Por José Agustín Mahieu
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Anthony Perkins como Josef K. em O processo, de Orson Welles |
Examinando a filmografia dedicada a Franz Kafka, o que chama a atenção,
mais do que a sua escassez, é o distanciamento concreto que a maior parte das
obras estabelece da complexa urdidura criada pelo autor. Não se trata de uma
infidelidade aos originais: em geral estas obras têm respeitado, talvez
demasiadamente, os aspectos externos do mundo de Kafka. E já se sabe que no
cinema inspirado na literatura nada engana mais do que a fidelidade formal.
Acontece que o único cineasta suficientemente brilhante (e/ ou vaidoso) para
ousar dar a sua própria interpretação de uma história do escritor tcheco foi
Orson Welles em O processo: discutível, sem dúvida, mas nunca
superficial.
Em primeiro lugar, parece óbvio que a persistente relutância do cinema ante
a possibilidade de “adaptar” Kafka se deve em grande parte às suas dificuldades
formais; não tanto pelos seus “roteiros”, quase sempre de uma enganosa
simplicidade inicial, mas pelos seus desenvolvimentos, cujo giro vertiginoso
entre as fronteiras do sonho, da vigília e do absurdo lógico, deve assustar o
mundo concreto da imagem. Como é natural, falamos aqui do cinema-industrial, que
tem pouca inclinação para aventuras intelectuais. Mas se recorrermos aos anais
do cinema experimental e de vanguarda, fora dos circuitos comerciais, descobriremos
que o nome de Kafka está ainda mais ausente: a nossa busca só encontrou uma
versão (16 mm, média-metragem) de O processo realizada em Buenos Aires
por três membros do Clube de Cinema Argentino em 1956 e que comentaremos mais adiante.
Poderíamos falar de uma incompatibilidade intrínseca entre cinema e
Kafka? Obviamente que não, apesar das dificuldades de apreensão; basta lembrar
que sua obra tem parentesco — até mesmo antecipações — da visão expressionista
e até de alguns elementos do surrealismo. E ambos os movimentos, como se sabe,
tiveram representação própria no cinema da década de 1920 e na vanguarda
francesa do mesmo período, sem esquecer que persistem na imagem cinematográfica
metáforas e elementos de estilo que prolongam a audácias antigas. Apesar da
tendência ao realismo ou ao naturalismo, que influencia grande parte do cinema
realizado, a sua história tem por vezes uma atmosfera kafkiana. Sem Kafka, certamente.
Há um “clima” kafkiano, como foi dito, em certos filmes expressionistas
alemães, desde o inevitável O gabinete do dr. Caligari de Wiene até A
última gargalhada de Murnau. Esse filme, aliás, agora foge da categoria
expressionista e entra no chamado Kammerspiel. Mas, em vez de se ater às
escolas formais mencionadas, Murnau descreve uma história de decadência que se
enquadra perfeitamente no tema kafkiano do indivíduo destruído por uma ordem
incompreensível.
Certos cineastas mais atuais, como azerbaijanês Mansur Madavi em Die glücklichen Minuten
des Georg Hauser e o iraniano
Shahid-Saless em filmes como Ṭabiʿat-e bijān (Still Life),
Reifezeit (Time of
Maturity) e, sobretudo, em Ordnung (Order), parecem comprovar que o mundo de hoje é mais kafkiano do
que nunca. Os seus protagonistas vivem isolados e rejeitam a ordem absurda e
impassível que os rodeia; em vez disso, são rejeitados, como corpos estranhos.
Sem dúvida, a lista de obras cinematográficas com ecos kafkianos (ou que
registram uma visão de mundo semelhante à de Kafka) poderia ser interminável e
talvez de pouca utilidade, porque na sua maioria apenas coincidem com o autor
de O castelo em sua maneira de apreender a realidade em alguns aspectos;
influências diretas, entretanto, são muito mais raras.
As versões
Outra forma de representação, o teatro, recorreu com mais frequência a
Kafka para traduzir várias de suas obras em dramas. Desde o já clássico Le
procès de André Gide e Jean-Louis Barrault, representado em 1947, as
adaptações para o palco foram inúmeras. Citemos apenas, entre elas, as outras
versões de O processo: Jan Grossman em Praga (1966), Peter Weiss em
Bremen (1975), Steven Berkoff em Düsseldorf (1976). Amerika também teve
sua versão, adaptada pelo próprio guardião da obra de Kafka, Max Brod. Foi
apresentada em Zurique em 1957 e refeito por Barrault em Paris em 1965. Um
relatório para uma Academia, por sua vez, foi muito popular graças à sua
capacidade de ser convertido em monólogo. Foram inúmeras versões, inclusive na
Alemanha (Berlim, 1962) por Willy Schmidt, em Estocolmo, em Paris, Malmö,
Buenos Aires, Barcelona etc.
O castelo, adaptado por Max Brod, foi apresentado em 1953 em Berlim. No
mesmo ano, no teatro intimista de Malmö, então dirigido pelo jovem mas já prestigiado Ingmar
Bergman, foi reapresentado com produção do próprio Bergman, que alternou esse
trabalho teatral com a filmagem do seu Noites de circo.
Quando Orson Welles apresentou a sua própria versão cinematográfica de O
processo em 1962 — outro dos seus feitos ciclópicos, cumprido na contramão do fluxo de produtores e demais
elos da cadeia do entretenimento —, já existia um precedente modesto, mas
interessante, filmado em 1956 por três cineastas amadores argentinos: Oscar
Bonello, Osvaldo Vacca e Roberto Robertie. Era um média-metragem de 16mm, feito
com meios bastante precários, mas que tinha uma atmosfera apropriadamente
kafkiana, com elementos expressionistas. Esta versão de O processo,
dirigida e montada por Robertie, recebeu o primeiro prêmio nos festivais de
Rapallo (1957) e Merano (1958), ambos na Itália. Ainda tem uma nuance simbólica
irônica que as duas versões cinematográficas de O processo coincidam em
algo, apesar das distâncias siderais que as separam no custo de produção e na
concepção artística: uma é um filme amador; a outra, uma obra espetacular e
soberba, mas que também não agrada aos circuitos comerciais.
Como arte de massa, o cinema sofre — segundo seus críticos — uma
tendência a absorver inovações com décadas de atraso... Os mesmos críticos
apontam que os movimentos artísticos mais revolucionários do século XX —
dadaísmo, cubismo, surrealismo, expressionismo — só apareceram no cinema dentro
de grupos minoritários de vanguarda, que nunca acessaram filmes industriais com
temas semelhantes. O próprio Buñuel, cujos filmes puramente surrealistas (O cão
andaluz e A idade do ouro), que foram realizados graças a ilustres mecenas
em forma artesanal, só pôde apresentar as suas concepções filtradas através de
histórias mais clássicas. E isso depois de muitos anos.
A estes argumentos pode-se responder que o cinema, como forma de
expressão, responde a outras necessidades que não à plástica ou à literária.
Carrega linhas estáticas próprias, que correspondem à sua qualidade de arte
representativa, dramática, que ao mesmo tempo se desenvolve no seu tempo (a montagem)
e num espaço concreto mas virtual: a fotografia.
Se Kafka é o artista arquetípico do século XX, como intérprete da
solidão do homem imerso numa engrenagem incompreensível, o cinema é por sua vez
o meio — mecânico, fruto da tecnologia — que descreve em luzes e sombras o seu
caráter evanescente, reproduzido em milhares de telas, em histórias cuja
aparente simplicidade não evita o absurdo de sua linguagem imaginária. Chaplin,
e especialmente Buster Keaton, são profundamente kafkianos. O próprio Kafka,
certamente, admirou suas primeiras pantomimas mudas.1
Contudo, a dificuldade que pode ter tornado tão raras as versões cinematográficas
de Kafka é a mesma que aflige qualquer transferência entre meios de expressão
muito diferentes, e ainda mais em textos que carecem dos módulos clássicos de
desenvolvimento linear. Não são os “enredos”, mas o tema essencial de um
romance ou de um conto, bem como a disposição das tramas, sua expressão,
que torna tão difícil a tradução para a linguagem cinematográfica. Pelo mesmo
motivo, uma mesma história pode ter versões muito diferentes, dependendo do
diretor e do adaptador, ou uma narrativa insignificante pode se tornar uma
obra-prima, enquanto obras-primas como Os Irmãos Karamázov obtêm
adaptações penosas e defeituosas.
Este parêntese é útil para analisar a presença limitada de Kafka nos
cálculos dos cineastas, arriscando algumas de suas causas, mas não explica o
fato de que as versões para o teatro e mesmo para o rádio e a televisão sejam
mais abundantes. No primeiro caso, pode-se argumentar que o teatro não tem a
persistente propensão do cinema para o realismo; a televisão, por outro lado, é
ainda menos elitista que o cinema. Presumo, contra todas as esperanças, que as
razões têm pouco a ver com a criação artística. O cinema industrial raramente
se entrega a aventuras estéticas avançadas, mesmo quando — como no caso de
Kafka — consegue tirar vantagem da enorme fama do autor. Mas a televisão, cujo
caráter é ainda muito mais massivo que o do cinema, pode por vezes permitir
programas de divulgação cultural. Por isso, talvez, possam ser contadas mais
adaptações das obras de Kafka neste meio, cuja progressiva vampirização do
cinema o tornará, paradoxalmente, cada vez mais semelhante ao seu antigo rival.
Citemos alguns exemplos, antes de voltarmos aos filmes feitos especificamente
para a tela do cinema.
Em 1966, a BBC inglesa realizou um filme para televisão baseado na
adaptação de Amerika, feita por Max Brod para o teatro e revisada por
Barrault. O telefilme foi adaptado por Hugh Whitemore e dirigido por James
Ferman. Esses dados permitem supor que partia de uma concepção dramática mais
próxima do teatro, e não do romance. A BBC produziu outra versão do mesmo
romance em 1969, desta vez adaptada por Heinrich Carie e dirigida pelo tcheco
Zbynek Brynich.
Presumivelmente, as versões feitas de Um relatório para uma Academia
também se baseiam em suas adaptações teatrais; um filme para a televisão alemã
que participou do Festival de TV de Berlim em 1964, foi baseado na adaptação que Willy Schmidt fez em 1962
em Berlim; outro, realizado em 1969, na versão inglesa, foi uma produção
conjunta da televisão sueca e da BBC de Londres. Por fim, destacamos outra
adaptação sueca, um telefilme dirigido por Börje Ahlstedt em 1976.
O castelo, por sua
vez, foi apresentado na televisão de Hamburgo em 1962, adaptado e dirigido por
Silvain Dhomme. A BBC de Londres fez sua versão em 1964, com adaptação e direção
de Colin Nears. Existiu também versões de rádio alemãs e suecas.
De A metamorfose há um filme de TV feito para a ZD F alemã
em 1975, interessante à primeira vista porque sua adaptação e direção pertencem
ao cineasta tcheco Jan Nemec. Este diretor, um dos protagonistas da notável
cinematografia que brilhou em Praga durante a sua “primavera” política (Milos
Forman, Vera Chytilova, Evald Schorm, Jaromil Jires, Zbynek Brynich, Karel
Kachyna etc.), havia dirigido em seu país dois filmes notáveis e audaciosos: Diamantes da noite e A
festa e seus convidados, tão formalmente
audaciosos quanto corrosivos em sua visão da sociedade. Sua narração
cinematográfica em A metamorfose utiliza o recurso da câmera subjetiva:
ou seja, tudo é visto pelos olhos de Gregor Samsa. Com esta narração de “câmera
subjetiva” ele também evita o principal problema da adaptação cinematográfica:
tornar visível e concreto o enorme inseto e, assim, reduzir o poder sugestivo
que a narração escrita exerce sobre a imaginação. Outra Metamorfose (Förvandlingen,
1976) se passa na Suécia, dirigida por Ivo Dvorak. Pode-se até rastrear um
audiovisual francês, Metamorphose, realizado no Centro de Animação
Cultural de Orleans, com cenário de Oliver Katian, em 1972 2, que
encerra modestamente esta série de dramatizações da novela de Kafka.
Cinema, de novo
Detectamos quatro versões de A metamorfose dentro de um âmbito
que pode ser classificado como cinema experimental, fora da indústria. A
primeira, cronologicamente, é Metamorphosis (1951), dirigido por Bill
Hampton na Universidade de Michigan, em Ann Arbor. A esse respeito encontramos
uma crônica publicada pelo escritor argentino Enrique Anderson Imbert,
residente nos Estados Unidos, no n. 224 da revista Sur de Buenos Aires referente
aos meses de setembro-outubro de 1953, cujas reflexões parecem pertinentes,
especialmente na ausência de outras memórias sobre este filme esquecido; Imbert,
após explicar o recurso da “câmera subjetiva” (“Quem nunca pensou em um filme
em que a câmera parece transportada para dentro do protagonista?”) e observar
que só se lembra de um caso, A dama do lago, de Robert Montgomery (que
aliás era o único filme, naqueles anos, em que o método era utilizado
sistematicamente, do princípio ao fim), comenta que também aí o movimento de
câmara “não era suficientemente psicológico”. Ele prossegue descrevendo o filme
de Hampton, que foi “uma nova experiência” nesse sentido.
Bill Hampton pertencia ao Departamento de Literatura Inglesa da
Universidade de Michigan e para sua experiência kafkiana contou com a ajuda de
técnicos e estudantes daquela casa.
Essa experiência universitária e amadora parece ter transcendido o
campus americano, segundo Imbert, já que Jean Cocteau a solicitou como
convidada para um festival francês de filmes de vanguarda. O cronista descrevia
assim esta Metamorphosis: “Uma voz lê Kafka enquanto na tela aparece o
que Gregor Samsa vê, metamorfoseado em inseto; o chão, as paredes, os móveis, o
teto, a comida, as reações de seus familiares... Assim, enquanto ouvimos a
análise psicológica de Kafka, nos sentimos instalados dentro do monstro e
olhamos através de seus olhos. O movimento da câmera sob os móveis, pelas
frestas da parede e ao longo do teto — de onde observa o rosto erguido da irmã —
tem efeitos realistas inesperados. Apenas nos é dada uma rápida visão do
inseto: é a visão que o próprio Gregor dá ao seu corpo quando acorda, de
barriga para cima, e vê suas pernas magras balançando no ar. Gregor Samsa leva
uma pancada?: a câmera obscurece sua fotografia e ele se arrasta mancando...”
Anderson Imbert observa que o filme, inesperadamente, limita-se
humildemente a ilustrar a literatura, em vez de submetê-la aos seus propósitos.
No entanto, acrescenta, “o resultado é cansativo”: “O cinema não deve maltratar
a literatura mas também não se deve colocar ao seu serviço. Que deixe a
literatura em paz. Que o cinema seja cinema e desenvolva as suas próprias
possibilidades de expressão.”
Citamos todo o último parágrafo da crônica porque traz à tona um
problema clássico do cinema: a utilização de fontes literárias como inspiração
para suas histórias.
Para além das discussões canônicas que citamos anteriormente: as nuances
da fidelidade ao original, os problemas de adaptação e as consequentes mudanças
na linguagem, existe uma realidade que pouco tem a ver com estética: o cinema devora temas e precisa mais de enredos
do que os aparentemente fornecidos pelos roteiristas profissionais. Por isso,
desde o seu início, entrou na literatura universal (um pouco menos no teatro)
em busca de ideias. Quase sempre se trata de uma necessidade objetiva ou
comercial (o êxito de um best-seller, por exemplo) e não do desejo artístico de
tentar uma recriação autêntica.
No caso de Kafka, essas conveniências não são muito fortes: as suas
dificuldades na transposição cinematográfica e o seu caráter relativamente
minoritário explicam porque é que a indústria o considera menos atraente do que
um Tolstói ou um Alexandre Dumas, por exemplo. Pela mesma razão, as outras três
versões existentes de A metamorfose também pertencem ao campo do cinema
não comercial.
Lorenza Mazzetti (figura prestigiada do cinema experimental britânico da
sua época) realizou a sua Metamorphosis em 1953 para a Slade School of
Fine Arts de Londres; Angel Hurtado fez uma Metamorfose venezuelana em
1962 e, por fim, há um filme da Royal School of Arts, de Londres, adaptado por
Carlos Passini Duran em 1969. Como já se pode verificar a esta altura, nem os
autores do cinema não-comercial foram demasiadamente interessados na obra de
Kafka como um todo; quatro Metamorfoses e nenhuma das demais novelas;
talvez sua própria abstração narrativa assuste os cineastas.
Quando a indústria cinematográfica alemã propôs a sua única abordagem
contemporânea de Kafka (o novo grupo de cinema já era forte, com Herzog e
Fassbinder à frente), a obra escolhida foi O castelo. Seu ano de
produção foi 1968, mais famoso por acontecimentos próximos que pareciam
afastar-se da imobilidade metafísica. Seu diretor era Rudolph Noelte, cuja
marca na história do cinema é bastante escassa, e sua principal estrela era o
galã Maximilian Schell, que logo depois tentaria passar para atrás das câmeras,
com sorte variada. Junto com Schell (o agrimensor K., é claro), Cordula Trantow
(a empregada Frieda), Trudik Daniel (a esposa do gerente), atuavam Helmut
Qualtinger (o secretário Bürgel) e Franz e Johann Misar (ajudantes de K.).
Embora Noelte pratique uma certa sutileza kafkiana — o castelo nunca é visto,
sua presença ou distância é vista em plena luz ou neblina —, o filme nada mais
foi do que um ambicioso fracasso, que passou sem dor nem glória por vários
festivais, entre eles o de Veneza.
Uma experiência latino-americana
Quando menos se espera, pode surgir um Kafka. Assim nasceu no Chile,
entre 1970 e 1971, um filme do então enfant terrible do drama e do
cinema de seu país, Raúl Ruiz. A colônia penal transporta a base da narrativa
kafkiana para uma situação latino-americana (e isso não destoa, já que a
própria realidade daquela parte do mundo é em si kafkiana). Raúl Ruiz, um dos
mais originais cineastas latino-americanos, mais tarde radicado em Paris, onde
continua o seu trabalho único em francês, inspirou-se muito livremente em
Kafka. Antes disso, certos elementos da linguagem ibero-americana foram
pensados à maneira de Tirano Banderas. Outra vez
— diz Ruiz numa entrevista já antiga — “... tudo
isto dentro de uma perspectiva política no sentido de
mostrar os lugares-comuns latino-americanos utilizados e reinterpretados em
centros de consumo localizados na Europa ou nos EUA. Usei personagens do tipo
Oriana Fallaci ou instituições como a UPI, países como a Bolívia, e principalmente
fiz o filme”3.
Anos depois (na época da entrevista anterior, A colônia penal não
estava finalizada) Ruiz disse à revista Positif4: “É o
longa-metragem mais abstrato que já fiz. É uma novela de Kafka na qual incluí
elementos latino-americanos: em vez de produzir matérias-primas, um governo
militar ‘produz’ informação manipulada.”
Na verdade, o próprio Ruiz mostrou ao autor desta nota uma parte de A
colônia penal em fevereiro de 1971, numa montagem provisória. Várias coisas
poderiam ser deduzidas de tudo isso: a primeira e mais conjuntural foi a
lendária precariedade de meios do jovem cinema chileno da época e o próprio
caráter do diretor: uma grande dose de improvisação prática (que o levou a
deixar seus primeiros filmes inacabados), uma constante adequação às
experiências diretas de uma filmagem boêmia e aparentemente caótica e — por
detrás de tudo isto — um extremo rigor intelectual, que lhe permitia
transformar esse aparente caos num discurso coerente.
Quanto à invenção kafkiana, ela está bastante escondida sob a forte
personalidade de Raúl Ruiz, cujo sentido do absurdo é muito menos desesperador
e metafísico do que aquele que dominou a literatura do autor tcheco.
Onde o filme se junta à parafernália kafkiana é no funcionamento do país
latino-americano como produtor de “notícias” falsas e manipuladas, financiadas
pela FAO e pela United Press... Mas
como já dissemos, esta visão kafkiana do mundo é completamente
latino-americana, ao mesmo tempo excessiva, vital e sarcástica, sem perder a
sua dimensão alucinatória. Acontece, talvez, que esta imagem característica do
homem sozinho, minúsculo e esmagado por um sistema ubíquo, distante e
indiferente, assume aqui um significado mais aterrorizante e violento. E isso,
apesar da desigualdade da luta, permite-nos sentir um universo menos fechado e
com alguma saída distante, mas visível.
Esta rebelião do homem minúsculo contra o poder — que em Kafka é
ilusória — é também o pano de fundo implícito que Orson Welles deu ao seu Josef
K. em O processo. Por isso, têm algum peso as críticas que contestam a
infidelidade do filme de Welles ao sentido da novela kafkiana.
Apesar de ser uma coprodução cara e complexa entre França, Itália e
Alemanha Ocidental, foi reconhecido que é o único filme de Welles — além de Cidadão
Kane — onde ele exerceu controle total, incluindo a montagem. Isso permite
atribuir a autoria e total responsabilidade da obra ao famoso cineasta, pois
embora a história seja muito fiel aos acontecimentos do romance, exceto pelas
transposições e mudanças de cena e cenário destinadas a atualizar o tempo da
ação (como apontou Sadoul), por trás de tudo isso há “reflexões de Welles sobre
si mesmo e sobre o mundo moderno”.
O mesmo historiador enumera uma série de cenas em que triunfa o
barroquismo imaginativo de Welles: “Grande parte da ação foi filmada no vasto e
fantástico cenário de uma estação ferroviária abandonada, a Gare d'Orsay, que
Welles transforma numa espécie de antecâmara do inferno. [...]. O filme está
repleto das tradicionais imagens barrocas de Welles: o enorme escritório
ecoando o eco das máquinas de escrever; K. e Leni (Romy Schneider) fazendo amor
em um mar de arquivos e papéis; o escritório de Hastler (Welles) repleto de
móveis rococó, arquivos e velas; uma catedral pseudogótica vista à noite na
Europa Central (parte do filme foi filmada em Zagreb); o corredor sem fim; as
perturbadas mulheres Hilda (Elsa Martinelli), Leni e Miss Burstner (Jeanne
Moreau) — com quem K. tem interlúdios românticos; o servilismo do judeu Block
(Akim Tamiroff) para com Hastler; a presença dominante, onipresente e grotesca
do cruel e indiferente Hastler; a morte de K. acompanhada de uma explosão
atômica [...]”5.
Essa última cena, justamente, dá o tom da concepção wellesiana,
grandiosa, monumental e às vezes um pouco ingênua, como em todas as obras desse
gênio irregular e fora da lei. Seu Josef K. talvez seja menos sutil e submisso
do que o desejável; a interpretação do âmbito em que seus personagens se movem
também é menos sutil; o poder, na visão de Welles, é tão terrível, onipresente
e misterioso como em Kafka, mas a sua dimensão é mais terrena, tem nomes e
símbolos visíveis: o estado policial, o militarismo e a sua implementação pelas
elites econômicas, a tecnologia ao serviço da destruição da humanidade, citada
no final com o holocausto atômico...
Diante de um Josef K. impulsivo e sem ambiguidades psicológicas (no
fundo, os personagens kafkianos do cineasta são pouco matizados ou carecem de
ambiguidade objetiva), Orson Welles decifra o caminho de sua imolação através
de cenários de pesadelo, que são os verdadeiros protagonistas deste filme extraordinário
e ainda discutível.
Welles, ao apresentar a história de K. em seu prólogo, diz que ela “tem
a lógica de um sonho, de um pesadelo”. Esta, pode-se suspeitar, é a
simplificação mais perigosa que Welles opera no texto kafkiano. Porque combinar
os pesadelos diurnos de Kafka com o sonho é pelo menos uma visão superficial. O
caráter verdadeiramente perturbador das concepções kafkianas é a falta de
qualquer álibi onírico: se o sonho é uma realidade interna na vida do homem, o
pesadelo kafkiano é uma realidade externa, que se impõe aos seus seres com uma
falta de lógica que pertence a um mundo inexplicável, mas tangível, material. É
bastante óbvio que se Kafka leva Josef K., Gregor Samsa, ou o agrimensor, a
situações aparentemente impossíveis, é porque representam apenas uma acentuação
exemplar da realidade do mundo, como a história moderna parece confirmar...
Onde o cineasta consegue uma criação que coincide tanto com a sua visão
pessoal como com a de Kafka, é na atmosfera e no tempo, realçados por sua vez
pelos extraordinários cenários escolhidos e já mencionados acima. O barroquismo
visual de Welles dá vida própria a esses espaços desproporcionalmente vazios ou
abarrotados de objetos absurdos. Todos eles conseguem — como a leitura das
obras de Kafka — produzir um desconforto infinito, uma sensação de sonho
monstruoso do qual é impossível escapar porque está além da vontade. É a mesma
trama de opressão absurda e lacônica, do medo e da solidão.
Em todo o caso, como sempre quando surge o problema da adaptação
cinematográfica de obras literárias (sobretudo quando são importantes e não
simples fontes de “roteiros”), surgirá o dilema desta transposição de termos,
de valor para valor. Quando se trata de romances de ação (como os de Dumas ou de
Walter Scott), a transição para a imagem cinematográfica não apresenta muitas
dificuldades, porque o essencial da palavra, neles, não é expressar ou recriar,
mas descrever imagens. Mas mesmo aí é impossível evitar a contradição entre os
dois meios: no livro as imagens vão se formando gradativamente, no tempo da
leitura. No cinema as imagens são simultâneas. Como escreveu Jean Mitry (Esthétique
et psjchologie du cinema), “...enquanto tentar ‘visualizar’ as imagens que
a leitura faz nascer no espírito, é um absurdo. Além de a imagem mental
depender do leitor, ela se situa no nível conceitual, enquanto a imagem
cinematográfica é um dado objetivo. O que corresponde, no cinema, à imagem
mental é a ideia que nasce de uma relação de imagens, e de modo algum a
imagem em si”.
Não podemos, portanto, esperar num universo literário como de Kafka um
equivalente cinematográfico. É fácil dizer: “É preciso ser fiel ao espírito e
não à forma”, transformando suas estruturas e seus dados. Mas na literatura, letra
e espírito são interdependentes... Como disse René Micha, “A linguagem
da arte é inseparável dos signos que a revelam”. Deveríamos então abominar
qualquer projeto de filme que queira recorrer a uma fonte literária? Não,
claro, se o talento do recriador cinematográfico conseguir (como raramente
acontece) uma obra significativa. Mas sempre, para o bem ou para o mal, será
outra coisa.
Notas:
1 W. Jahn discorreu acerca da influência do cinema mudo em Amerika: “Uma inclinação para representar a realidade visível mas não em forma realista e sim através dos módulos da pantomima cômica do cinema.”
2 Menciona-se aqui este audiovisual (que como se sabe é uma combinação de fotos fixas projetadas e uma trilha sonora sincronizada) porque a encenação de Katian incluía a construção de um labirinto que o espectador devia percorrer e onde se reproduziam algumas visões kafkianas.
3 Entrevista de Lázaro de Cárdenas para a revista peruana Hablemos de cine, realizada em Paris, em julho de 1971.
4 Positif, dezembro de 1974, Paris.
5 Georges Sadoul. Dictionary of Films (Edição traduzida, atualizada e editada por Peter Morris). Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1972.
* Este texto é a tradução de “Kafka y el cine” publicado na edição
401 dos Cuadernos Hispanoamericanos.
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