Dois sherpas, de Sebastián Martínez Daniell

Por Pedro Fernandes

Sebastián Martínez Daniell. Foto: Crhistian Brea


 
Dois sherpas de Sebastián Martínez Daniell, o primeiro livro do escritor argentino traduzido no Brasil, funciona como a subida de uma montanha: conquista, se o leitor for persistente, por etapas. Seu itinerário de subida, embora perigoso devido as escolhas de desvio impostas à narrativa e suas reentrâncias, não é íngreme, mas é reiteradamente enfadonho; por vezes, com a pergunta que se forma a meio do romance, qual o motivo dessa escalada, é sempre possível o assalto de outra, o que encontraremos quando alcançarmos o topo. Pois bem, comecemos sabendo que esse ponto-limite não existe, porque, embora os protagonistas designados apenas como o sherpa velho e o sherpa jovem lidem com o montanhismo e estejam numa de seus itinerários em direção ao topo do Himalaia, toda tensão da narrativa se concentra em torno de um único acontecimento: a queda de um turista inglês sob o andamento dos dois guias.
 
À maneira dos modelos do chamado romance psicológico, mas nesse caso com as consciências expostas por um desenvolvimento do plano narrativo amparado por uma condução em câmera lenta nervosa, o romance prioriza o instante e este esgarça a narração; o narrador de Martínez Daniell trabalha como quem desmonta uma maquinaria, dela retirando peça a peça para deixar apenas o essencial com o claro interesse de que o objeto original não entre em funcionamento e sim adquira nova função uma vez concluído esse processo. A queda do inglês, o nó górdio da narrativa, permite uma variedade de questões e conformam um segredo no âmbito do que se conta mesmo que se dispense ainda o interesse investigativo ou este seja um dos referidos desvios assumidos no narrar. Duas referências, das muitas tomadas pelo romancista, parecem importantíssimas para compreendermos isso que agora evidenciamos.
 
No capítulo intitulado “Fora do campo”, o narrador recupera uma ideia de base fenomenológica segundo a qual “tudo que estamos acostumados a chamar de vida é, na verdade, sintoma. As ações, os pensamentos, as interpretações, os diálogos e solilóquios, as dores… não passam de projeções, emergentes, carimbos na superfície do cognoscível. Sintomas. O real está no fora de campo, permeia desde um além aberrante. É inacessível. E nós vamos nos conformando com o perceptível apenas. Um pouco ao modo dos astrônomos que inferem a presença do buraco negro invisível apenas por efeitos gravitacionais. O real está ausente: mal vemos suas consequências.” Nesse sentido, a presença sempre reiterativa do corpo do turista inglês tombado há muitos metros de distância dos dois sherpas é um exemplo da manifestação da realidade enquanto sintoma. Não é possível acessar minimamente como aconteceu o episódio sugerido (se até um acidente propositado) e nem se a queda significou o fim imediato do acidentado. O que é possível é acompanhar as conjeturas dos guias e delas inferirmos um campo de múltiplas evidências.
 
Tal propósito da narrativa — e de se indispor à atitude de retrato do acontecido, deixando à mostra os vários indícios para um possível — alinha-se ainda ao ponto de vista descentrado adotado na feitura do narrado. É singular nesse sentido o capítulo situado um pouco antes do referido no parágrafo anterior. Em “Zenital”, o narrador quer oferecer uma imagem dos elementos da única cena (podemos utilizar-se do termo sem justificações porque é esse mesmo seu papel na narrativa) que se manifesta como sintoma ao longo da narração: “Se a vista fosse zenital, distante, a paisagem seria bem distinta. Três homens: dois de pé, um deitado em posição estranha, apontando para o Oeste. Há uma imobilidade constituinte em todo o quadro. O que está deitado, presume-se daqui de cima, é quem menos sofre com aquele quietismo, quem mais se sente à vontade com o atual estado das coisas. Os dois homens que estão de pé, por outro lado, transmitem certa tensão, um grau de incômodo que não se resolve numa fuga cinética, mas em algo intangível, algum tipo de eletricidade, de estática que os circunda.” O tom pericial assumido pela voz narrativa é quase pura objetividade e contrasta com a acessibilidade que encontrará noutras passagens ao interior dos dois sherpas e das suas histórias.
 
Mas esse contraste encontra sua melhor definição — e eis a segunda das duas referências admitidas anteriormente — no capítulo “Pintores impressionistas”, um quase ensaio que recupera um acontecimento da história da arte envolvendo Monet e Renoir em 1869 no vilarejo de La Grenouillère, há setenta quilômetros de Paris. Os dois artistas decidem pintar ao mesmo tempo a mesma coisa e se colocam um ao lado do outro tendo diante deles um ponto de vista parecido. O resultado foi, para Monet, Bain à La Grenouillère e, para Renoir, La Grenouillère: “Os dois quadros não parecem tão distintos à primeira vista. Em ambos, um grupo de burgueses aproveita um dia de verão junto ao rio. […] É óbvio que na obra de Renoir há um grau de detalhe maior: distingue-se os chapéus dos cavalheiros, os laços em volta das cinturas das mulheres, as sombrinhas nas mãos das moças animadas à beira do rio no verão… A coloração do quadro decanta em meia dúzia de matizes de verde. Renoir é delicado. […] A obra de Monet, por outro lado, é uma série de borrões. Sim, aquilo é uma perna, e aquilo um banhista saindo da água, e aquilo deve ser a pequena ponte que conduz à ilhota. Sim, compreende-se tudo. Mas não deixa de ser uma série de borrões. Amarelos e azuis, e pretos em sua maioria (embora diagonais furiosamente vermelhas empenhem-se ao máximo a partir do canto inferior direito, a partir da beirada de um barquinho). Borrões: o eufemismo impressionista uma vez lançado à velocidade da arte moderna. A tela não cumpre mais uma finalidade cartográfica: não busca miniaturizar o vazio do sensível. Heurístico antes que mimético, o pincel é acionado e, nesse gesto libertário, torna-se um pouco solipsista.” É de pintura que fala esse narrador, mas poderia ser de literatura, da sua própria atividade literária, e por conseguinte, da própria obra que temos em mãos, toda ela, um procedimento de investigação de um problema a partir de um episódio-base.
 
O problema, à maneira do gesto impressionista, se desdobra em várias frentes: o convívio entre os sherpas e o inglês não é, como quase tudo nesse romance, entregue pelo narrador mas entrevisto quando somos introduzidos à opinião conflitiva do sherpa mais velho em relação aos turistas que ano a ano publicizam a conquista ao Everest como um feito próprio ignorando a mão-de-obra dos guias quase sempre reduzidos a animais de carga, opinião que encontra na história seu impasse, seja no tratamento dos europeus com o Nepal durante e depois as grandes investidas coloniais do Império Britânico, sejam as disputas pela conquista dos 8 848m de altitude do Everest, sejam ainda as manifestações de resistência dos sherpas em 2014 ante a exploração do seu país com o turismo na região da Cordilheira do Himalaia. Essas questões somadas à afirmativa peremptória de si para si do sherpa velho dizendo-se que não empurrou o turista inglês amplificam os sentidos da queda — são parte (como pista ou não) no grande mistério do romance.

Sebastián Martínez Daniell explora em Dois sherpas a homologia das formas e essa é outra das estratégias que organiza o romance. Essa noção de correspondência derivada da evolução natural pressupõe que a repetição, verificada da menor às mais complexas formas, produz o idêntico, mas este não constitui pura reiteração, o que leva o sherpa velho a pensar, observando a complexidade rochosa da montanha, que “o idêntico não existe”: “Não há dois que sejam iguais… E o céu?, poderiam perguntar. O céu não é sempre o mesmo em suas variáveis? Não é o mesmo celeste, nublado ou noturno? Não, diria o sherpa velho: não. Não é o mesmo nem nada.” O homólogo neste romance tem sua base, portanto, na própria natureza e algumas passagens, como o capítulo “Pioneiros da geologia”, por vezes recordam o mesmo gesto belamente registrado por Euclides da Cunha com Os sertões. No romance do brasileiro, educado na matriz positivista, as correspondências funcionam como determinantes, o que não é, pelo referido, verificado no caso do romance argentino. Os dois, por sua vez, alinham-se pelo interesse: o da luta do homem com a natureza.
 
Se voltamos ao encontro de Renoir e Monet, obteremos melhor um exemplo de como as similitudes se manifestam em Dois sherpas não por aparência mas por diferença; a partir dos artistas e dos seus pontos de vista que resultam em obras bem distintas, podemos justapor os próprios protagonistas de Martínez Daniell. O narrador diz que Renoir com La Grenouillère quer ser cronista — “Expulsadas as imagens religiosas e as hipérboles mitológicas, satisfaz-se pintando o que vê” — enquanto Monet em Bain à La Grenouillère manifesta sua única obsessão, a luz: “Cada componente do quadro é uma desculpa para estabelecer um novo ponto de ancoragem naquela discussão inacabada entre Monet e a luz. Motiva-o o debate sobre as possibilidades da arte.” Os procedimentos de feitura dos dois sherpas são os mesmos, o da perquirição psicológica combinada à descrição dos episódios singulares nas suas biografias, mas à medida que avançamos sobre o passado do sherpa velho antes de sua chegada a Namche aos trinta e três anos, o conhecemos à maneira de um Renoir; e do sherpa jovem, à maneira de um Monet. A presença predominante do segundo protagonista é sempre dada pelo conjunto de impressões resultado do vivido.
 
Ainda nesse exercício de homologias é possível destacar o funcionamento do tempo no romance. Os minutos que constituem a linha do começo ao fim da narrativa, isto é, a do tempo cronológico, correspondem o itinerário interior das duas personagens mas este guia-se, evidentemente, pelo tempo psicológico, permitindo que elas saltem livremente no tempo histórico individual e coletivo e possamos entender seus contextos, quem são e quais os seus dilemas. Entre o sherpa velho e o sherpa jovem o fosso é o de uma montanha: o que acessamos chega pela consciência de cada um, a daquele mobilizada para o passado e o presente, e a deste, do passado para o futuro. As ligações fora as próprias do convívio do trabalho, a intimidade, são alinhavadas pelo narrador quando nos revela o que cada um pensa do outro. É graças a variação das consciências que o romance encontra variedade — o que faz as vezes de movimento de uma narrativa que tende ao estático. 

(Agora, uma pergunta se abre entre os dois arcos temporais descritos: por que o sherpa jovem, que, naturalmente devia estar submetido ao presente, agarra-se em duas pontas da temporalidade sem o interesse pelo agora? Fiquemos apenas com uma solução: este rapaz, continuamente fixado na ideia de ser ator, rumina o andamento da adaptação de Júlio César, uma peça de William Shakespeare, como uma atividade extracurricular. Sem mais, avancemos.)
 
É somente quando o narrador encontra a possibilidade de responder como o sherpa velho foi parar em Namche que o romance ganha o fôlego indispensável para alcançarmos o fim dessa subida. Este um exemplo dos muitos desvios que funciona muito bem; a persistência no passado do sherpa jovem poderia levar a narrativa para esse fatídico comum de consciências doentes que povoam a literatura contemporânea e já aqui fica dito o indício para uma possível resposta à questão suscitada acima. Também é a história do sherpa velho que funciona no desenvolvimento de certa unidade de um romance que desde o começo parecia ser um ficheiro de anotações esparsas com informações de pesquisa, de andamentos possíveis para o enredo, de informações históricas da formação de Namche e dos shepas, além de detalhes referentes aos primeiros conquistadores do Everest e a transformação do lugar em destino turístico. Ou seja do alto da montanha não existe nada, nem mesmo a satisfação da conquista (se ela houver). Aqui não importa itinerário ou a glória e sim o que descobrimos de cada um. Mas também o que descobrirmos não será a imagem completa dessas três figuras que compõem o romance, afinal o que lemos são múltiplos estratos (como os da terra que originou a montanha e os da consciência) e estes subsomem o silêncio, o grande mistério que tudo e nada diz. Sebastián Martínez Daniell desconstrói, assim, a ideia do conquistador e mesmo das grandes conquistas ao converter a subida do Everest num drama fixo de corte individual e existencial. Na mesma proporção implode com os sistemas narrativos sempre interessados na resposta definitiva. Importante mesmo é a travessia.


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Dois sherpas
Sebastián Martínez Daniell
Mauricio Tamboni (Trad.)
Pontoedita, 2023
288 p.

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