Kafka: literatura e prostituição

Por Carlos Mayoral


Com data entre 1906-1908, Franz Kafka e a camareira Hansi Julie Szokoll, uma das suas prostitutas.


 
Franz Kafka já tinha percebido que o século XX estava acordando transformado num inseto monstruoso, quando o resto de nós ainda estava determinado a polir as desgastadas poltronas romanescas do século XIX. Porque o eco dessas vozes encarregadas, durante anos, de fazer da prosa a rainha de todos os intelectos já naquela altura repercutia nas paredes da Shakespeare & Co, conduzindo a um novo modelo de romance que, através dos James Joyce, dos Proust ou dos Faulkner, misturava no mesmo coquetel a metafísica alemã, o monologue intérieur, a durée bergsoniana e sabe-se lá quantos outros recursos a meio caminho entre o cult e o brega. Como num passe de mágica, se multiplicavam os pesados ​​e inacessíveis volumes. Os artistas de vanguarda europeus estavam determinados a realçar a qualidade destas criações, embora muito poucos se preocupassem em apurar até o último parágrafo. Enquanto isso, o ego dos protagonistas subia acima dos telhados da Paris da época, que ainda era uma festa antes de ser carcomida pelos influxos das grandes guerras. Esses egos nos legariam episódios famosos como aquele jantar entre os citados James Joyce e Marcel Proust, onde cada um se concentrou em falar de si mesmo sem prestar atenção aos desconhecidos argumentos do adversário.
 
Diante de tal panorama, era questão de tempo até que nosso Franz procurasse algum antídoto que lhe permitisse escapar da claustrofóbica sala. Mas não seria fácil encontrar a fórmula para uma figura que exibia nome de imperador austro-húngaro e uma figura frágil, orelhas de abano e que apenas contava com um emprego que o sufocava e uma falta de amor-próprio surpreendentemente palpável. Todas essas características, incluindo o nome imperial e sua orelhuda genética, foram lentamente maceradas pelo sobrenome Kafka. Seu pai, um judeu não muito adepto, atuava como patriarca com mão tão pesada que seus golpes podem ser vistos em cada linha escrita pelo obediente filho. Sua mãe havia tomado as rédeas da criatividade de Franz, estimulada por alguns ancestrais bastante boêmios (desculpem o desastroso jogo de palavras) e por uma mentalidade mais afável. As irmãs desempenharam o papel de amigas e confidentes, oferecendo apoio quando Franz parecia cair, algo que literalmente acontecia com muita frequência devido às suas frequentes tonturas. Mais tarde, o sobrenome de sua família seria consumido em Auschwitz, onde as irmãs descobririam que às vezes não há mundo mais kafkiano do que aquele por onde passamos todos os dias. Mas, como dizíamos, nestes veio o bom de Franz Kafka. Fragmentado e atormentado. Áspero. Insociável
 
Sobre indiferenças e antídotos
 
Se revisarmos a introdução do artigo, notaremos que especial atenção foi dada em colocar sobre a mesa tanto o ambiente familiar como o ambiente literário que cercavam a figura de Kafka. Para fugir de ambos os contextos, o brilhante escritor escolhe um ano: 1912. Será durante este ano que descobrirá as suas duas rotas de fuga. Estas vias consistem, por um lado, em colocar no papel toda a literatura que até então só tinha saboreado como leitor e, por outro, em ir com mais ou menos regularidade aos diferentes bordéis de Praga. Para compreender a situação devemos necessariamente entrar no mundo kafkiano que ele mesmo se empenhou em criar.
 
A qualidade que melhor define Kafka é a indefinição. Ao lê-lo, alguém se sente aprisionado pelos sentimentos do protagonista, mesmo que ele seja um bicho ou um tipo que foi processado sem motivo aparente. É daí que vêm as diferentes leituras que têm sido feitas da sua obra. Vimos como já identificaram o inseto em A metamorfose com o fascismo, com o proletariado, com o fracasso sexual, com a queda do império e com a ascensão do gin-tonic. Porque todos e nenhum de nós somos Kafka e a fronteira entre quem é o personagem e quem é o leitor nunca está claramente definida. Assim, todos nós tomamos o lugar de Samsa ou Josef K. à margem, desfrutando ao mesmo tempo do seu sofrimento, que era o nosso, e da curta distância que nos separa deles. Pois bem, para mim isso resulta também quando me ocorre de vislumbrar a biografia de Kafka, pois a empatia com o protagonista é tamanha que não já se sabe mais onde começa a vida de Kafka e onde termina a do biógrafo de plantão.
 
Como não se fundir com nosso protagonista orelhudo quando, com o coração na boca, ele escreve essas linhas para seu eterno amigo Max Brod?
 
“Ontem, por pura solidão, levei uma prostituta para um hotel. Era um tanto velha demais para continuar sendo melancólica. E só a entristecia que os homens não fossem tão afetuosos com as prostitutas como são com as suas amantes. E eu não a consolei porque ela também não me confortou.”
 
É a crônica de um espírito dilacerado. Uma mente que sofre e na qual não é difícil entrar. Neste ponto do artigo devemos salientar que, com o passar dos anos, Kafka tornou-se cada vez mais indiferente. Havia manifestado seu interesse pelo socialismo devido a uma suposta capacidade de solidariedade que mais tarde rejeitaria. Ele havia se tornado vegetariano, contrariando o sentimento familiar. Como esquecer aquela cena em que, enquanto observava um aquário com a namorada, Kafka conversava com os peixes: “estejam tranquilos, já os comerei mais”. Este excessivo naturismo teria consequências fatais, pois, segundo todos os especialistas, a tuberculose que acabou com a sua vida poderia ter sido contraída após beber leite não pasteurizado. A evolução religiosa que experimentou já na juventude levaria a um ateísmo turvo (“o Messias chegará quando já não for mais necessário”), tendência que também contradiz a tradição da família Kafka. É, portanto, um espírito determinado a encontrar o caminho oposto ao que lhe foi traçado.
 
Dito isto, voltemos ao ano de 1912. Kafka já visitou alguns bordéis durante as suas viagens ocasionais pela Europa. Sua cultura literária foi forjada pelas leituras de Flaubert e Cervantes. Aproximamo-nos da fórmula de que falámos em parágrafos anteriores, o que acontece a partir deste ano que faz com que Kafka escreva, provavelmente, a melhor literatura do século XX e fique obcecado, ao mesmo tempo, pela vasta gama de prostitutas de Praga? Muito fácil. Kafka deixa de acreditar, de um só golpe, na sua capacidade literária e na sua capacidade de amar.
 
Kafka, o amor e a prostituição
 
Em 1912, Kafka escreveu sua primeira obra-prima ao mesmo tempo em que iniciava seu primeiro relacionamento romântico mais sério. Finalmente, ambos os caminhos se abrem. Não perderemos muito tempo falando sobre seu fracasso literário, pois já é bastante conhecido. Publicará apenas um punhado de contos e a falta de estima que ele próprio tem pela sua obra leva-o a formular um último desejo antes de morrer: os seus escritos devem ser queimados até a última folha. Este fracasso fecha a primeira rota de fuga.
 
Mas ainda lhe resta uma última bala na arma. Conhece Felice Bauer, com quem manterá um romance de cinco anos. A correspondência entre os amantes, já publicada e altamente recomendada, fala por si. Foram cinco anos de um relacionamento turbulento e instável. Quase sempre à distância. Uma vez Felice perdendo a perspectiva kafkiana finda o relacionamento. “Meu barco é muito frágil”, dizia ele. É seu primeiro fracasso, mas não o único. Milena Jesenská ou Dora Diamant também sofrem com a falta de tato de Kafka para com as mulheres.
 
Mas por que ocorre nele essa incapacidade de amar? Os argumentos já foram desenvolvidos ao longo do artigo. O primeiro, a mesma indefinição que se manifesta em seus textos. Kafka não se contenta em adotar um único papel na obra. Nas cartas com Bauer é possível observar como Franz vai se mutando, fugindo da realidade que Felice lhe apresenta. Ela não entende essa metamorfose que o acompanha, essa forma de escapar com argumentos que misturam, como em sua obra, a realidade com o absurdo da forma mais natural. Felice confessaria a Max Brod: “Não sei por que, mas o fato é que Franz me escreve muito, mas mesmo assim as suas cartas não fazem sentido. Eu não sei do que se trata.” O segundo argumento não é outro senão a rejeição ao que está estabelecido, de tudo o que lhe faz lembrar a sua família. Sem carne, sem sinagogas, sem núcleo familiar. Kafka conseguiu o que pretendia, tornando-se um ser que representa o completo oposto do que seu pai representava.
 
Como já mencionamos, Kafka entrou em contato com o mundo da prostituição durante sua juventude. Aos dezesseis anos, seu pai o incentivou a contratar os serviços de uma prostituta para adquirir a educação sexual que não conseguiu lhe dar. A rejeição inicial foi substituída pela preocupação que todo jovem sente com o que é moralmente errado. Junto com seu amigo Brod, visita os bordéis dos países por onde viaja. É a partir do desgastado 1912 que a preocupação se transforma em paixão. E não estou falando de uma paixão tão lasciva quanto possa parecer (“Passo pelos bordéis como quem passa diante de sua amada”, escreveu certa vez).
 
Kafka encontra na figura da prostituta a espontaneidade que busca em sua literatura. A novidade e a descida ao escuro o atraem. Durante os cinco anos em que se relaciona com Felice, os altos e baixos do relacionamento fazem com que Franz visite bordéis toda vez que o namoro entre em crise. Sua casa, na esquina da Maisselgasse, curiosamente, fica ao lado de um deles. É o destino. Vagar pelas ruas observando-as. Admira os rostos delas. Suas pernas sugestivas. Segundo alguns depoimentos, se pergunta se é vil cobiçar seu corpo. Depois, indica que só o faz inocentemente, embora, com a sua habitual indefinição, confesse que é a melhor coisa que já conheceu. Como aponta Daniel Desmarquest em seu livro Kafka et les jeunes filles, em um fragmento deletado dos Diários, Brod deixa claro: “a única adequada para ele é a mulher suja, mais velha, completamente desconhecida, com coxas murchas”.
 
É o seu antigo vício, do qual ele só conseguirá se livrar quando a tuberculose se agravar. Mas a chave está aí, o melhor escritor do século XX encontra nestas mulheres uma porta para aquele mundo sombrio e desconhecido que também procurou na sua literatura. Suas páginas estão repletas de personagens femininas dispostas a usar seus corpos. Personagens rudes, pontuais e desfocados. Não devemos esquecer que Kafka é um homem sedutor. Tem 1,80 m de altura, quase vinte centímetros acima da média dos homens de Praga da época. As mulheres se aproximavam dele, como demonstram as inúmeras aventuras que manteve com a garçonete do outro lado da rua ou com a proprietária do armarinho da esquina. Gosta de chafurdar na lama da oportunidade perdida, de amar aquela pessoa que foi deixada de lado. Porque se sua obra fala de alguma coisa, é da solidão. Ou melhor, transformar o sentimento atroz que acompanha a solidão em algo natural, reconhecível e até gentil. E prostituição é isso, solidão. Por isso, na relação entre uma prostituta e seu cliente podemos ver refletidas todas as relações entre os personagens de Kafka e o próprio Kafka. O que são Samsa e K. senão personagens prostituídos pelo seu próprio destino?
 
É o ponto de encontro entre essas duas rotas de que falamos no início. Era necessário escapar daquele século XX, daquele monstruoso inseto. Ele havia procurado um antídoto e, sem perceber, o encontrou. Literatura e prostituição. Prostituição e literatura. Mas deixemos que o próprio Kafka se despeça destes parágrafos com um fragmento do seu próprio mundo, desta vez de O castelo (1926):
 
“Eles se abraçaram, o pequeno corpo ardia nas mãos de K., eles rolaram, num estado de esquecimento do qual K. tentava contínua mas inutilmente se livrar; alguns passos à frente, bateram surdamente na porta de Klamm e depois ficaram deitados nas pequenas poças de cerveja e outras sujeiras que cobriam o chão. Ali passaram-se as horas, horas de respiração confundida, de batidas comuns do coração, horas nas quais K. tinha sem parar o sentimento de que se perdia ou estivesse numa terra estranha como ninguém antes dele, uma terra estranha na qual até o ar não tinha nada de familiar e em cujas tentações sem sentido não era possível fazer nada senão ir em frente e continuar se perdendo. Assim, para ele, pelo menos no início, não foi um susto, mas um chegar consolador à consciência quando, do aposento de Klamm, Frieda foi chamada por uma voz profunda, que ao mesmo tempo ordenava e era indiferente”.1
 

Notas da tradução:
1 O excerto aqui citado é da tradução de Modesto Carone (Companhia das Letras, 2000).


* Este texto é a tradução livre de “Kafka: literatura y prostitución”, publicado aqui, em Jot Down.

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