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João Silvério Trevisan. Foto: Brigitte Friedrich |
A obra de João Silvério Trevisan
marca de forma perene a literatura brasileira desde a década de 1970. O
escritor figura entre aqueles que transformaram temas e situações da comunidade
gay em matéria criativa de sua literatura, que ora assumem o enfrentamento aos
modelos impostos pelos padrões, ora em denúncia das múltiplas violências geralmente
entregues por essa sociedade fundada no dogmatismo e sectarismo.
O sobrenome
Trevisan logo recorda
o de outro escritor essencial da literatura brasileira, o curitibano Dalton
Trevisan. Pura coincidência notável também no gosto e no lugar central que
ocupam no nosso universo literário. Mas, a família de João Silvério é do
interior de São Paulo; ele nasceu em Ribeirão Bonito, no dia 23 de junho de
1944. Cada um dos escritores forma parte, assim, em gerações distintas. Pelas filiações
temáticas e temporais, o autor aqui em destaque se encontra mais próximo de
outros nomes de sua época, como Caio Fernando Abreu ou de outro gaúcho, João
Gilberto Noll.
A família deste outro Trevisan também
não era abastada e as muitas questões literárias, embora se aproximem de um
tipo do realismo pré-condicionado por Dalton Trevisan, adquirem contornos
próprios; isto é, são, de alguma maneira, movidas por esse lugar social, como é
recorrente em todo fazer artístico. Para seguir os estudos (e talvez escapar
daquele destino antevisto na vida do pai entregador de pães), João Silvério
entrou para o seminário, mas abandonou a formação religiosa uma década depois, abrindo-se
publicamente, em pleno AI-5, o ato que deu à ditadura os poderes mais duros,
como homossexual.
É da mesma época que passará a
receber na formação as influências ideológicas e criativas dos múltiplos movimentos
de resistência aos ditames da ordem dominante, especialmente quando trava
contato com as várias frentes marginais na sua estadia na Califórnia. A passagem
pelos Estados Unidos entre 1973 e 1974, e depois pelo México em 1975, se deveu,
como é possível supor, pela perseguição da ditadura; em 1970, Trevisan colocara
em público o filme
Orgia ou homem que deu cria, logo censurado.
Sua estadia com o cinema resultará
ainda noutras obras para as quais escreveu o roteiro ou conduziu adaptações. São
algumas:
Doramundo (1977);
A mulher que inventou o amor (1979);
Julia
Mann: memórias do paraíso (2005); ou adaptação do seu conto de mesmo título
no curta
Variações sobre um tema de Mozart (2005).
A vivência latino-americana e
estadunidense somadas à sua própria inquietação leva-o a formar no retorno ao
Brasil num dos primeiros grupos em defesa dos direitos homossexuais e de sua descriminalização.
Entre as atividades criativas nessa frente, vale citar o jornal
Lampião da
esquina, que João Silvério Trevisan mantém entre 1978 e 1981, de fundo subversivo
e plenamente atuante na divulgação da defesa dos direitos civis. É nesse ínterim
que começa a publicar suas primeiras obras, como a coletânea de contos
Testamento
de Jônatas deixado a Davi (1976).
Variando entre o cinema, o teatro
e formas diversas da prosa, como o conto, a novela, a crônica, o romance e o ensaio,
João Silvério Trevisan amplia seu universo criativo com trabalhos que alcançam
sucesso público e reconhecimento da crítica, merecendo, por exemplo, várias
vezes, algumas das premiações mais importantes do seu meio, como o Prêmio da
Associação Paulista de Críticos de Arte (recebido três vezes, em 1987, 1994 e
2009) ou o Prêmio Jabuti (em igual quantidade, em 1993, 1995 e 1998).
No conto, além do livro de 1976,
publicou
Troços & destroços (1997); publicou a novela juvenil
As
incríveis aventuras de El Cóndor (1980); os romances
Em nome do desejo
(1983),
Vagas notícias de Melinha Marchiotti (1984),
O livro do
avesso (1992),
Ana em Veneza (1994) e
Rei do cheiro (2009); no
ensaio, destaca-se sua obra mais conhecida, continuamente reeditada e marco na
historiografia da homossexualidade no Brasil,
Devassos no paraíso (1986),
Seis balas num buraco só: a crise do masculino (1998) e
Pedaço de mim
(2002).
Embora centrado em dilemas e
universo específicos, sua obra continua a expandir questões universais e a provocar
inquietações, sobretudo, numa sociedade interessada em se manter refém de seus
próprios dogmas e daquelas violências produzidas nos seus modelos predominantes,
como o falocentrismo, que tem modelado a cultura e os costumes desde as nossas
origens.
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