I.
Largo a minha
palavra ao vento, sem chaves nem véus.
Porque ela não
é um cofre de cobiças, nem uma mulher coquete que faz por parecer mais bela do
que é.
Largo a minha
palavra ao vento para que todos a vejam, a toquem, a espremam ou a esgotem.
Não há nela
nada que não seja eu mesma: mas em cingi-la como cilício e não como manto
pudesse estar toda a minha ciência.
II.
Só
quem na sombra se crava, sugando gota a gota o suco vivo da sombra, logra
erguer obra nobre e perdurável.
É
aprazível o ar, aprazível a luz; mas não se pode ser todo flor…, e quem não
render a alma à raiz, mirrará.
III.
Muitas
coisas me deram no mundo: é só minha a pura solidão.
IV.
Ditoso tu, que
não tens o amor disperso…, que não tens de correr atrás do coração tornado
semente de todos os sulcos, corça de todos os vales, asa de todos os ventos.
Ditoso tu, que
podes encerrar o teu amor num só nome, e dizer-lhe a cor dos olhos, e medir-lhe
a altura da fronte, e dormir-lhe aos pés como um fiel cão.
V.
Há algo de
muito subtil e de muito fundo em olhar atrás o caminho andado… O caminho onde,
sem deixar pegadas, se deixou a vida inteira.
VI.
As folhas
secas…, voam ou caem? Ou haverá em todo o voo uma terra à espera, e em toda a
queda um tremor de asa?
VII.
O caule erecto
e seco que ainda resta da roseira fenecida numa longínqua Primavera trava o
caminho às sementes de agora, aos novos brotos sufocados pelo nó de raízes que
a planta perdida insiste em cravar no mais fundo da terra.
Pouco ou muito,
não deixes que a morte ocupe o lugar da vida. Recobra já esse espaço do teu
jardim, agora que há bom sol e chuva fresca… Que as pontas verdes, já
assomadas, não se enredem de novo no esqueleto da velha roseira que torna
inúteis o esforço da Primavera e o calor da terra impaciente.
Se não
arrancares o caule seco, vão será que o sol amorne a seiva e passe Abril sobre
a terra tua. Vão será que venhas dia após dia, como vens, com o teu jarro de
água regar os novos brotos…
— Não é para os
novos brotos a minha água: o que rego é o caule seco.
Dulce Maria Loynaz nasceu em
Havana, Cuba, em dezembro de 1902, no seio duma família aristocrata, filha do
famoso General Castillo, um herói do Exército de Libertação Cubano, e irmã do
também poeta (futuro) Enrique Loynaz Muñoz.
Embora nos preceitos familiares
estivesse fortemente enraizado o ideal patriótico, indício que nos pode levar a
concluir uma simpatia por um pensamento político mais conservador, o seu
cultivo não se fechava em si numa cegueira egocêntrica: estava bem presente a
noção da importância duma boa (e diversificada) educação cultural.
Propiciar-se-ia, assim, o desenvolvimento do interesse da pequena Dulce na
escrita, muito motivado por sua mãe, apaixonada pelo canto, a pintura e o
piano.
A infância de Dulce Loynaz foi
muito recatada, tendo recebido a sua educação em casa. Esse meio mais privado permitiu-lhe
tempo livre, necessário ao desenvolvimento duma apurada sensibilidade
artística. Ainda adolescente começou a rabiscar os primeiros poemas, tendo
conseguido a primeira publicação de relevo em 1920, no jornal cubano
La
Nación.
Atingida a maioridade, o recato da
infância tornou-se em meras linhas dum capítulo já lido. A existência de Dulce
abria-se assim ao mundo, encetando diversas experiências que, à época, só
estariam reservadas a raparigas da alta sociedade, inclusive viagens para fora
de Cuba.
Em 1927 doutora-se em Lei Civil,
na Universidade de Havana, mas raramente irá praticar a sua profissão, chegando
mesmo a abandoná-la em 1961. Nos entretantos, a escrita desenvolvia-se e as
viagens multiplicavam-se (México, Turquia, Egipto…), rendendo-lhe material para
futuras obras e permitindo-lhe o contacto, facilitado também pela sua posição
social, com os nomes maiores da literatura em língua espanhola: Lorca, Juan
Ramón Jiménez ou Gabriela Mistral (poeta chilena, Nobel da Literatura em 1945).
Muitos deles chegaram a permanecer hospedados na sua casa de Havana, uma
espécie de centro cultural da cidade durante a década de trinta, tais os
artistas que a frequentavam.
É no ano seguinte a terminar o
curso, em 1928, que Dulce Loynaz inicia a sua obra maior, o romance
Jardín,
nascido em moldes de realismo mágico, e que demoraria sete anos a estar
completo. Num tempo de intensas mudanças sociais, com o voto feminino a ser
finalmente permitido em Cuba, a obra, cuja figura principal é uma mulher, reflete
os dias agitados da Havana de então, onde um forte movimento feminista prometia
manhãs mais claras para todas. Isto fará com que a imagem de Dulce se cole, e
com devida propriedade, à duma embaixadora dos direitos das mulheres, mesmo que
nunca tivesse reclamado tal título. O seu pensamento era, de facto,
progressista e independente, justificando-se em tudo aquilo que empreendeu e no
que pôde partilhar nas imensas linhas da sua obra — embora do ponto de vista
político nunca tenha manifestado quaisquer preferências, desapontando certas
facções, em determinados momentos, que dela esperariam uma posição mais clara e
interveniente.
Em 1938, já casada, publica um
poema bastante pessoal, partindo de algo tão íntimo na vida duma mulher, uma
audácia rara na época: “Canto a la mujer estéril”. No mesmo ano, sai
Versos
(1920–1938). Este volume, reunindo poemas duma fase inicial, permite uma
mostra sobre os tempos socialmente agitados de que foi testemunha na juventude,
tempos dum pensamento mais consciencioso e de reformas de sério impacto numa
sociedade em progressiva mudança. Há uma certa melancolia, algo saudosista, que
nasce da crescente industrialização, aparentemente imparável, e uma sóbria
tristeza pela imposição duma dita modernidade. É um sentido de perda de
essência, no fundo, de “morte do paraíso”, aumentado pela consciência da
efemeridade de tudo. Esta sua poesia primeva pode hoje parecer algo obsoleta,
mas é testemunho dum tempo, duma realidade ida, espelhando uma Cuba que deixou
de existir após a revolução de 59.
Em finais da década de 40 e começo
da década de 50 inicia colaborações com diversos periódicos de renome, como o
El
Mundo, o
El Pais, o
Excélsior ou a
Revista Cubana,
publicando crónicas semanais. Recebe diversos convites para conferências e
sessões de leitura. O seu nome e obra, por esta altura, era cada vez mais
conhecido e apreciado em Espanha, verificando-se diversas publicações e
republicações nesse país. No ano seguinte a contrair o segundo matrimónio, em
1947, edita
Juegos de agua e em 1953 surge
Poemas sin Nombre, das
maiores obras que Loynaz escreveu no género (e donde se extraíram todos os
poemas aqui apresentados). Caminhando de mão dada com a prosa, desenvolvendo a
crónica e o ensaio, em 1958 lança aquele que considerou ser “a melhor coisa que
escrevi”:
A Verano en Tenerife, resultado da sua estadia na ilha
espanhola, terra natal do esposo. As homenagens e os prémios que lhe são
dedicados começam a ser habituais.
Entre 1959 e 1961, em resposta aos
abalos vividos no seu país, toma decisões veramente drásticas. Aquando do
triunfo da revolução que se opera em Cuba, liderada por Fidel Castro, Loynaz
deixa de escrever poesia. Para muitos, principalmente quem lhe era próximo, a
coincidência de eventos não foi mero acaso. Em consequência, desiste dos seus
compromissos editoriais naquele país. Adoptando uma vida de reclusão, também
agravada pela ausência de quem tanto fizera pela divulgação do seu trabalho, o
próprio marido (Pablo de Cañas, um famoso cronista que abandona Cuba em 1961),
Dulce Loynaz praticamente só mantém as suas actividades na Academia Cubana de
Línguas. De resto, exclui-se totalmente da vida pública.
Após décadas de reclusão, os anos
oitenta do século passado revelaram que nem a obra nem a autora haviam ficado
esquecidas. Ademais, toda uma nova geração amadurecera e descobrira por si os
fascínios vários do seu trabalho. As nomeações para prémios de relevo
continuaram e, muito naturalmente, Dulce Loynaz saiu do exílio autoimposto e
retomou a publicação. Em 1985 surge Poesías Escogidas; de seguida, o
reconhecimento do seu próprio país atingiu níveis superiores ao outorgar-lhe o
Prémio Nacional de Literatura (1987). Entrando em 1991, recebe a luz do dia o
livro Bestiarium, uma curiosa obra de poesia imaginativa e de grande humor. Já
em 1992, coroando um amplo trabalho de dignificação da língua materna, recebe o
prestigiado Prémio Cervantes, viajando para Espanha no ano seguinte, já de
frágil saúde, para o receber das mãos do Rei Juan Carlos.
Em 1993, decorrendo em Pinar del
Río (Cuba) um encontro Ibero-Americano dedicado à celebração de sua vida e
obra, Dulce Loynaz publica Fe de Vida, obra autobiográfica que viria a ser o
seu último livro. Mais tarde, a 15 de abril de 1997, o Centro Cultural de
Espanha em Cuba realiza à porta da casa da autora uma singela homenagem,
ocasião que marcaria a derradeira aparição pública de Loynaz, já bastante
enfraquecida pela sua avançada idade. Na madrugada do dia 27 do mesmo mês,
viria a falecer pacificamente.
O legado literário de Dulce María
Loynaz é inegável e duma importância extrema no contexto das américas
espanholas e da própria língua de Cervantes. Oferecendo uma poesia feminina
intimista, das primeiras desse estilo na América Latina, o traço geral que a
caracterizou é simples e sóbrio, de palavra não propriamente directa, mas despojada,
limpa e sintetizada, o que concede a sensação de partilha de emoções claras e
cruas. Nessa crueza, porém, reside a sua luz.
Falamos de luz, mas de sombra, e
muita, se compõe o seu trabalho. Lembremos estas linhas dum poema atrás
partilhado: “Só quem na sombra se crava, sugando gota a gota o suco vivo da
sombra, logra erguer obra nobre e perdurável.” A dita sombra manifesta-se como
consequência das primeiras linhas do seu trabalho, atrás abordadas, a
negatividade nascida no ser pelo crescente da modernidade, e também no
exercício mais intimista da sua poesia, de certa forma confessional, criadora
dum mundo muito próprio, embora não restrito a todos que o desejarem visitar.
Sendo igualmente uma poética de
silêncio e solidão (chegaria a escrever, um dia: “Solidão, solidão sempre
sonhada… Amo-te tanto que às vezes temo que Deus me castigue um dia enchendo-me
a vida de ti…”), é uma poesia que treme e se agita contidamente, ou não, pouco
imediata, exigindo por vezes uma demora na sua apreciação, no saborear de
termos e sentidos, abrindo espaço à introspecção.
Vários apreciadores e estudiosos, quando
se debruçam sobre a sua obra, não hesitam em colocá-la num patamar onde figuram
escritoras como Virgina Woolf ou Emily Dickinson. Sobra a questão, contudo:
ainda que célebre no universo hispânico e américo-latino, não usufrui da
aclamação universal das restantes escritoras, nem pareceu o seu legado, embora
digno de valor, ser capaz de influenciar novas gerações, especialmente
mulheres. Porquê?
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