Por Pedro Fernandes
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Stendhal. Daguerreótipo de Félix Nadar. |
Stendhal pertence à lista de uns
poucos da literatura: a dos escritores que marcaram definitivamente sua
história com uma breve obra. Para os padrões da sua época, também foi um escritor
tardio. Seus únicos romances mais importantes —
Le Rouge et le Noir
(1830) e
La Chartreuse de Parme (1839) — e quase tudo o escreveu nesse âmbito
data de quando perdeu a vida modesta estabelecida nos limites da permanência de
Napoleão no poder. Sua presença na literatura se fixou pelas contribuições no
desenvolvimento de uma forma narrativa que desde os últimos séculos entrava em
evidência e encontrara uma cultura que produzirá algumas das transformações
mais relevantes na sua história. Muito do moderno realismo ou da compreensão
que atribuímos ao romanesco se forjou com e partir de
O vermelho e o negro,
principalmente, o desenredamento do indivíduo da dinâmica social, padecendo os
impasses psicológicos e existenciais devido as vicissitudes dessa incongruência
que nele se apresenta como uma desordem que se agrava continuamente.
A narrativa acompanha Julien de
Sorel em dois instantes de transformação: quando é enviado para ser o preceptor
dos filhos do prefeito da pequena Verrières, em Franche-Comté, sob a proteção do padre Chélan; e
quando, sob os auspícios do padre Pirard, é enviado a Paris, onde se converte numa
espécie de secretário do Marquês de La Mole. O narrador tece ainda um terceiro
instante, mas este possui interesse menor, funcionando especificamente como um
fio de passagem entre os dois referidos comenos essenciais: os meses de estadia
de Julien no seminário de Besançon, uma vez certa a predestinação do jovem para
a vida religiosa — devido, em parte, às suas condições sociais como se aclara
na unanimidade dos tipos seus colegas seminaristas e em parte outras qualidades
inatas, tais como um primevo interesse pela vida dos santos e as facilidades
para o latim, graças a uma memória prodigiosa. É nesse curso de dezoito meses
que o jovem se depara com Frilair, claro opositor ideológico do padre Pirard e
peça possível ou não da salvação de Sorel no último apuro de sua vida.
1
A afeição do filho de carpinteiro
de Verrières pela hagiografia cedo ainda é preenchida pela estima para com a biografia
de Napoleão Bonaparte, apontando para o interesse que marca essencialmente o
protagonista de
O vermelho e o negro: se estabelecer na história como um
herói do seu tempo. Esse interesse, embora nele se destaque, parece incutido entre
muitos de sua geração e por razões diversas. Os remanescentes acontecimentos
que deram forma à ordem então vigente e que semeou os caminhos para a
Revolução; a centralidade da história para a constituição da mundividência dos
povos; e alguns matizes dos ideais heroicos passados da geração romântica, são
algumas delas. Julien é uma síntese destes e de outros elementos aproveitados
por Stendhal na constituição da complexidade dessa e de outras personagens do seu
romance. A figura aqui em relevo encontra-se implicada na sua contemporaneidade
e não é apenas a figuração do indivíduo social. Reparamos nisso, quando o
narrador desaparece em gesto permissivo de preponderância dos volteios
interiores, oferecendo assim, uma dupla dimensão dessa e das suas outras
criaturas, a que se desenvolve pela fisicalidade dos gestos e das atitudes e a
que se exprime subjetivamente pelo pensamento ou ainda a que se mostra
publicamente e a que se oculta.
É importante esclarecer de que maneira
o material da história converge para as circunstâncias da ficção. Stendhal não é
com este romance um romancista histórico, na acepção do modelo romântico
vigente. Os fatos ou os acontecimentos representativos da França da Restauração
ou dos bastidores da França da Revolução de 1830 sequer se apresentam como plano
de fundo para um narrador cuja atenção é devotada ao desenvolvimento das
personagens, suas atitudes, os dilemas e as reviravoltas interiores, suas relações,
seus interesses, isto é, sua narrativa é centrada na cotidianidade do indivíduo
e da sua desenvoltura entre a vida burguesa. O que Stendhal pratica é uma
história dos costumes e dos sentimentos capturada na observação do comezinho e
das suas variações pelo ponto de vista individual. Talvez, porque, como supõe
Heinrich Mann, “é muito mais por nossos sentimentos que por nossas ideias que
pertencemos inexoravelmente a uma certa época”.
É singular que um mesmo episódio assuma
aspectos variados a partir da maneira como as personagens que dele participam o
enxergam, cada qual pela lente dos seus interesses. A admissão de Julien pelo
Sr. de Rênal como preceptor dos seus filhos é um exemplo. A atitude se cimenta
por uma disputa simultaneamente existente e não existente entre ele e Valenod,
um tipo liberal e inescrupuloso, diretor do sanatório de Verrières, que mais
adiante assume a cadeira de prefeito e que, como o padre Frilair, tem parte
essencial no destino de Julien. Valenod cortejou antes do Sr. de Rênal sua senhora
e este é o motivo efetivo. O marido, por sua vez, acredita que o carpinteiro,
pai de Julien, um mesquinho e submisso ao dinheiro, sabedor disso, possa ter usado
o filho como expediente de disputa entre os dois, oferecendo-o como preceptor
da casa dos Valenod. Com esse receio infundado, o prefeito atende prontamente
os interesses capitais exigidos pelo carpinteiro (depois, as solicitações do
próprio Julien) para não ser um
desmoralizado na escala social; a
família mais importante de Verrières não pode passar sem um responsável pela
educação seleta dos filhos tal como de alguma maneira recomenda a regra burguesa.
Essa circunstância provinciana é essencial
para o desenvolvimento da compreensão da sociedade de aparência que ficará mais
bem desenhada quando a narrativa acompanha seu protagonista pelos salões da
mansão de La Mole ou outros salões parisienses. Esse modelo francês de
sociabilidade não é uma especificidade do período da Restauração, mas na réplica
da nobreza, os interesses neles predominantes estão marcadamente centrados na predileção
das amenidades, das frivolidades, das intrigas e dos conchavos, isto é, um teatro
(no sentido negativo) em relação ao papel de contribuição para o desenvolvimento
dos comportamentos, da intelectualidade, da política e das ambições heroicas no
passado. Eis uma observação tratada por Erich Auerbach em “A mansão de La
Mole”, ensaio do seu reconhecido
Mimesis, quando examina certa passagem
de
O vermelho e o negro que testemunha a observação de Julien acerca do fastidioso
convívio no salão de La Mole, uma obrigação que se vê chamado a cumprir com os
da casa diariamente nos extensos jantares da família.
Voltemos à primeira evidente
dissenção resultante do modelo de aparência para restabelecer certa leitura que
vislumbra o ideal heroico com o pressuposto perseguido por Julien. Seu mundo,
embora prenuncie os acontecimentos de 1830 e o passado seja deslocado como uma
constante no seu horizonte, é aquele esvaziado do sentido de grandiloquência, do
impulso enérgico do campo de batalha, agora redivivos apenas como um pastiche,
figurados seja nos próprios salões, seja nos duelos destituídos de qualquer
cariz heroico, seja ainda nos amores falsamente irrealizáveis. É um tempo de
conveniências, em que as decisões, quais sejam, são projetadas nos gabinetes,
por correspondências e por leis quase sempre a serviço dos que estão no poder e
quando executadas ao contrário servem apenas para a manutenção dos status
quo, das aparências e do funcionamento da ordem.
O que faz Julien um homem dentro e
fora do seu tempo é estar situado nessa sociedade enquanto sua consciência permanece
apegada ao tempo que não viveu. Ele anseia ser. E certo interesse na
gloriosa vida militar é exemplo disso. Mas, até mesmo a patente pode, nesse
tempo burguês, ser conquistada sem quaisquer feitos de campanha ou de front,
como acontece na sua repentina nomeação a tenente dos hussardos. O que resta ao
homem do seu tempo e da classe para a qual é alçado como figura limiar é a vida
acomodatícia aos vícios, incluindo as várias formas de corrupção, e às virtudes
do ter, uma condição que Julien ainda saboreia livremente na curta
temporada em Estrasburgo. Esse também é um exemplo de como o romance de
Stendhal testemunha continuamente os desvios do interesse do seu protagonista
do ser para o ter.
O tempo de Julien não mais
pressupõe o heroísmo conquistado pelos feitos e pelas armas, assim como o tempo
de Dom Quixote já não predispõe a existência de heróis de cavalaria.2
Se a sua origem não permite o aspecto calculista da ambição, levando-o a
contentar-se com os recursos e patente obtidos da tentativa do Marquês de La
Mole de limpar sua condição de povo e favorecê-lo à integração no mesmo
estamento social da família burguesia, resta-lhe vislumbrar o futuro através de
uma fantasia cujo vínculo é a emulação de Napoleão; o posto de tenente, por
caminho enviesado, participa desse interesse.
As qualidades desse novo tempo
e dessa nova sociedade favorecem às divisibilidades dos indivíduos; o
romance de Stendhal captura bem isso quando coloca suas personagens em debate entre
a vida prática e a vida interior, um recurso que favoreceu as leituras
precipitadas de classificar este como um romance psicológico. É certo que existe
um demonstrativo da interioridade, mas esta se distingue de uma noção de
consciência, possível ao romance apenas alguns anos adiante. O interior em O
vermelho e o negro se manifesta enquanto fratura do exterior, colocando em
crise os princípios de harmonia e coerência recorrentes entre essas duas
dimensões nos romances que nutriram o modelo do herói que aqui apenas se
vislumbra pela imagem imaginada de Napoleão por Julien, uma vez os feitos que
poderiam derivar da condição de tenente em Estrasburgo são parte da rede de
desvios que mencionamos anteriormente.
Agora, mesmo esse mundo subterrâneo
possuindo suas próprias leis — essas que não encontram respaldo na vida prática,
favorecendo a instauração do contraditório como parte indelével das personagens3
—, ele não é dotado da natureza e colorido próprios, funciona como matéria do
mesmo quadro, assim como o exterior é parte do interior no romanesco de Balzac.
A interioridade é a parte indissociada da ambição dos seus seres, suas
maquinações, seus julgamentos, aquilo que não se pode dizer nem se mostrar
vivamente na vida prática, social; é talvez, a alcova onde repousa sua
identidade coesa. Em Julien, cumpre uma função a mais, é o espaço possível para
a permanência da sua fantasia, projeto que nunca se revela, e é, para o leitor,
apenas matéria subentendida, um hábil truque da narrativa de denotar formalmente
o seu conteúdo. O terrível medo de Julien de que os da casa de Rênal descubram
a efígie de Napoleão escondida entre a palha do colchão no quarto de dormir,
por exemplo, participa dessa vida íntima que se segreda. Com Sorel ingressamos no
plano essencial da dissimulatio, princípio indispensável à sociabilidade,
tal como se demonstra, por outras vias, no romanesco de Machado de Assis, outro
dos melhores mestres em pintar esse gênero.
Melhor que a divisibilidade das
personagens, predisposta ao romancista a partir da ordem social vigente, são os
possíveis sociais que os indivíduos em ascensão têm à sua disposição a partir das
idas e vindas das conveniências. Julien, por exemplo, pode dispor de um título
militar entre os hussardos, como pode construir para si uma vida nova, tal como
o Sr. La Mole de alguma maneira o provê com o cargo, a propriedade, a fortuna, o
título e até uma nova origem quando converte o filho do carpinteiro de
Verrières em Monsieur de La Vernaye. Se Julien possui ambição, na sociedade a
qual pertence o educa a podar suas arestas opulentas a fim de conquistar sua
sombra no novo reino, como dispõe o padre Pirard; esse controle, por sua vez, é
invalidado pela mesma sociedade que incentivam seus indivíduos para tanto,
enquanto deles tiraram proveito.
Reiteradamente se ressalva o desenvolvimento
da ascensão social de Julien e pouco se observa que essa criatura parece, como
vimos até agora, destituída de qualquer interesse concreto. Será mesmo? É
verdade que todos ao seu redor possuem um ponto a que desejam chegar, Sorel
não. O vermelho e o negro examina o indivíduo solitário que se a
história não oferece as circunstâncias capazes de torná-lo um herói do seu
tempo, cabe a um outro ou a ele inventar. Mas este não é ainda o tempo da
liberdade total do indivíduo e sua luta é sempre escapar daquelas artimanhas
gestadas no escurinho dos interesses alheios que tanto podem favorecê-lo como
desmerecê-lo, como acontece na subida e queda social experimentadas por Julien,
um percurso que pode ser lido, no plano romanesco, como pastiche do
itinerário do herói em busca da posição magnânima. Aqui se observa a presença
do histórico em Stendhal: não é o acontecimento ou os feitos, conforme
dizíamos, são as engrenagens dirigidas pelos interesses e pelas atitudes dos
homens.4 Ao romancista, interessa esse instante em que se forja a dupla
diretriz do histórico: a factual e a ficcional, decidindo-se ele, é claro, pela
segunda, porque, além de tudo, esta é, agora, uma possibilidade de intervir num
mundo entorpecido.
Curiosamente, talvez
contrapondo-se novamente ao ideal romântico — ou expandindo, por compreender
que na ordem vigente apenas uma parte do seu heroísmo é possível — Stendhal delega
à mulher a experiência heroica, tornando suas personagens em expressões
igualmente relevantes dessa atitude nova do indivíduo romanesco: a de
sabotador das regras sociais. O romance em leitura oferece três figuras que sua
relevância se assume nesse sentido: a Sra. de Rênal, a Srta. Mathilde de La Mole
(eis outro duplo)5 e na presença fantasmal de Marguerite de Navarra.6
A primeira, se não assume publicamente o caso amoroso com o adolescente, seu
funcionário, também não o nega. Passados uns poucos anos de ausência do amante,
não medirá esforços para tentar salvar Julien quando descobre do andamento da
sua condenação pela inopinada tentativa de assassinato contra ela, fazendo-se,
reiteradas vezes, em visita, sua companheira pública de cela até uma
intervenção viva do marido.
Em grau superlativo, Mathilde restaura
toda a dimensão do herói; ainda que marcada pelo idealismo da mulher romântica,
principalmente quando se torna uma imitatio de Marguerite de Navarra e
assume, sob todas as penas imputáveis às figuras do tipo no seu tempo, a luta
pela salvação de Julien. A narrativa não incide seu foco sobre a jovem de La
Mole, mas o pouco que demonstra do empenho enérgico dessa personagem no
desenvolvimento do seu delírio paranoico, é suficiente para entendê-la como,
noutra camada da narrativa, a verdadeira heroína do romance, o que pode ser
lido como mais um dos desvios propositados por Stendhal dos expedientes em voga
dessa forma narrativa.
As circunstâncias amorosas, embora
impossíveis, realizáveis, também descredibiliza O vermelho e o negro como
uma história de amor; isso aconteceria se, constatada a impossibilidade da
realização de Julien como herói pela via militar, tal como sua insígnia, um
caminho definitivo fosse a história do homem que enfrenta tudo e todos em nome da
sua paixão. Mas, Sorel enfrenta apenas seus próprios sentimentos. E ama a quem?
Stendhal emprega, principalmente no desenvolvimento amoroso na segunda parte do
livro, todas as qualidades do romance de amor romântico, suas idas e vindas da
corte à paixão, do enlace ao ciúme, com a propriedade de alguém que quase uma
década antes tratara do tema em De l’amour (1822). Por vezes, seu narrador
ridiculariza o modelo dessas histórias — como quando um príncipe russo oferece
a Julien um conjunto de cartas pré-escritas capaz de servir definitivamente no desenvolvimento
amoroso com a Sra. de La Mole e que protagonista executa positivamente a
intriga utilizando-se da marechala de Fervaques, demonstrando que o amor
apaixonado é um modelo capaz de se imitar, em vez de uma realidade.
É a possibilidade dessas histórias
de amor resultarem no apelo trágico (como a de Marguerite de Navarra e Boniface
de La Mole), mas Sorel ama exclusivamente, talvez, a possibilidade de se fazer
um herói. Suas decisões que favorecem a reviravolta do final da história de
amor com Mathilde de La Mole são essenciais no restabelecimento desse ideal
nascido desde quando o adolescente Julien deserdado da casa paterna é
confrontado com a visão do sangue que corre da pia batismal na igreja de
Verrières. Mas, outra vez, a dinâmica contrária do seu tempo interfere e,
ciente da inviabilidade do destino heroico, o amante se lança para o imprevisível,
o movimento quase sempre escolhido quando se demonstra a oportunidade de alcançar
aquele felizes para sempre recorrente no romance de seu tempo. A
inesperada carta da Sra. de Rênal que rompe com a vida posta em Estrasburgo resulta
no ato desesperado que arrasta Julien para a prisão; mas este ato resulta num
gesto covarde, sem sentido aparente no desfecho do romance.
O que almeja com a realização
amorosa, no entanto, parece destoar do desdobramento que o favoreça no seu
ideal napoleônico, tanto que a “obstinação da autonomia”, valendo-nos
dos termos de Franco Moretti, é substituída em O vermelho e o negro pelo
abandono (no sentido de entrega) do herói ao espírito do seu tempo. Como
é possível tratar de motivação ou de ambição heroica em Julien? Dois instantes,
um de cada parte do romance, pode responder essa questão, embora não conduza a
narrativa a um ponto harmonioso.
Desde o interesse amoroso do jovem
mentor pela Sra. de Rênal que ele observa a discrepância de classe e sabe que
não importa o que faça as posições mesmo se fossem demovidas permaneceriam devido
ao longo fosso social que não se desfez com o levante da burguesia. Esse reparo
contém o indício de uma ambição? A derrocada do modelo social vigente pela
assunção de um tipo divergente, que galgou tal posição social individualmente? O
enlace amoroso com a Srta. Mathilde, no segundo instante do romance, parece oferecer
uma possibilidade positiva para as duas questões, afinal, Julien passa a uma
hierarquia superior nessa sociedade depois de desfazer o destino pressuposto
de uma jovem da aristocracia. Ao saber das circunstâncias amorosas entre a
filha e o seu funcionário, o Marquês de La Mole lamenta (contraditoriamente
nessa sociedade das conveniências), a impossibilidade de vê-la marquesa.
A desfeita de Julien, no
entanto, ainda que em certo momento acredite o contrário é, como tudo o que
conquistou, aparência, produto do seu ódio impotente. É inócua, então, a
constatação: “‘meu romance está terminado […] Soube conquistar o amor desse
monstro de orgulho’, acrescentava, olhando para Mathilde; ‘seu pai não pode
viver sem ela, nem ela sem mim.’” O modelo dominante possui suas próprias estratégias
de permanência, provam os favores recebidos do futuro sogro. Seu princípio heroico,
impossível de desenvolver na reforma do mundo de adaptáveis leis, é desviado para
a conquista puramente individual em que o outro é tomado como meio; mas,
no fim, ele passa, como denuncia a carta fatal da Sra. de Rênal, por um
interesseiro — o princípio do oportunista, acrescentaríamos. Com Julien,
estamos apenas às portas do reino do indivíduo, permanecido em contínua ascensão.
Agora, nada é tão simples no
universo engendrado por Stendhal em O vermelho e o negro, cuja estrutura
é alimentada por uma percepção variável, contraditória, desequilibrada e
incerta. Esse papel (de interesseiro) que reduziria Julien ao tipo arrivista
não se sustenta por dois motivos. Primeiro, os princípios da própria Mathilde
de La Mole são convergentes com os de Sorel e ela o escolhe justamente porque
as qualidades que nele observa divergem dos tipos que a cortejam, isto é, no
nível da sociedade em questão todos estão submetidos às mesmas leis de
interesse, anulando-se o eventual poder de uns sobre os outros. Depois, o reaparecimento
das raízes provincianas das quais não se escapa de maneira tão simples,
conduzem Monsieur de La Vernaye ao abandono das eventuais ambições que alguma,
como leitores, vez atribuímos a ele. E isso o redime? Não há do que redimi-lo. A
ambição só dura no seu horizonte quando as circunstâncias o convêm. Na prisão, o
que deseja é morrer sem dever a ninguém; recordemos o incômodo nele provocado
pelo burburinho da proporção sensacionalista que o seu caso jurídico adquire
entre a gente de Verrières e de Besançon. Julien é, antes de tudo, um orgulhoso
nato e qualquer conquista precisaria estar submetida a essa natureza —
diríamos. Mas, ele é mobilizado por um sentido autêntico de nobreza (entre
outros princípios de autenticidade) que nele se manifesta quando esse valor foi
corrompido e a criaturas como ele imposta a resignação da impossibilidade de
exercê-lo.7 O sinal evidente é seu discurso ante o júri que não
revela sua autenticidade, não nega suas atitudes — o que é um gesto de
reconciliação com seu mundo —, e questiona o peso da sua culpa quando compara seu
caso com as práticas da classe que o julga.
O discurso de defesa às avessas
além da autoafirmação de Julien é a confissão do destino daqueles que o imprevisto
arrastou para fora de seu tempo e por ele foram desprezados — o sem-sentido da
existência que Stendhal revela não como catástrofe e sim como parte comum da
existência8 e que apenas ao romance foi dada a possibilidade de
acessar: “um romance é um espelho que se carrega ao longo da estrada. Tanto
pode refletir para os seus olhos o azul do céu como a imundície do lamaçal da
estrada” — observa o narrador numa das passagens em que abre um parêntese na
organização da história para comentar despretensiosamente uma circunstância ou
o andamento da narração. O motivo de Stendhal com Julien — o seu percurso errante
e, por isso, descontínuo, imprevisível e aberto — repousa nos meandros da
própria vida, e esta, só é possível na errância, porque é feita de escolhas e
decisões que servem (tocam e modificam) igualmente à existência humana e à
história.9
Somadas essas qualidades — que sintetizaríamos
com essa capacidade que os escritores possuem de introduzir novas forças àquelas
facilmente encontradas nas obras de sua época — às tantas outras evidenciadas
ao longo da vasta bibliografia em torno de O vermelho e o negro, é
possível encontrar duas saídas para estas notas. A primeira é a
reiteração, talvez desnecessária, da importância desse livro na história do
romance. Francesco Fiorentino afirma que com ele se inaugura o romance de
ambição, um novo tipo para uma forma que jamais deixou de se reinventar desde
sua origem. Mas Stendhal acentua uma descoberta em curso, a do presente a
partir da reinvenção do conteúdo da história e a da contradição como marca
constitutiva do indivíduo, esta que é, afinal, a demonstração dos primeiros
instantes do homem como matéria ao lado da história. A segunda saída, derivada
da anterior, é que dos propositais desvios de um escritor que se demonstra
desconfiado em relação aos modelos então vigentes da forma romanesca se forjou
uma obra de atualidade perene, afinal, os limites da ambição apenas se
distenderam ao lado das expansões do indivíduo e do individualismo na dinâmica
social.
Notas
1 Stendhal ergue o seu romance sob
o signo dos duplos. Os tipos e funções são variados. Os dois padres assinalam
duas forças ideológicas rivais e integram um duplo modelo de ordem política: o
padre Pirard é um jansenista, daí suas inclinações para o poder dominante na
Restauração; agostiniano, acredita no princípio da predestinação, qualidade que
o favorece na aposta por Julien. Frilair, de educação jesuíta, é um opositor
dos jansenistas, por suas vaidades, opulências e devido o proselitismo da
igreja com a aristocracia. Além desses pares antitéticos, o romance lida, entre
outros, com as implicâncias província e capital, antigo e novo regime, aristocratas e burgueses,
idealismo e materialismo, passado e presente, entre militares e religiosos,
estes designados desde o par de cores do seu título — o negro é continuamente
lembrado pelo protagonista como parte de sua classe e da sua condição de
quase-padre, o vermelho é do uniforme dos hussardos.
2 Dom Quixote é a exceção na norma
e Julien a norma na exceção, conforme assinala René Girard: “Cervantes nos
apresenta um herói pelo lado avesso num mundo pelo direito, Stendhal nos
apresenta um herói pelo lado direito num mundo pelo avesso.” (169).
3 Concordo aqui com Franco
Moretti: “Com Julien e Fabrice, Onêguin e Pietchórin, a continuidade entre
interior e exterior se desfaz, e a interioridade adquire relevância enquanto
princípio de contradição: de infelicidade e incoerência, dualidade e
desarmonia.” (140)
4 René Girard observa o mesmo
quando compreende os impasses políticos entre ultraístas e liberais neste
romance.
5 Franco Moretti observa que cada
uma das mulheres encarna um tipo de amor demonstrado em contradição: o
amor-vaidade e o amor-paixão, respectivamente. Acontece que o amor com a Sra.
de Rênal ao lado do amor com a Srta. de La Mole converte-se em pacato idílio
doméstico, “sereno e espontâneo, e certamente não vibrante, conúbio burguês”,
isto é, finda o destino do amor-paixão; enquanto este, no segundo caso, expande
o vínculo dos amantes para a obsessão, ou, o capricho individual, como se fosse
o amor-vaidade.
6 Esta é uma das poucas intrusões
do elemento histórico na ficção stendhaliana. A princesa Marguerite da dinastia
Valois se tornou rainha consorte de Navarra e depois da França por seu primeiro
casamento com Henrique III e Navarra. O enlace amoroso de fim trágico é retrabalhado
pela pena de Stendhal, beneficiando-se, certamente da conturbada vida amorosa
de Marguerite. O procedimento tem sua importância nesse destaque porque
favorece a compreensão do procedimento adotado pelo escritor neste romance,
como deixa demonstrado na nota final que acrescenta a O vermelho e o negro:
“Para não tocar na vida privada, o autor inventou uma cidadezinha, Verrières,
e, quando precisou de um bispo, de um júri, de um tribunal, situou tudo isso em
Besançon, onde nunca esteve.” O romance se estabeleceu a partir de dois
episódios marcantes no seu tempo: o caso Berthet, em que um filho de pequenos
artesãos foi executado em fevereiro de 1828 por matar sua primeira amante depois
que ela torna público para o patrão o envolvimento do funcionário com a filha;
e o caso Lafargue, cujo desfecho acontece em março de 1829, em que um
marceneiro aluga um par de pistolas e mata sua amante, tal como se refere em Promenades
dans Rome (1829). Para Antonio Candido, em “Melodia impura”, tal gesto, que
se repete com Stendhal na feitura de outros romances, demonstra que “a sensação
e a impressão de leitura eram células germinais da criação fictícia [de
Stendhal], que aparecia sempre como um processo de organização do material
sentido, isto é, na terminologia ‘ideológica’, experimentado e pensado.” (146).
7 Nesse sentido, o último
remanescente em que se fundem esses princípios por sua execução na vida prática
é o Marquês de La Mole. Embora exercida na surdina, a solidariedade do
privilégio se manifesta no reconhecimento demonstrado para com Julien que chega
a sobrepor hierarquicamente o filho Norbert, ainda que este já tenha seu lugar estabelecido
na ordem. Sobre as incongruências entre “o sentido espiritual e o sentido
social” da palavra nobre na sociedade de O vermelho e o negro, veja
René Girard.
8 Ao desenvolver o que designa
como “paradoxo de Waterloo”, Franco Moretti esclarece um aspecto essencial
demonstrado por obras como O vermelho e o negro. “Se todas as épocas,
portanto, sentiram a necessidade de representar a história (e, no seu interior,
o percurso da vida individual) como uma trajetória destinada à realização de um
objetivo, como um processo ‘dotado de sentido’ — essa, como vimos, teve de
aprender a imaginá-la como algo sem sentido, não porque a catástrofe fosse o
destino de todos, obviamente, mas pela razão igualmente desconcertante de que
ninguém poderia se sentir, individualmente, em segurança.” (199)
9 Este aspecto inovador de
Stendhal nos impasses entre história e ficção poderíamos acrescentar aos traços
observados por Leyla Perrone-Moisés no que designa como “modernidade de
Stendhal”: “Stendhal pode não ter tido uma visão clara da modernidade em termos
ideológicos, mas seu modo de visão e é o da modernidade: a obra como esboço, o
enfoque fenomenológico do real, a perda do ponto de vista monocêntrico, a
fragmentação do sujeito psicológico, a sinceridade como máscara, o nome como
pseudônimo, o passado como prazer de reconstituição e o presente como vertigem
de perda. São esses traços que constituem, para nós, nosso contemporâneo
Stendhal” (28).
_____
O vermelho e o negro: crônica de 1830
Stendhal
Raquel de Almeida Prado (Trad.)
Penguin Companhia das Letras, 2018
648 p.
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Referências
Auerbach, Erich. A mansão de La
Mole. In:
Mimesis. Trad. George Bernard Sperber e equipe da Perspectiva.
5 ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.
Candido, Antonio. Melodia impura.
In:
Tese e antítese. 6 ed. São Paulo: Ouro sobre Azul, 2017.
Girard, René. O vermelho e o
negro; Problemas de técnica em Stendhal, Cervantes de Flaubert; A ascese do
herói. In:
Mentiras românticas e verdades romanescas. Trad. Lilia Ledon
da Silva. São Paulo: É Realizações, 2009.
Mann, Heinrich. Stendhal
(apêndice). Trad. Ricardo F. Henrique. In: Stendhal.
O vermelho e o negro.
Trad. Raquel Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
Moretti, Franco. Waterloo Story.
In:
O romance de formação. Trad. Natasha Belfort Palmeira. São Paulo: Todavia,
2020.
Perrone-Moisés, Leyla. Stendhal e
a era da suspeita. In:
Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.
Fiorentino, Francesco. A ambição:
O
vermelho e o negro (Stendhal, 1830). In: Moretti, Franco.
A cultura do
romance.
Trad. Denise Bottmann. São Paulo, Cosac Naify, 2009.
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