedonio Fernández e Leopoldo Lugones nasceram no mesmo mês do mesmo ano. Mas não poderiam ser mais diferentes. Para Lugones, “a vida é um estado de força”, enquanto, para Macedonio, “a vida é o susto de um sonho”. O seguinte epigrama, surgido entre os tantos que crescem como flores nos escritos de Macedonio, não teria lhe desagradado como lema pessoal e também como figura do seu percurso humano e literário: “Sem poder nem glória, pela única certeza da paixão”.
 
A vida de Macedonio Fernández, nascido em 1º de junho de 1874 em Buenos Aires, foi cortada em duas por um imprevisto. Em 28 de maio de 1920, sua esposa, Elena de Obieta, morreu no Hospital Durand durante uma pequena cirurgia, e talvez devido a um erro médico. Macedonio, que a amava desde sua primeira juventude, transformou-a em sua eterna musa. Dedicou à sua esposa um longo poema intitulado “Elena Bellamuerte”, uma elegia em que o escritor luta contra o desaparecimento de sua amada, sem admiti-lo, lutando contra ele com a tola esperança de que a arte — ou alguma justiça remota — devolvesse-lhe Elena. Borges nunca compreendeu a angústia de Macedonio pela morte da esposa e sua recusa em aceitá-la. E, no entanto, essa rejeição, que Ricardo Piglia ficcionalizou em A cidade ausente (1999), transformando-a numa máquina que repete o presente, já havia inspirado em 1944 o conto “O perjúrio da neve”, de Adolfo Bioy Casares, cujo protagonista, o dinamarquês Vermeheren, tenta parar o tempo para que a morte de sua filha nunca chegue. Paradoxo: o sedutor, elegante e mundano milionário Bioy — que nunca gostou de Macedonio — compreendeu a sua tragédia.
 
Quando Jorge Luis Borges retornou à Argentina na década de 1920, reencontrou Macedonio na casa dos cinquenta anos, recentemente viúvo, que havia sido grande amigo do Dr. Jorge Guillermo Borges, pai do autor das Ficções. Jorge Luis Borges monopoliza Macedonio e celebra-o como um Sócrates que deu os seus ensinamentos urbi et orbi numa mesa em La Perla. Divulga-o na vanguarda literária, da qual Borges se tornar em ativo líder. Por um tempo, Macedonio é um homem jovial-velho, um cinquentão entre vinte e poucos anos, papel que acentuava sua branca cabeleira: Macedonio, já com 26 anos, havia ficado grisalho. O Velho, como o chamavam carinhosamente, participa da vida cultural da cidade. Participa de reuniões no café Richmond ou no café Royal Keller, colabora em revistas como Martín Fierro ou Proa e é convidado para as apresentações de livros que depois se tornam em banquetes. Macedonio torna famosos seus discursos laudatórios, atravessados ​​por uma velada ironia. Em 1928, a pedido de Borges, Raúl Scalabrini Ortiz, Leopoldo Marechal e outros jovens amigos, ele publicou sua recompilação de textos filosóficos, poéticos e humorísticos na editora Gleizer. No ano seguinte, as edições Proa também publicam um livro com textos diversos: Papeis de boas-vindas.
 
O ativismo literário de Macedonio termina em 1930. Neste ano, um golpe militar encerra um longo ciclo de governos civis e os jovens da geração martinfierrista, já maduros, dispersaram-se. Macedonio põe fim aos seus anos gregários e isola-se no silêncio e na solidão, na construção da sua obra, apenas interrompida pela amizade de alguns fiéis. Em 1922 havia escrito um romance autobiográfico sobre as aventuras de uma viúva nas pensões do centro de Buenos Aires, que retoma e termina em 1938, embora não tenha encontrado editora para a publicação. Macedonio lapida sua solidão como uma joia: lê, fuma, toca violão, preenche cadernos com sua misteriosa caligrafia, que seu filho Adolfo decifra. Macedonio trabalha até a morte em um longo romance que intitularia Museu do romance da Eterna.
 
Em 1952, quando Macedonio morreu, as pessoas presumiram que ele estava morto há mais tempo. A recuperação editorial de Macedonio Fernández foi uma epopeia devida ao seu filho Adolfo Fernández de Obieta, que também escreveu sob a assinatura Adolfo de Obieta. Somente em 1967, o Centro Editorial Latino-Americano publicou o Museu…, obra que permaneceu inédita por 15 anos. Manuel Pampín, pela sua editora Corregidor, editou a obra completa de Macedonio, sob a direção de Adolfo de Obieta. Incluiu as suas obras inéditas, a recuperação dos seus cadernos e notas dispersas e as cartas, refúgio de alguns dos mais belos fragmentos da obra do escritor. 


Ligações a esta post:
>>> Falamos aqui acerca da primeira edição brasileira do Museu do romance da Eterna
>>> E publicamos aqui a tradução de uma resenha do Museu...


* Este texto é a tradução livre de uma versão reduzida de “El eterno retorno”. O texto original, na íntegra, pode ser lido aqui. Álvaro Abós é autor de uma biografia sobre Macedonio Fernández intitulada La biografía imposible (Plaza & Janes Sa Editorial, 2002).
 

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