Por Gabriella Kelmer
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Caetano Galindo. Foto: Leticia Moreira |
Existe algo curioso nas estreias
literárias. Fui recentemente atraída por elas em resenhas anteriores, com
O
dia dos prodígios, de Lídia Jorge, e
Memória de elefante, de António
Lobo Antunes. Nas duas obras, em que estão registrados os primeiros movimentos
de autores fundamentais à produção contemporânea portuguesa, demarcam-se
proclividades estilísticas e temáticas que serviram às produções seguintes. Pessoalmente,
a essencialidade da dicção da autora ainda reside para mim em Vilamaninhos,
cuja nítida decrepitude entristecida não me foi sombreada por obras posteriores;
de outro modo, o romance do autor antecipa em alguns aspectos a cúspide que,
considero, é atingida em romances seguintes.
Faço essas considerações não para
opor as duas estreias, aliás excepcionais, cada uma a seu modo, mas para
balizar as diferentes maneiras pelas quais uma primeira publicação pavimenta
alternativas, preocupações e recursos que, por vezes, antecipam ou condensam os
rumos da carreira literária como um todo. Assim, embora sem determinismos, considero
que há, em geral, germinações importantes a serem compreendidas desde os atos
iniciais de um autor.
Assim chegamos a
Lia, de
Caetano W. Galindo. Embora não seja de todo a primeira publicação do escritor, mais
conhecido pela tradução da enigmática obra de James Joyce no Brasil, a produção
é sua estreia romanesca. Antes, publicou pela Companhia das Letras, editora que
o acompanha também no novo lançamento, o livro de contos
Sobre os canibais,
em 2019, que ainda não conheço. Nesse sentido,
Lia veio às minhas mãos
como dupla introdução: do autor e da sua escrita romanesca.
Aliás, a discussão dos gêneros discursivos
é incontornável frente a este ato literário específico. Na contracapa da obra,
registram-se que “Romances podem ser como filmes” e que o livro se configura
como “um álbum de retratos”. Estão postos desde então dois outros formatos
artísticos que adentram a linguagem literária, sendo eles encontrados na
confecção de capítulos sem ordem cronológica e com narradores e técnicas variados,
constituindo impressões passageiras de uma mesma personagem, Lia. É a sua
existência, capturada em circunstâncias que datam desde a infância até o
pós-morte, o que fornece minimamente o vínculo entre as partes da obra.
A pretensão do romance,
expressamente declarada, é emular os procedimentos imagéticos, transplantados
do cinema e da fotografia, para fornecer os estilhaços de uma história,
flagrada conforme ângulos divergentes. Para isso, a produção acumula circunstâncias
passageiras, buscando, por um repertório absolutamente heterogêneo, articular a
intangibilidade de uma determinada vida.
“É estranho. A lembrança que ela
tem dessa corrida é distendida, dilatada, como se tivesse durado uns quinze
minutos. A primeira metade foi igual às outras, ela caindo de posição. O
Niltinho e a Wanda na frente, aos poucos abrindo distância. Mas foi aí, mais ou
menos na metade do caminho, respirando pesado, bufando, suada, que Lia percebeu
que aquilo não era correr de verdade. Que todo mundo estava repetindo os mesmos
movimentos, respirando do mesmo jeito, querendo chegar antes, mas todo mundo
ainda detido por alguma coisa. Algum tipo de amor-próprio. Como que um freio de
mão. Ela não. A partir dali, não. Decidiu abrir aquela válvula que faltava,
correr aquele tanto a mais, na velocidade que lhe restava de reserva, sentir os
pés quase sem tocar o chão, a cabeça se inclinar um tanto pra trás, as pedras
soltas passarem voando por baixo dela, prestes a cair de verdade, prestes a
decolar, solta da terra, flutuando livre do cuidado de se prender ao chão do
mundo, irresponsabilissimamente acelerada, mais que todos, mais que qualquer
pessoa, ultrapassando quase sem notar o Niltinho e a Wanda ainda a quilômetros
da linha de chegada, perdendo-se dos outros, perdendo-se sozinha, simplesmente
porque não cuidava de mais nada, não zelada por mais nada.” (Galindo, 2024, p.
30)
Há muito do cinema na obra.
Circunstâncias narrativas reproduzem o movimento da câmera: o afastamento
gradativo a partir de um enquadramento fechado, quando a cena é revelada em sua
totalidade apenas ao final do capítulo, ou uma aproximação que deixa o espaço e
se move em direção aos seres ficcionais e seus imbróglios emocionais. Outros
momentos, mais infrequentes, aparentam proximidade com o formato documentário,
com a adoção da primeira pessoa de personagens que falam sobre Lia, a partir
das provocações de um interlocutor, omitido no plano narrativo, de quem se
inferem questionamentos acerca da personagem. Configuram-se capítulos, ainda,
em que o fragmento dá vez às remissões a um passado próximo (os flashbacks
cinematográficos), à descrição minuciosa de uma xícara quebrada, às insensíveis
movimentações de um prédio durante vinte e quatro horas. Tudo isso se configura
pelo mesmo descritivismo, que ora focaliza o balanço de uma sacola plástica ao
vento, as pedras que se descolam do chão na corrida, o abrir e fechar de uma
geladeira. Há uma parte da obra que dá conta da espacialidade e da ação de uma
forma que é muito característica do cinema, restando, junto com o essencial,
também um esforço em abarcar o insignificante e o sensorial.
Diferentemente do cinema,
entretanto, muitas passagens aparentam congelamento. Não havendo continuidade
dos eventos narrados, é mais pertinente evocar antes a fotografia, a captura de
um momento extraído do tempo, o que também foi prescrito na apresentação do
romance, introduzido como um álbum de retratos. Entretanto, na soma de todos os
diferentes expedientes da produção, permaneceu impossível identificar a
presença de um mesmo rosto discernível — ainda que eventualmente transformado —
ao longo dos capítulos, ficando Lia efetivamente diminuída em comparação com a
precedência do cortante procedimento narrativo adotado.
Nesse sentido, o romance — e é
preciso retomar a discussão do gênero — introduz fragmentos que trazem a vida
em tempos distintos, sendo necessário contabilizar dentre seus méritos a
diversificação daquilo de que dá conta a narrativa. Está lá a infância mais
tenra, a descoberta da atração física, a maternidade, a turbulência
matrimonial, o adoecimento. Todos esses eventos, atribuídos à Lia, embora ela
possa ser ora confundida com sua mãe ou com sua filha (a relação de
continuidade entre as três mulheres é uma das temáticas abordadas ao longo da
obra), poderiam, entretanto, ser vivenciados por absolutamente qualquer outra
personagem. Se há, nisso, uma tentativa de universalização das experiências, ou
de exposição da superficialidade pela qual é possível se dar a conhecer alguém,
essas teses são conquistadas pelo sacrifício daquela que, dando título à
narrativa, oferta pouco mais. Lia é quase tão intocada ao fim do romance como
antes do início de sua leitura, excetuando-se talvez a revelação de uma
persistência notável de ignorar os incômodos físicos, um cuidado especial com
as plantas e o carinho demonstrado pela filha. São essas ainda generalidades, e
elas deixam uma impressão esgarçada do ser ficcional, o que, ainda que
compreendido à luz do esfacelamento identitário ou da alteridade, é pouco, para
um romance que carrega tão decididamente uma marca pessoal em seu título.
Isso se dá também pela solvabilidade
não reconhecida dos conflitos apresentados. Uma personagem atribui à Lia
adultério, talvez indevidamente; depois, um episódio de desentendimento entre
marido e mulher é flagrado, sendo encerrado no ápice da tensão entre eles, no
momento em que a esposa anuncia que o companheiro não é pai de sua filha. Em outro
momento, a protagonista vivencia o sentimento de liberdade na solidão, o que
permite inferir divórcio anterior, não havendo outras menções ao marido. Nesse
ínterim, em favor do efeito dramático do remate do capítulo do embate doméstico
(“Ela nem é tua filha, cachorro”) e do caráter fragmentar da narrativa, perdem-se
as particularidades das personagens e o peso dos eventos. Quase não há
discussão do casamento, de modo que seu fim também ocasiona efeitos apenas
remotos.
“Dos dentes da frente ela cuidava
um tanto mais. Você precisa ter algo para mostrar aos outros, se quiser que não
vejam tudo. E deu sorte com a cor dessa resina. Quase igual. Eles ainda quase
se juntavam. Quase. Quase cerravam a porta para o espetáculo triste do que ia
se perdendo ali detrás. Parede amarela para o resto, que se perdia. Apodrecia.
Por isso o mundo via dela, de Lia e do seu interior, um quase nada.” (Galindo,
2024, p. 144)
A intenção de demonstrar a
impossibilidade de mapear a existência e de articular sua totalidade é, dessa
forma, enfraquecida pela adoção preferencial da fugacidade da fotografia e da
externalidade do cinema, procedimentos que quase não dão lugar à profundidade
de que seria necessário se valer para validar aqueles mesmos argumentos. Essas
estratégias, ademais, constituem capítulos apenas remotamente vinculáveis,
mesmo dentre aqueles que tratam de Lia, sem levar em conta os que
repentinamente se apresentam como dissertações sobre árvores ou reflexões sobre
uma vítima da Shoah. A prosa resguarda a necessidade dramática da
revelação e da reviravolta, técnicas que, constantes, seriam talvez mais
adequadas ao gênero conto. Ademais, a necessidade de resguardar mistério e
apenas ao final do episódio revelar a cena como ela é funciona em algumas
circunstâncias (dentre os quais destaco o sensível episódio em que mãe e filha
vivenciam um momento de afeto no capítulo 39), mas, em outras, pela reprodução
do mesmo movimento, torna-se algo previsível.
É nesse sentido que reafirmo a
primazia dos procedimentos e da linguagem sobre a caracterização e subjetividade
das personagens, bem como sobre a continuidade romanesca. A busca pelo efeito —
pelo choque gerado pela aparição repentina de um novo elemento e pela aparição
de ainda outra palavra para descrever o mesmo evento — precede o tratamento das
temáticas e a confecção dos elementos composicionais, que variam
demasiadamente.
Com essas observações, não desejo
prevenir a leitura do romance, em que constam, aliás, capítulos de grande
expressividade, em especial aquele dedicado à descrição da continuação da vida
depois de uma morte, ou naqueles em que o narrador assume a primeira pessoa, pelas
vozes da filha e do pai da personagem central. Um capítulo dedicado à dentição,
dentre todas as coisas, foi para mim o mais tocante de todo o romance, em uma
demonstração de que o autor é capaz de aferir significado e profundidade a
matérias as mais diversas.
Lia é a primeira aparição
de Galindo no amorfo, híbrido e “heterodiscursivo” romance, e as minhas
considerações podem até ser derivadas de incompreensão perante um novo
movimento do gênero. A princípio, no entanto, acredito que Lia é menos
romance do que um amontoado de contos, para os quais, inclusive, não seria
necessária repetir o nome da personagem, dada a ausência de elementos que
vinculem uma parte do romance a outra. Há promessa em aspectos da dicção do
autor, conquanto falte, na minha perspectiva, um princípio unitário à obra e
uma aparição mais marcante de sua protagonista. Quanto a esses impasses, em que
incluo a miríade de estratégias narrativas, permaneço na expectativa de sua
dissolução em obras posteriores.
______
Lia
Caetano Galindo
Companhia das Letras, 2024
232 p.
Comentários
Uma pena, pois ele costuma ter bons materiais em mãos, mas subaproveitados. Sua resenha, como sempre, uma aula!