Por Amanda Fievet Marques
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Louis-Ferdinand Céline (o segundo à direita) no hospital Val-de-Grâce, 1914. |
Em agosto de 2021, o meio
literário e editorial foi surpreendido pela notícia dos manuscritos
redescobertos do escritor francês Louis-Ferdinand Céline. Guerre é o
primeiro desses textos a ser publicado pela Gallimard, em 2022. Ele relata o
ferimento de Ferdinand na Primeira Guerra Mundial e sua subsequente
convalescença em Peurdu-sur-la-Lys. Atribuído pelo editor, Pascal Fouché, ao
ano de 1934, a datação do manuscrito é discutida por Mela e Pellini (2022), que
propõem, por meio de análise filológica, que o texto tenha sido escrito, de
fato, entre 1930-31. A importância da publicação desse manuscrito se deve tanto
à possibilidade de compreender o desenvolvimento do estilo de Céline, quanto
seu projeto literário mais amplo, como aponta Costa: “Os manuscritos
redescobertos de Céline ajudam a compreender melhor o processo de elaboração do
projeto, formulado por volta de 1934, de uma trilogia romanesca sobre ‘a infância,
a guerra e Londres’” (Costa, 2023, p. 18). Nesta resenha, pretendemos explorar,
de nossa parte, alguns aspectos estéticos constitutivos do universo de Céline,
que observamos já se delinearem em Guerre. Dentre as seis partes do
manuscrito, destacaremos os seguintes aspectos, que por vezes se entrelaçam: a
musicalidade, a metaliteratura, o delírio, o cômico da sátira social e do
grotesco, a função mnemônica.
O primeiro capítulo de Guerre,
inicia-se com o narrador estirado no chão, sua orelha e boca encharcados de
sangue, sua consciência entrecortada, achacada por ruídos. A musicalidade se
exprime, aqui, pela dimensão sonora da guerra, que embaralha ruídos externos e
internos. Os ruídos que são originariamente das batalhas, dos assobios dos
obuses, dos tiros de canhão, passam a ecoar na consciência alquebrada do
narrador, que sob os efeitos do massacre e do sofrimento físico declara: “Tô
com a guerra agarrada na cabeça. Ela tá trancada na minha cabeça”1 (Céline,
2022, p. 17). Daí provém uma concepção de literatura, que é definida de forma
oximórica. “Bela literatura”, para Céline, é a expressão de “pedacinhos de
horror arrancados do barulho infindável”2 (ibid., p. 19). O
estatuto da consciência é intermitente, tanto pela privação de sono, quanto
pela dor física. A ela corresponde, portanto, um corpo fragmentado, cujas
partes são experimentadas até a desintegração. Há que se destacar também o
aspecto que se relaciona ao que Michel Beaujour (1972) denominou como “a busca
do delírio”, que atravessa a obra de Céline. Em Guerre, o estado físico
do narrador é, no mais das vezes, febril, o que instaura um outro regime de
percepção, relacionado tanto à experimentação de alucinações, quanto à
possibilidade de aceder a uma visão, a um ponto de vista literário, que se
consuma, ainda que por meio de um corpo e sintaxe despedaçados, e de uma
consciência trôpega.
Na segunda parte do manuscrito,
esse aspecto delirante está, tanto quanto, largamente presente. Aqui, Ferdinand
rememora seu resgate ao hospital de campanha Virginal Secours, em
Peurdu-sur-la-Lys, após ter passado dois dias e duas noites ao relento, na
grama, delirando. O narrador refere a ficção a esse estado febril, que, segundo
ele, é a gênese de sua escrita. É assim que lhe ocorre a visão da lenda
medieval do Rei Krogold e da Princesa Wanda. Um outro elemento importante é o
cômico, que se desdobra tanto por meio da sátira social, acentuada pelas
hipérboles e pelas invectivas, quanto pelo grotesco, reforçado, aqui, pela
utilização do argot e da linguagem popular. O tom satírico é de pronto
anunciado por meio do diálogo com o leitor. A sátira, que parte dos vícios,
manias, crenças das personagens para em seguida desqualificá-las
hiperbolicamente, dirige-se a todas as personagens que ocupam uma posição de
autoridade com relação a Ferdinand: a chefe de enfermagem, srta. L’Espinasse,
que tem relações sexuais com os enfermos e chega a praticar necrofilia com os
já vindimados, pregados nos caixões, o Dr. Méconille, o padre, o general/ comandante
Récumel e, enfim, seus pais. É contra o estilo literário de seu pai, Auguste —
com quem mantinha correspondência regular —, marcado pela elegância, que o
narrador se posiciona. Naturalmente, essa diferença com relação ao estilo do
pai se faz em prol de uma outra noção de literatura, que se relaciona à criação
de “uma música mais viva” (cf., ibid., p. 45).
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Primeira página do manuscrito redescoberto Guerre (Gallimard, 2022) |
Na terceira parte do manuscrito,
acompanha-se a rotina de recuperação de Ferdinand em Peurdu-sur-la-Lys, sua
amizade com o combatente e cafetão Cascade/ Bébert3 que fora ferido
no pé, sua frequentação ao Café da Hipérbole.4 Ferdinand teme a todo
tempo a presença do comandante Récumel, responsável pela eliminação sádica dos
soldados infratores ou desertores por fuzilamento, que ocorria duas vezes por
semana atrás do grande seminário. Essa tensão só se resolve ao final do capítulo
quando Ferdinand é condecorado com a medalha militar por citação do Marechal
Joffre.
No quarto capítulo, o narrador,
retomando o viés satírico, empreende uma crítica aos valores modernos, a
começar pelo militarismo. Aqui, após a condecoração, Ferdinand, seus pais, seus
amigos, e a srta. L’Espinasse, são convidados a almoçar na casa do agente de
seguros Coccinelle, o patrão de Auguste, sr. Harnache. Embora ele próprio
considere sua medalha uma farsa, um “romance”, Ferdinand decide aceitar o
“vento que sopra”, o “aquilão favorável”, e “subir no cavalo de madeira todo
ajaezado de mentiras e veludos”5 (ibid., p. 77). Enquanto se
favorece pela sorte da condecoração, assumindo seu valor fictício, observa os
engodos de que são presas seus pais, impressionados pelas tropas, pelos feitos
militares, pelas conquistas materiais do sr. Harnache (cf., ibid., pp.
78-9). No momento dos aperitivos, durante o almoço, entre os comentários
tecidos sobre o desenrolar da guerra, Ferdinand ironiza a estreiteza de visão
dos seus pais, constituída pelas ilusões que repousam na negação da verdade
atroz do mundo, crentes resolutos na possibilidade de uma “intervenção suprema”
contra as ações cometidas pelos alemães (cf., ibid., p. 82). Essa
negação da verdade do mundo é referida, em seguida, tanto como “uma língua
bizarra, pra falar a verdade, uma grande língua de babacas”6 (idem),
quanto a expressão de um ponto de vista arraigado na concepção da
remediabilidade das coisas (cf., ibid., p. 83). O narrador amplifica os
efeitos nauseabundos do comportamento resultante dessas ideias diretrizes ao
converter, finalmente, o otimismo cego de seus pais num “polvo bem pesado e
colento como a merda”7 (idem). O polvo do otimismo estende
seus tentáculos sobre a verdade da degradação e do declínio. Dessa forma, a
lucidez, a ruptura da asfixia imposta por suas ventosas sufocantes, é o
desespero: “desesperar um pouco do mundo e da vida”8 (idem).
A crítica se estende também às pretensões metafísicas do discurso religioso
conduzido pelo padre — “suas palavras todas unguinosas e biliosas”9
(ibid., p. 84) —, perante sua mãe, devota e boquiaberta.
O quinto capítulo é escrito sob o
signo da iminência e do acontecimento da morte de Cascade, após a delação de
sua mulher, a prostituta Angèle. No primeiro parágrafo, todavia, antes de
esboçar o desfecho, o narrador estabelece algumas distinções importantes
relativas à sua arte literária. A primeira delas diz respeito à identificação
entre narrador e protagonista, muito embora se diferenciem temporalmente: o
narrador mais velho que reconta as experiências vividas quando mais novo, só é
efetivamente capaz de nomear e ficcionalizar a partir de suas lembranças
naquele momento da narração. A memória, aqui, a mola da narrativa, é
explicitada também a partir de uma crítica ao idealismo. Lembrar-se, para
Ferdinand, é traiçoeiro. Só violado, por um ato intenso comparado ao ato
sexual, que o passado se revela: “Bem fodido, o passado, ele se entrega, por um
instante, com todas as suas cores”10 (ibid., p. 92). Tal
concepção crua de memória é um dos elementos mais originais do manuscrito.
No sexto e último capítulo, o major
Cecil B. Purcell, cliente de Angèle, decide levar ambos, Angèle e Ferdinand,
para a Inglaterra. Ferdinand chantageia L’Espinasse para obter alta, com o
intuito de viajar a Londres. O traslado até lá se dá por alguns elementos
também caros à obra de Céline. Nesse momento, é o universo marítimo que se alia
ao delírio: a bordo do navio a caminho de Londres, entre o movimento das ondas,
o narrador confunde seus ruídos intermitentes às vertigens provocadas pelo
navio.
Nosso objetivo foi demonstrar, ao
longo das seis partes do manuscrito redescoberto Guerre, aspectos
estéticos que atravessam o desenvolvimento da obra romanesca posterior de
Céline. Quanto à literatura, ela está, aqui, nas primícias de uma tentativa
musical, delirante, hilariante, de transmutação do horror da guerra, levada a
cabo por Céline.
Ligações a esta post
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Leia aqui o texto “A caixa do apocalipse”, também acerca de
Guerre.
Notas
1 No original: “J'ai attrapé la
guerre dans ma tête. Elle est enfermée dans ma tête”. Todas as traduções
propostas, aqui, em português, são de próprio punho.
2 No original: “petits morceaux
d'horreur arrachés au bruit qui n'en finira jamais”.
3 A oscilação onomástica, nesse
caso, é própria ao manuscrito.
4 No original: Café de l'Hyperbole.
5 “monter sur un destrier tout en bois, tout harnaché de mensonges et de
velours” (ibid., p. 77).
6 “une langue bizarre à vrai dire, une grande langue de cons” (ibid.,
p. 82).
7 “pieuvre bien gluante et lourde comme la merde (…)” (ibid., p. 83).
8 “désespérer un peu du monde et de la vie” (idem).
9 “ses mots touts suintants et fielleux” (ibid., p. 84).
10 “Il est baisé le passé, il se
rend, un instant, avec toutes ses couleurs” (ibid., p. 92).
Referências
Beaujour, Michel. La quête du délire. In: Le Roux, Dominique; Beaujour,
Michel; Thélia, Michel (Orgs.). Cahier de L'Herne Céline. Paris:
Éditions de L’Herne, 1972, p. 30-65.
Céline, Louis-Ferdinand.
Guerre.
Paris: Gallimard, 2022.
Costa, Daniel Padilha Pacheco da.
Os manuscritos redescobertos de L.-F. Céline e a edição de Guerre.
Manuscrítica,
n. 49, p. 119-137, 2. sem. 2023.
Mela, Giulia; Pellini, Pierluigi. Genèse d’un best-seller. Quelques
hypothèses sur un prétendu ‘roman inédit’ de Louis-Ferdinand Céline. Paris:
Institut des textes et manuscrits modernes, 2022. Disponível
aqui. Acesso em: 14 fev. 2024.
* Amanda Fievet Marques nasceu em
1991, no estado do Rio de Janeiro. É graduada em Antropologia pela Universidade
Federal Fluminense (UFF). Possui Mestrado e Doutorado em Teoria e História
Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com foco em
literaturas francófonas. Durante o doutorado, estudou e traduziu o escritor
francês Louis-Ferdinand Céline.
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