Por Sérgio Linard
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Jon Fosse. Foto: Ole Berg-Rusten |
Receber um Nobel certamente é
sonho de muitos que se propõem a escrever e a trabalhar com literatura. O
prêmio, além do reconhecimento em vida, garante um considerável recurso
financeiro para os vencedores e, claro, aumenta exponencialmente a venda de
seus textos. Mas o selo de um prêmio desta monta, ainda que não pareça,
infelizmente, não faz significar que o leitor terá em mãos um texto de qualidade.
Sabemos, por exemplo, que muitos autores só chegam ao grande público mundial
após o recebimento dessa outorga; outros, cujas obras são excepcionais, morreram
sem nem mesmo terem sido lidos por aqueles que escolhem os vencedores. Entre as
justiças e as injustiças que conduzem
qualquer processo de seleção, há
boas e há más descobertas. Jon Fosse, felizmente, é um caso do primeiro tipo.
Após o anúncio de sua vitória por
suas “peças e prosas inovadoras que dão voz ao indizível”, não tardou para que
muitos fossem os críticos que — sem prévio contato com a obra —
julgaram a escolha da Academia Sueca por
premiar um homem branco europeu cuja escrita tida como hermética não se volta
para os temas identitários em voga. Destaco, então, nesta resenha, a
necessidade de ultrapassarmos essa linha de discurso. Não por ele não ser
importante, mas por entender que a leitura da obra de Fosse revela um acerto em
sua premiação, a despeito de quaisquer questões que podem e devem ser
levantadas dentro do corpo social, mas também sem esquecer do fato de que promover
mudanças sociais em prol de igualdade é um papel que pode até ser auxiliado
pelo fazer literário, porém, sabendo-se que não há, por parte deste mesmo fazer
literário, este compromisso mandatório.
A casa de barcos, livro publicado pela
primeira vez em 1989 e só traduzido para o português, no Brasil, em 2024,
apresenta um narrador em primeira pessoa que anuncia, a todo o tempo, que desde
o verão em que reencontrou seu amigo de infância, Knut, não sai mais de casa.
Trancado em seu quarto, que fica no sótão da casa de sua mãe, o narrador escreve
o romance que lemos e conta detalhes que se passaram na infância, no fatídico
verão e no momento presente em que o quarto tornou-se seu mundo e seu asilo.
Há aqui uma técnica narratológica
que coloca este protagonista no rol daqueles sobre os quais a desconfiança observadora
é sempre o melhor caminho a ser adotado. Ao emular a sua angústia constante —
estado que compõe a personalidade de uma figura melancólica — aquele homem
consegue envolver o leitor e a história em uma ambientação lânguida quase tátil
e capaz de fazer com que se acredite em tudo que se lê na superfície textual.
Ao recorrer a uma incansada
repetição sobre a angústia que o move para a escrita, o romance chama atenção,
em um primeiro plano, para qual teria sido o motivo do surgimento desse crônico
sentimento. No entanto, esse é um caso em que a construção literária exige a
superação da habitual pergunta sobre os
porquês e motiva a pensar sobre
como
aquela angústia pode e está sendo utilizada para servir de disfarce.
A esta altura, importa saber que
Knut retorna, depois de muitos anos, à cidade interiorana e costeira em que, na
adolescência, juntamente com o narrador, montou uma banda e, na casa de barcos,
escondidos, iniciaram a construção daquele sonho de trabalhar com música. Hoje,
anos depois, Knut está casado, é professor de música em uma universidade; Leif,
o possível nome do narrador, tem seus 30 anos, segue morando na casa de sua
mãe, como sempre foi, e não tem emprego. A única renda que lhe chega é a que
surge de modo esporádico das vezes em que toca com a banda nos eventos
comunitários.
A simples comparação que o
narrador faz entre ele e seu amigo já seria suficiente para justificar
alguma
angústia. Contudo, a esposa de Knut entra como um ímã para este estado
melancólico, atraindo-o cada vez mais para a repetição constante de que vive em
dor e em angústia e, por isso, escreve. Surge, então, um enlace sexual entre o
narrador e a esposa de seu amigo, algo muito revelador sobre a necessidade de
se desconfiar da história paulatinamente lida entre idas e vindas no tempo e na
focalização, essa, por seu turno, alternada entre o estado de isolamento e
algum estado de mínima convivência com demais personagens da trama:
“[...] eu sinto o calor dela, e olho para o
Knut, sentado de costas para nós, o olhar perdido na janela, o copo de uísque
apoiado no peitoril, e ela num relance me dá um beijo úmido no rosto, e o Knut
se vira, nossos olhares se cruzam e ele balança levemente a cabeça. Ele diz que
ela é assim mesmo, a mulher dele é assim. Se ao menos estivesse bêbada, mas
está completamente sóbria, e então fica ali, em plena sala, bem diante dele, beijando
e acariciando um homem que acabou de conhecer” (Fosse, 2024, p. 62).
O narrador que se mostra em uma
posição passiva diante das investidas da esposa de seu amigo, também é o mesmo
narrador que apresenta um Knut retraído e complacente com o comportamento da mulher
diante de si e de um homem por ela pouco conhecido. Isso é o que o texto
demonstra nas camadas superficiais, contudo, a verticalização de compreensões
permite perceber — e esta é uma das maiores qualidades de A casa de barcos
— que a angústia do narrador é gerada, na verdade, porque ele sabe que esse
sentimento resulta de sua escolha em aceitar e contribuir para a traição
daquela mulher ao seu amigo. Este narrador sabe que o desfecho que aquela
esposa terá é resultado de uma aceitação que ele alega ser simplesmente
passiva, mas que, na verdade, tem muito de suas escolhas relacionadas.
É dele, por exemplo, a decisão de
mencionar a existência da Casa de barcos que dá título ao romance e também é
ele que leva aquela mulher até esse local, sozinho, durante a noite. A relação
sexual que se procede, postulamos, não dá quaisquer indícios de abusos ou de
resistências por parte de nenhum dos dois. E mesmo que este narrador intente
aplacar sua própria angústia, buscando apoio na reafirmação dela, emulando-a
como verdadeira e imotivada, é, talvez, o sentimento de culpa que o cerque
efetivamente; é o medo do julgamento daqueles que vivem na mesma cidade pequena
que o faz estar preso em seu quarto e dele não querer sair. Aquela relação que
chegou ao limite da proximidade e, logo em seguida, tornou-se distância é o que
motiva o narrador a angustiar-se e, conforme ele mesmo defende, escrever a
história que lemos.
Do ponto de vista formal, não são
percebidos grandes percalços capazes de fazer com que a leitura seja hermética
ou de difícil compreensão. Sabidamente, contudo, a atenção aos detalhes é
indispensável, porque poucos sinais de pontuação são utilizados e a confusão
entre o que um ou outro personagem diz pode ser um ponto de deslize. Ainda
neste espectro, olhando em perspectiva as obras do autor que já foram
publicadas no Brasil até então — É a
Ales; Brancura; Trilogia; e A casa de barcos — em
todas encontraremos narrativas que não se colocam de modo direto e objetivo
porque têm dois grandes fatores que parecem ser ponto de partida e de chegada
do autor: a tradição da oralidade e a confusão psicológica de seus
protagonistas e narradores.
No caso do romance aqui resenhado,
as marcas de repetição de frases e de partes da história parecem servir como um
anúncio de como se articula a prosa de Jon Fosse para dizer o “indizível”.
Recomendo, portanto, àqueles que ainda não tiveram contato com a obra desse
escritor, que considerem esta uma boa “porta de entrada”.
A construção de personagens que
demandam apresentar-se em estado de confusão mental tem, por vezes, o comum
caminho do fluxo de consciência, mas não é a este percurso que Fosse recorre.
Em A casa de barcos é uma constante retomada de pontos de partida que
servem como motriz para que se observe naquela história as confusões instauradas
entre Knut, sua esposa e o narrador potencialmente chamado Leif. A partir do
mesmo ponto, a angústia desse narrador,
a história entra em um vai-e-vem com todos os indicativos para se tratar de
simples repetição, contudo enriquecida com um trato estético que faz do mais basilar
recurso coesivo uma forma perspicaz de se fazer, simultaneamente, acessível,
pois integra traços da comum oralidade, e complexa, pois propõe
reflexões profundas sobre as relações humanas de amor e de exclusão,
questionando ideias e ideais, sem fazê-lo de modo simplista, por meio de um reiterado
convite ao retorno.
A construção da narrativa
evidencia exatamente isso: um convite para que se retorne repetidamente à casa
de barcos com vistas a algum alcance de melhor compreensão daquilo que é lido. O
narrador que, aqui, emula sua angústia por potencialmente ter entrado em uma
situação de traição conjugal, esconde — mas deixa entrever — que na verdade
aquele ato seria uma espécie de vingança porque, um dia, Knut relacionou-se com
uma jovem para a qual o narrador destinava seu interesse.
Nesta trama de intrigas e de idas
e vindas, a técnica narrativa de Jon Fosse permite que se tenha em mãos uma
obra cuja condução estética materializa o movimento de ir e vir que as ondas do
mar (elemento muito destacado nas obras do autor) possuem, também remetendo ao
constante retorno à casa de barcos que, além de título e de ambiente dentro da
narrativa, tem importância de como se um personagem fosse. Isso ocorre
especialmente porque a simples referência a este espaço faz com que a história
contada por aquele homem angustiado entre em um novo ciclo de repetições ou de flashbacks,
colocando a casa neste patamar de elemento âncora da narrativa, uma vez que
parece ser o ponto capaz de fazer os personagens saírem e retornarem a si.
Assim, saiba-se que em A Casa
de barcos o leitor terá, seguramente, um autor que não teme o desconforto estético
e que se mostra, de fato, capaz de dizer aquilo que, se não é indizível é, pelo
menos, de complexa abordagem por meio da linguagem. A história simples de uma
espécie de triangulação sexual (não se pode confundir com o triângulo amoroso)
ganha mais complexidade ao proporcionar uma leitura reflexiva, detalhista, mesmo
que repetitiva.
É uma narrativa em que em pouco se pode
confiar e que a muito se deve retornar devido a ousadia estilística que
se tem em vista para escrever sobre o tormento humano ou, melhor ainda, sobre o
tormento da humanidade acerca do qual pouco ou quase nada se fala de modo
coletivo. Talvez aí more o “indizível” que fez com que a Academia Sueca
acertasse ao conceder a Jon Fosse o seu merecido Nobel em literatura.
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A casa de barcos
Jon Fosse
Leonardo Pinto Silva (Trad.)
Fósforo, 2024
144p.
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