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O sacrifício, 1986. Museum of Arts and Design. |
É normal imaginar
O sacrifício como o canto do cisne.
Tanto porque compreende um último filme produzido numa carreira quanto porque o
seu lançamento antecede o desaparecimento físico de Tarkovski, ocorrido poucos
meses depois, em dezembro de 1986. Mas poucos se atentam para a insígnia de
O
sacrifício pertencer a um caso específico na história do cinema. Uma clara
evidência que possa apontar a esse fenômeno de fidelidade total e incondicional
emerge do fato do
autor Tarkovski procurar falar, sim, de
essência,
Verdade e
espírito em plena década de 1980, em plena Guerra Fria.
De falar, contrapondo ao
ethos comum, numa
origem. De não apenas
falar, mas defender a dissidência.
Autor: palavra presente no corpo dissidente de
Tarkovski. Ele era, aliás — confessadamente —, antes um poeta (escritor),
depois um cineasta. Tentava, a todo tempo,
se escrever. Exatamente nesse
plano, a economia das imagens, palavras e sons de
O sacrifício mora na
eterna condição de ser incessantemente diluição, mas ao mesmo tempo um
instrumento. A obra se confunde com seu criador, o criador e a criação se
confundem com o mundo (tudo, aqui, é
dobrado):
o poeta não usa “descrições”
do mundo; ele próprio participa da sua criação, afirmava Andrei. Com o
sangue desse pacto paradoxal entre alma e cosmos, essa manifestação vai abrir
razão ao ideal ético — não simplesmente biográfico —, que só pode sobreviver na
ordem do
sublime, entendido naquilo que, numa experiência da “obra”,
advém ao/ do factual, permanecendo, porém, misterioso. O filme, portanto, diz:
je
ne sai quoi [eu não sei o quê]. O filme se apresenta com o
quid? (quê?),
“pergunta que interroga a coisa”¹, porém mais ainda com o
quem?,
“pergunta que se dirige ao nome”.²
Desse momento, escoa um ideal embaralhado, mas um ideal
ético e
ancestral (no sentido de herdado). Se a autoria — fora da
metafísica da presença — está sendo afirmada
e negada, é porque há
outros contingentes de agência (como as palavras), que circulam por fora do que
tem carne humana.
Palavras, palavras, palavras!, esse mecanismo
insuficiente, mas que sempre persiste (mesmo no silêncio). É o utensílio que
Alexander segue e tenta superar como herança sua. É a ele que Alexander deve
notar e assumir a responsabilidade como herói: não se entende quase nada, quase
tudo pode vir a passar despercebido. Mas, para ele, há, nesse rastro, aparições
exteriores que, no fundo das coisas, extrapolam o aspecto fundamental que torna
o Tempo linear e o transforma numa
recriação no interior da grafia
cinemática, vinda da abertura que se esconde na forma-filme. Tarkovski cita: “o
tempo em forma de evento real: volto a insistir nisso”.³
“No início era o Verbo…”
O Verbo tarkovskiano já é, em alguma forma, ação, ato real.
Pelo menos nessa esfera cujo centro se preconiza num rito onde linguagem e
profetização são uma e mesma coisa, Tarkovski conseguiu injetar ao Real, de
modo suficiente e através do pensamento, um espaço nos quais as características
de uma arte, ou seus efeitos, pudessem ser cura. Cura de uma doença impessoal,
o filme só poderia ser independente. Como se realmente as suas ações fossem
muito além do voluntarismo do processo criativo. Como se, em última instância,
Tarkovski parisse o filme no momento em que se perdia. Em outra ideia, é um
verdadeiro
sacrifício:
você deveria se sacrificar pela arte. É
verdade. É uma verdade sagrada.
“Ainda um modo como a verdade se funda é o sacrifício
essencial”⁴, notava Heidegger. Tal qual o pensador da floresta negra, Tarkovski
tinha como mania de percepção a necessidade sacrificial da arte, entronizada na
fundação de uma
Verdade, no desvelamento de algo Maior, Supremo, que não
pode ser impurificado pelos vícios presentes na relação do mundo. Nessa
nomeação, uma das raízes que o cinema tarkovskiano deixa é a própria
intervenção de profecia temporal, cujo fundamento se encontra, justamente, no
sinal
que
descria a situação do sujeito soberano. Como
símbolo de mau
presságio ao poeta, seja Puchkin ou Tarkovski, um acontecimento simples muda o
que vem. Para Tarkovski, todo poeta deve pressentir. É natural.
O pressentimento do estilo espiritual de
Offret
mantém a tangência significativa entre a
reflexão e a preponderância do
tédio
enquanto norma formal. A pedra de toque está no poder do
estímulo: o
verde da flora, o cinza do céu, o vermelho amarelado do fogo, o preto da
fumaça... Tarkovski faz da fotografia um buraco pelo qual uma toupeira carrega
e recebe as múltiplas cores (até as monocromáticas). Mas se engana quem pensa
que isso seja uma defesa:
a cor apaga a imagem: é, basicamente, a esse
momento que a autoria tarkovskiana quer chegar. A arte não pode apagar a
imagem, mesmo que ela seja feia. A verdade do artifício não deve turvar a
verdade do espírito. Nenhuma fantasia prevalece, exceto aquela do fotograma (da
imagética) que está imbricado o contato originário. Ou: o espírito servindo
como reverso ao
standard da Coca-Cola, o espírito mesmo resgata o valor
entre quem faz o filme — fabrica — e quem o recebe — quer dizer, riscando o
consome,
mas assumindo o
assume: todo diretor é responsável por aquilo que
maneja.
Nesse cinema de poesia — arte que é, em instâncias maiores,
nada além que P-O-E-S-I-A —, se abre e aciona um evento. Ele age antes do
evento acontecer. Era a verdade por trás e pela frente de
O sacrifício.
Vontade insaciável que assume o risco, que se assume na atmosfera dos planos
longos, dos diálogos lentos, do movimento murmurante da câmera. O caráter
prosaico desse sentimento é posto, com toda razão, na disseminação a qualquer
público que o compreende como obra de
esperança (pelo menos na cabeça de
T., é óbvio). Seja nutrido pela arte, seja pela história, talvez a explicação
que melhor resuma
O sacrifício é o significante que se guarda entre dar
e receber. A expressão de
tao, nas palavras de Lao, argumenta: “ao
incitar o desejo de
se depor, é necessário consolidar o
se ascender”.
É justamente aquilo que Tarkovski procurava.
A intensidade monstruosa pela qual o caminho do filme pode
ser envolvido não somente ratifica a veiculação de Tarkovski às estruturas
além
do cinema, como elucida a situação
pelo próprio filme. Dito isso,
Tarkovski pode ser visto, realmente, como
militante. Aliás, só por meio
da
militância é que podemos elucidar a
verdade coletiva enunciada
por seus filmes no geral (e, falando especificamente, no seu último filme). O
monumento universal transfere, por exemplo, algumas localidades (o bem, a
espiritualidade, a comunhão, o positivo) nesses meios, incluindo no cerne o que
podemos nomear de
aposta. Ele aposta com o filme porque “todas as
parábolas sobre a
semente [grifo meu] respondem à noção de uma
providência impessoal”.⁵
E
O sacrifício, afinal, é uma parábola. O que
acontece quando queimamos nossa casa? A novidade. A árvore regada pelo filho de
Alexander é essa aposta, essa esperança regada. Mesmo que difícil, mesmo que a
guerra nuclear seja iminente, mesmo que a figura de Adelaide seja o comum (e
não a da feiticeira Maria), talvez algum dia naquela árvore estéril brote
folhas. Se isso significa dizer que Tarkovski tenha sido um bobo e ingênuo, um
idiota dostoievskiano — se a atitude contempla uma impossibilidade —, deixemos
a resposta para outro texto. Resta sabermos compreender que qualquer coisa
ainda é uma coisa. Tarkovski, de fato, soube disso. Então esperemos o
milagre.
Vejamos como Alexander fez.
Offret é um cinema de beirada — na borda. Em vez da
parede contemplativa, a atitude.
Offret: ode ao sacrifício.
Offret lembra as palavras de Arseni Tarkovski, pai do
nosso diretor:
Vive na casa — e a casa continua de pé.
Vou aparecer em qualquer século.
Offret vai sempre aparecer porque é um grande poema.
Seu lirismo escatológico subsume qualquer era, ainda mais a nossa. “Entrar e
fazer uma casa para mim” (Arseni Tarkovski que poderia ser Andrei Tarkovski).
Se acaso a casa queimar…
Referências
1 AGAMBEN, Giorgio.
Ideia da prosa. Trad. João Barrento. Belo Horizonte:
Autêntica, 2012.
2 Ibidem.
3 TARKOVSKI, Andrei.
Esculpir o tempo. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
4 HEIDEGGER, Martin.
A origem da obra de arte. Trad. Maria da Conceição Costa. Lisboa:
Edições 70, 2005.
5 WEIL, Simone.
O enraizamento. Trad. Maria Leonor Loureiro. São Paulo: EDUSC, 2001.
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