Uma poética do simples: “Eu, desenganado”, de Eduardo Duarte
Por Wesley Sousa
Os poemas de Eu, desenganado de Eduardo Duarte, jovem
poeta e musicista baiano, se interligam desde a unidade existencial de uma
época até um aspecto cultural delimitado. Podemos dizer que o pequeno livro é estruturado
em três linhas temáticas específicas, tal como está dividido: “Do ser”, “Do
amor” e “Do lutar”. Cada parte contém dez poemas.
Os títulos das divisórias do livro, por sua vez, apontam
para um fio condutor mais amplo: a existência em três âmbitos. O primeiro se
refere àquilo que somos, ou melhor, ao que estamos a ser. No devir da vida, nas
condições de existência nas quais as nossas condições de ser se efetivam. Em
“Do amor”, a companhia e o arrebatamento de um sentimento se notam presentes,
apontando como o eu-lírico fala de si ao exprimir amores perdidos ou não-realizados,
como se apresenta no poema “Sufocado”.
Mas, no “plano existencial” em que as poesias se constroem,
destacaria um poema que, de algum modo, esclarece a tônica do sentido
filosófico do eu-lírico. No poema “O mistério do existir”, o jogo retórico se
volta à dúvida mais genuína:
Entre o verbo, a carne e o pó
para onde vai essa força
que conduz a fragilidade da vida?
(Duarte, 2024, p. 20)
(Duarte, 2024, p. 20)
O questionamento do eu-lírico se apresenta não na eterna
dúvida, mas no finito da existência — já que no finito o imprevisível pode ser
único —, isto é, naquilo que fenece no tempo, se tornando novamente em “pó”, também
deixando de ser unicamente; a existência breve, mas somente ela nos dá a
oportunidade de desfrutar a vida, e que é colocada no plano filosófico do “quem
somos?”, bem como nas vicissitudes que nos acometem. No poema “Incongruência”, o
poeta questiona:
Se, em um mundo de luz e sombra,
nos resta a reles condição
de, em meio a tempestades
assegurar-se na conformação?
(Duarte, 2024, p. 19)
(Duarte, 2024, p. 19)
***
Um ponto de destaque na construção poética de Duarte é o
modelo econômico das palavras. E isso não quer dizer pouco. Seus versos curtos
não significam recuos. Sabendo disso, o autor “limpa” seus versos, dando ritmo
necessário para que não se perca no formalismo métrico.
Tomando parte disso, para mencionar um relevante estudo
sobre o assunto, em “O estudo analítico do poema”, Antonio Candido explica a
questão da composição poética entre a rítmica e a métrica do verso:
“A rima apareceu nas literaturas latinas como consequência
da decadência da métrica quantitativa, isto é, baseada na alternância e
combinação de sílabas longas e sílabas breves. O afrouxamento da métrica
quantitativa deu lugar ao aparecimento da métrica rítmica, baseada na sucessão
das sílabas, com acentos tônicos distribuídos em algumas delas” (Candido, 1996,
p. 39).
Duarte não usa do recurso da rima como fundamento da sua
poesia — o ritmo é o principal. Largando de uma métrica parnasiana do verso,
resta, como desde há muito, o modernismo do verso; ao contrário da linearidade
e proporção, o cume é a ritmização. Conforme aponta, por sua vez, Antonio
Candido: “a função principal da rima é criar a recorrência do som de modo
marcante, estabelecendo uma sonoridade contínua e nitidamente perceptível no
poema” (Candido, 1996, p. 40). É, pois, o plano poético de Duarte ao longo do
seu Eu, desenganado, se não usando da rima como propositura central, usa
do ritmo como tendência apoiada na sonorização intencional.
Pois bem, passando à parte intitulada “Do amor”, o que está
presente não é simplesmente um amor passivo, desejante, mas um amor que
ultrapassa o fluxo dos fatos imediatos. No poema intitulado “Olhar”, temos:
O fulgor da alma
de quem ama
para além da vida
(Duarte, 2024, p. 38)
(Duarte, 2024, p. 38)
Faz parte da poética moderna o seguinte: o amor é a poesia
da alma. Isso quer dizer que, com o advento da individualidade burguesa, o
elemento central é o indivíduo solitário que luta contra um destino sem
destinação. Desde o romantismo, a poesia e a filosofia se entrelaçam para a
compreensão de um novo aspecto da subjetividade nascente, fragmentada e isolada
no mundo.
Mas, no que se refere ao encontro de um jovem poeta com as
letras, que se atravessa via musicalidade, não é algo fortuito. A poesia de
Duarte demonstra trabalho, no sentido lato do termo: labor. Um criador do
sentido na palavra. Em tempos em que a construção poética tem se tornado cada
vez mais efêmera, tanto na letra quanto no espírito rasteiro da digitalização
dos sentimentos, o que sobra são arremedos de uma tonelada de lixo virtual, ou
de papeis que em pouco tempo se tornam recicláveis.
Além disso, não se trata de um fazer poético destituído da
práxis. Eduardo Duarte demonstra, então, que a palavra ajuda a descortinar a
normalidade absurda da vida. É aqui que o eu-lírico revolve à poesia “Mais um”:
o incômodo da existência e suas nuanças, que une “o ser” e a “luta”. Duarte
demonstra também que a poesia não é um deleite desinteressado. No poema
“Clamor”, da parte “Do lutar”, lemos:
Palavra,
cuja agressividade é assolada violentamente
no rasgar dos papeis
e na censura das línguas feito uma pá de cal
num sepulcro social.
(Duarte, 2024, p. 44)
O renomado crítico literário pernambucano Álvaro Lins (1943)
em certa vez argumentou que devido o apogeu e o êxito da ciência formal,
chegamos a um ponto com que a ciência pudesse abarcar tudo, mesmo a arte
(literatura e poesia), no paradoxal seguimento de estabelecer uma separação
total entre o âmbito da arte e o da política; ou o inverso, de submeter a arte
à política. Duas tendências refratárias da mercantilização da arte: se por um
lado, um “salvamento” da pureza da poesia, haveria por outro lado uma submissão
dilacerante dela na politização maneirista.
No caso do nosso jovem poeta, por sua vez, tentando
esquivar-se de ambas as tendências, sua poesia traz os dilemas do mundo
contemporâneo da seguinte forma:
No caminho que leva
e nos caminhos que trilha,
há muita liberdade à sua frente,
mas pouca escolha ao seu destino
(Duarte, 2024, p. 50)
***
Por outro lado, arriscaria afirmar que falta a Duarte
explorar uma poesia que dissolva o sujeito da posição contemplativa ou imersa
nas condições construídas. Em outros termos, a tensão entre a temporalidade,
ação e a negação. Elementos que, embora pouco ausentes, não inviabilizam a
construção de poemas em que os sentidos e dilemas humanos aparecem nestes
termos. Não a temporalidade da escrita, mas a atemporalidade do poetizar que,
no poema, se particulariza; não a ação da luta, mas o reconhecimento da luta
como pressuposto da ação; não a assimilação, e sim a recusa, o dizer “não”, em
cuja afirmação se individualiza no mundo. Se não presentes, tais elementos da
poética (pós-)modernista (como alguns poderiam alegar), malgradas algumas
inquietações, acompanhariam no engendramento da escrita de Duarte em nível mais
elevado.
Enfim, cabe aqui uma rápida nota quase pessoal e conclusiva:
não é sempre que um poeta e um aspirante à crítica literária se encontram (em
geração e nas trocas intelectuais, nos diversos segmentos das artes — música,
teatro, poesia e literatura). Acompanhar a escritura de um livro, de um poema
ou de um conto, enquanto teoriza-se sobre a produção poética; ou, quando se vê
na letra de uma canção aspectos formais e suas relações entre o material
estético e o conteúdo social que são a forma concreta de uma produção, a meu
ver, é algo que merece registro.
Na leitura do pequeno livro senti que a concretização do
esforço da poesia de Duarte — ainda em construção — se mostrou na percepção de
que a constituição poética revela tal dispêndio: o fazer poético que não cede
ao fluxo dos fatos, mas dá aos fatos certos fluxos. Antes de ser uma
“autobiografia” poética, se trata de uma poesia do desengano. Muitos poemas
tentam se encontrar na imediaticidade, mas Duarte não se ilude: estar acomodado
na palavra pode levar ao engano novamente imediato. Nem sempre elas (isto é, as
palavras) dizem tudo.
Referências
Candido, Antonio. O estudo analítico do poema. 3 ed.
São Paulo: Humanitas, 1996.
Duarte, Eduardo. Eu, desenganado. Itabuna:
Mondrongo, 2024.
Lins, Álvaro. Jornal de crítica (2ª série). Rio de
Janeiro: José Olympio, 1943.
* Wesley Sousa é graduado em Filosofia pela Universidade
Federal de São João del-Rei, mestre na mesma área pela Universidade Federal de
Santa Catarina e aluno do doutorado em Filosofia na Universidade Federal de
Minas Gerais. Pesquisa sobre estética, ontologia, marxismo e filosofia
contemporânea.
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