Água turva: a tríade feminina de Morgana Kretzmann

Por Vinícius de Silva e Souza

 
“tudo aqui é movido a vinho, carne ou sangue. O teu lugar agora é no vinho. Se não for assim, vai acabar indo direto pro sangue.”




Água turva, romance de Morgana Kretzmann, em muito se parece com os romances de Ana Paula Maia: a narrativa seca e direta, sempre ágil, com ares cinematográficos, localizada em ambientes pouco ou nada urbanos e avesso às metrópoles. Porém, Morgana elabora uma narrativa mais intrincada (o que em nada é um demérito para Ana Paula) dividindo o cerne do enredo em uma tríade de protagonistas: Chaya, Preta e Olga.
 
Os ares de uma tragédia clássica se mostram desde o início, tão logo o livro abre com o perfil dos personagens. À medida que a história avança, em cortes rápidos de episódios, saltando de um personagem para outro, tanto no espaço quanto no tempo, o aspecto de peça de teatro trágica ganha ainda mais contornos.
 
Com desenvolvimento apropriado entre (quase) todos os personagens, mas principalmente as protagonistas, é Olga quem se destaca. Os contornos entre os eventos de seu passado e as decisões no presente dão mobilidade da narrativa. Isso a coloca a alguns metros à frente do fio condutor e a mantém mais firme para o leitor ao cabo da leitura. Tudo que diz respeito à trajetória de Olga no gabinete do deputado, suas investidas, é milimetricamente construído e costurado.
 
Chaya e Preta, por sua vez, por suas posições distantes e talvez menos humanas ou pouco convidativas, tendendo mais para o selvagem, parecem pouco verossímeis até alcançarem momentos-chaves em seus arcos narrativos: Preta, ao fim da primeira metade da narrativa de Água turva, Chaya, no final. Uma pena o irmão desta última ser um coadjuvante tão imóvel e deslocado.
 
Não é à toa que Morgana Kretzmann coloca três mulheres como protagonistas do romance e, do outro lado, os homens, como antagonistas. A autora busca, sabiamente, se esquivar de clichês de tipos como heróis e vilões, mas a caracterização excessivamente grotesca, principalmente do deputado, vai na contramão de suas intenções. Não chega a ser inverossímil, mas todo gesto/ movimento desse personagem é excessivamente desumanizado e banhado em malícia e asco, ao ponto de alcançar o estatuto daqueles mais fracos e bobos vilões de filmes infantis.
 
Pode-se dizer o mesmo dos diálogos, novamente permeados por clichês que identificamos a quilômetros de distância; esses diálogos buscam uma profundidade e sisudez nem sempre alcançadas. E o problema se estende também na construção e desenvolvimento de vários episódios, com personagens se movendo como se estivessem em cenas hollywoodianas.
 
No entanto, é de se admirar a mistura de gêneros, do drama familiar à história de redenção, juntados ao thriller de corte cinematográfico; também o espaço de uma reserva natural cobiçada por homens gananciosos e a luta feminina por salvar a floresta, cada uma com seus próprios métodos e motivos. Isso é inegavelmente bem pensado e elaborado, mas tudo dentro dos limites de originalidade de uma história como essa.
 
Morgana Kretzmann se confirma, assim, como uma autora que tem muito a dizer, sabe o que diz, sabe onde buscar as suas fontes e as referências e sabe como desenvolvê-las com propriedade, mesmo que dentro de um tabuleiro limitado, com regras que se deixam perceber anteriormente estabelecidas e sem muita coragem de ir além delas.


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Água turva
Morgana Kretzmann
Companhia das Letras, 2024
272 p.

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