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Mostrando postagens de junho, 2024

Seis poemas de Tao Yuan-ming em “Regresso a Casa”

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Por Pedro Belo Clara (Seleção e versões)   O BARCO VAZIO   O barco vazio flutua à deriva, sem remo Volteando uma e outra vez, sem parar O ano começa; olho para o alto e de súbito Estamos já a meio do ciclo das estrelas   Na janela virada ao sul, nada esbatido ou mirrado Os bosques do norte vicejam de folhas e fruta O Abismo Etéreo derrama uma chuva bem-vinda No rubor da madrugada, a melodia das brisas estivais   Se aqui chegámos, não devemos também partir? O destino do homem prevê um dia final Abraçando o eterno, aguardamos pelo fim Do braço faço almofada, quem perturba a paz em mim?   Aceitando as mudanças, suaves ou duras Indiferente à turbulência dos desejos — Vivo já em tão sublimes alturas Que necessidade há de subir aos picos sagrados? 1     PRIMAVERA NA MINHA QUINTA, PENSANDO NOS ANTIGOS   O velho mestre 2 deixou-nos o ensinamento: Cuidai do Caminho e não da pobreza   Tem a minha reverência, mas estava além da compreensão Assim, dedico-me a uma vida de labutas   Tomando a

Boletim Letras 360º #590

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Adélia Prado. Foto: Marilêne Marinho LANÇAMENTOS O resgate da obra completa do escritor goiano Hugo de Carvalho Ramos apresenta vários textos publicados pela primeira vez em livro .   1. O primeiro volume de Hugo de Carvalho Ramos: obras reunidas apresenta o conjunto de contos intitulado Tropas e boiadas (1917), obra mais conhecida do autor goiano e a única publicada em vida. Trata-se de histórias que evocam aventuras e causos de um mundo agrícola bem anterior ao agronegócio brasileiro atual, sem cair, porém, no chavão regionalista da “cor local”. De sua primeira publicação, a coletânea logo chamou a atenção de grandes escritores brasileiros, como Monteiro Lobato (que viria a publicá-lo), Mário de Andrade e Guimarães Rosa. O volume reúne também uma série de poesias do autor, nas quais se percebe sua verve religiosa, quase mística, para além do catolicismo tradicional brasileiro. Tal produção é contextualizada por textos críticos do cineasta e pesquisador Lázaro Ribeiro, que retraça

Cemitério dos sonhos

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Por Renildo Rene   Paulina Chiziane. Foto: Nuno Ferreira Santos Há de se esperar que a arte do romance africano, desenvolvida vertiginosamente durante a segunda metade do século XXI, toque em alguns pontos-chaves do colonialismo. Se tratando de Moçambique, o país é outro que sofreu dos agouros dessa experiência e dos desastres marcados do avanço da guerra civil. Começamos a entender, pois, toda a complexidade e ambivalência residentes nas relações desse passado sendo abraçados por narrativas mais elásticas na sua escrita (com uma forma linguística apegada às tradições), e um modo de afirmação nacional obstinado a depurar todo trauma e destruição causados naquela terra. Não tomemos isso como regra de identificação, mas talvez seja um ponto de interseção muito interessante para se aventurar nessa literatura.   Ora, sabemos que tanto a escrita como a leitura de livros — elemento indispensável na formação de bons escritores — se estabeleceu em muitos desses países sempre por mediação exter

Dois sherpas, de Sebastián Martínez Daniell

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Por Pedro Fernandes Sebastián Martínez Daniell. Foto: Crhistian Brea   Dois sherpas de Sebastián Martínez Daniell, o primeiro livro do escritor argentino traduzido no Brasil, funciona como a subida de uma montanha: conquista, se o leitor for persistente, por etapas. Seu itinerário de subida, embora perigoso devido as escolhas de desvio impostas à narrativa e suas reentrâncias, não é íngreme, mas é reiteradamente enfadonho; por vezes, com a pergunta que se forma a meio do romance, qual o motivo dessa escalada, é sempre possível o assalto de outra, o que encontraremos quando alcançarmos o topo. Pois bem, comecemos sabendo que esse ponto-limite não existe, porque, embora os protagonistas designados apenas como o sherpa velho e o sherpa jovem lidem com o montanhismo e estejam numa de seus itinerários em direção ao topo do Himalaia, toda tensão da narrativa se concentra em torno de um único acontecimento: a queda de um turista inglês sob o andamento dos dois guias.   À maneira dos modelos

A indignação anticlerical de “O sequestro do Papa”

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Por Ernesto Diezmartínez Existirá um cineasta mais anticlerical do que Marco Bellocchio? A pergunta é retórica. Não, não existe. Claro que na história do cinema anticlerical ou francamente blasfemo, vêm à mente o irrepetível Os demônios (1971), de Ken Russell, ou boa parte da obra de Luis Buñuel. Mas no primeiro caso estamos perante um filme demasiado empenhado em escandalizar para acertar no alvo preciso entre tantos excessos, enquanto no cinema de Buñuel as suas provocações e blasfêmias não deixaram de ter um certo grau de cumplicidade lúdica. Somente alguém que conhece os dogmas católicos pode zombar deles com tanta engenhosidade e graça. Além disso, se alguém é verdadeiramente crente, poderá realmente estar enojado com o cineasta que dirigiu Nazarin (1958), talvez a parábola cinematográfica cristã mais emocionante alguma vez feita?   Se falamos de anticlericalismo radical, devemos referir-nos à obra-prima de Alejandro Galindo, Doña Perfecta (1950), baseada no romance homônimo de

Trilogia, de Jon Fosse

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Por Eduardo Galeno Jon Fosse. Foto: Morten Krogvold Trilogia , de Jon Fosse, é publicado pela primeira vez no Brasil pela Companhia das Letras. Traduzido por Guilherme da Silva Braga diretamente do norueguês, o livro, do premiado com o Nobel de Literatura de 2023, conta com três novelas em que três pontos distintos, mas não excludentes, demarcam a história de amor de Asle e Alida. Asle e Alida, que rodam e rodam em torno de um ponto: o amor.   Minhas impressões e percepções ao ler Trilogia foram as mais emocionalmente difusas. De um lado, esse apelo ao cacoete onírico na narrativa — que não segue um padrão definido, requinte minimalista; do outro, a circunstância em que tudo parece girar até o leitor ficar embebido de náusea (quem é marinheiro de primeira viagem teria, a meu ver, problemas). Mas pontuemos: faz parte de uma chancela única . Tanto a escrita despreocupada com formações sintáticas maiores e melhor elaboradas quanto a retórica pegajosa das novelas (que formam um romance) a

Marie Lafarge, a envenenadora que inspirou Madame Bovary

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Por Alejandra Mateo Fano Retrato de Marie Lafarge em L’affaire Lafarge de Marcelle Tinayre, 1935. Arquivo Gallica.   Em 1º de outubro de 1856, Gustave Flaubert publicava na Revue de Paris o que mais tarde se tornaria a primeira obra de realismo na França, Madame Bovary. Originalmente intitulado Madame Bovary: mœurs de province (Madame Bovary: costumes de província), antecipou algumas das técnicas narrativas que viriam a ser utilizadas por autores de toda a Europa ao longo do século XX numa história que narrava o caso de Emma, uma jovem casada com Charles Bovary, com quem nunca chegou a se sentir verdadeiramente satisfeita e que a impediu de satisfazer as suas in ú meras ambi çõ es e inquieta çõ es pessoais.   Embora haja quem diga que Flaubert tomou como inspiração para a sua obra a biografia de Veronique Delphine Delamare, uma mulher que pôs fim à vida em 1848 após anos de um casamento infeliz, na realidade a mulher a quem verdadeiramente devemos esta trágica história chama-se Marie