A égide da metodologia cartesiana de elaborações de
categorias consideradas equilibradas e delimitadas acaba por proporcionar
formulações no mínimo dualistas. A nossa abordagem converge com os estudos
recentes no campo da filosofia da ideia da díade. Além de nos atentarmos que
ela vem outorgando o tom das análises, também incutirmos no pensamento das
coisas, dos seres exercerem relações sem possibilidades de distinção, mesmo que
aparentes.
Concebemos, nessa seara, que os entes não apenas se unem,
mas se encontram indissociáveis. No tocante ao campo das ideias, ao voltarmos
para os primórdios da filosofia, iríamos perceber o quão lado a lado ela se
encontra, influenciando e sendo influenciada pela literatura nos mais
diferentes contextos históricos. Destarte, em uma perspectiva mais detalhada,
diríamos que alguns elementos entre a filosofia e a literatura, nas suas
composições, além de serem semelhantes, próximos, também nos revelam determinadas
questões que passaram a ficar alheias ao longo da nossa história, sobretudo, a
partir da modernidade. Entre essas unidades compositivas, temos a necessária
presença da coletividade para suas caracterizações como o fato do atestado da
existência de algo só ser possível pela presença do outro. Partindo, portanto,
dessa junção indissociável entre os seres, da profunda relação entre Literatura
e Filosofia, chegaremos à conclusão dessa díade acontecer em todas as
dimensionalidades, sejam elas nas intencionalidades, nas articulações e até
mesmo para a concretização e caracterização de algum produto como uma obra.
Reconhecemos quão óbvio é que nada surge do nada, sendo
assim, toda produção, pensamento, seja filosófico ou literário, só é plausível
sua elaboração pela experimentação da vivência, dos entendimentos, das
interpretações, do pensamento com os outros. Na mesma acepção, só será possível
atribuir como o meu texto, a minha reflexão, o meu olhar, a minha interpretação
se os outros tomarem para si a assimilação deles, seja para criticar, conhecer,
retificar, ratificar, julgar. Portanto, necessito do outro para formular-me e
deles também para constatar a existência minha, das ideias, dos meus textos.
Dessa forma, a tríade autor, obra e leitor nunca será provável com a dissolução
de qualquer uma das partes, pois só desta guisa não terei apenas o todo, como
também, a única possibilidade de existência das partes diante da circunstância
de todas elas se fazerem presentes. Então, para a elaboração da ficcionalidade,
das minhas indagações reflexivas na busca da compreensão das pessoas e do
mundo, só com a efetiva presença do outro em todas as etapas do processo da
mimese: pré-configuração, configuração e reconfiguração, no sentido de Paul Ricœur.
Ricœur em
Tempo e Narrativa (tomo I) refere-se a esse
processo como mimeses I, II e III. Destarte, a ideia que circunscreve estas
dimensões da presença do outro é que tornará estas constituições miméticas
possíveis, pois, sem ele, nenhum desses momentos de ação das mimeses será
viável, pois o outro é fundante para realizar essas marchas e nos assegurar
quaisquer atuações enquanto sujeitos no mundo. Apesar de ser notória essa tese
e, consequentemente, ser fácil reconhecer a impossibilidade de se levar adiante
o percurso de transformações proporcionado pelas mudanças miméticas sem o
outro, a modernidade procurou e se constitui na tentativa de ausentá-lo. Assim,
o ser moderno se formou como sujeito único, autônomo, buscando sempre a
autossuficiência, cultivando e legitimando a individualidade e a crença do “apenas
a mim basta”.
A Modernidade, então, formou-se, tendo como principal
característica a centralidade no EU. Junto a esse Eu-Centro, ao longo dos
séculos, foram inseridos modos de ser e de se ver
pari passu no
acentuamento do Eu e, consequentemente, no apagamento do outro. Desta forma, o
imaginário social do sujeito moderno era integrado apenas por maneiras
individuais, soberbas, vaidades, e o mundo, portanto, era elaborado de acordo
com os vínculos relacionados apenas com os desejos, vontades e pensamentos
deste Eu-Centro tão autêntico e independente. Assim, nada diferente a esse Eu
seria digno de menção ou reconhecimento.
No final da Idade Média, surgiu no imaginário social a
figura do Doutor Fausto, que parece cristalizar bem todos esses sentimentos
primeiros e vindouros da modernidade. Marshall Berman em
Tudo que é sólido
desmancha no ar: a aventura da modernidade apresenta-nos a figura do Fausto
da seguinte maneira: “O que esse Fausto deseja para si mesmo é um processo
dinâmico que incluiria toda sorte de experiências humanas, alegria e desgraça
juntas, assimilando-as todas ao seu interminável crescimento interior; até
mesmo a destruição do próprio eu seria parte integrante do seu desenvolvimento.”
Fausto, seria, portanto, esse ser a querer centralizar todas
as fortunas humanas em si para que o seu mundo interior fosse tão rico quanto
todas as experiências que o mundo possibilitaria para todos, todavia, a
autossuficiência e a glória seriam únicas e dele. A excelência do mundo das
vivências e das cognições habitaria no seu ser individual. Esses aspectos
podemos contar em
História do Doutor Johann Fausto, escrita de um
anônimo do século XVI, na seguinte passagem em que ele mesmo, um tanto
atormentado e inquieto com a possibilidade de ir para o Inferno, chamado de
Geena, a vaidade de tudo querer e tudo poder arrefecia a sua alma como podemos
ver no capítulo 16: “Doutor Fausto tinha continuadamente um remorso no coração
e um pensamento, o de haver cometido uma falta ao renunciar à felicidade de sua
alma, prometendo-se então ao Diabo pela obtenção de bens terrenos. Mas o seu
remorso era o mesmo da penitência de Caim e de Judas”. Considerava-se,
portanto, indigno de perdão, por essa razão, não tinha nada mais a fazer a não
ser intensificar mais ainda os seus desejos e trazer para si mais realizações.
Notamos, assim, como a centralidade no Eu e na mesma direção
do esquecimento do outro faz com que o sentir-se independente fique mais agudo
e a vaidade mais robusta a ponto de formular ideias tidas como potentes que,
mesmo mancas, superficiais como do Eu ser o único responsável pelo seu destino,
pela sua formação, são consideradas válidas, reconhecidas e legitimadas por
todos os outros sujeitos. Chega-se ao ponto de onipotência como em Fausto ao
rivalizar com Deus e mesmo com as falas um tanto realistas do Espírito, enviado
para dar tudo o que desejava, não causar qualquer arrefecimento em sua
veleidade: “abusaste por demais do dom precioso de tua inteligência e te
declaraste inimigo de Deus e dos homens, a isso não deves culpar a ninguém a
não ser a tua altivez orgulhosa e atrevida, por isso perdeste tua mais bela
joia e adorno: a proteção de Deus”. Destarte, as características do sujeito
moderno e do seu imaginário compõem a maneira de ver, as ambições, as
jactâncias convergem no personagem Fausto. Nesta linha, asserte Berman “a
manter viva certa consciência fáustica e a contestar a proclamação
mefistofélica de que o homem só poderia realizar grandes empreendimentos
obliterando qualquer sentimento de culpa e preocupação”.
Não é à toa que a história do Fausto continua não só a ser
contada ao longo dos séculos como inspiradora para muitos sujeitos modernos e,
mesmo quando reconfigurada em novas versões como a de Goethe, segue a convergir
com o imaginário moderno no qual estamos submersos, como evidencia Berman: “Homens
e mulheres modernos, em busca de autoconhecimento, podem perfeitamente
encontrar um ponto de partida em Goethe, que nos deu com Fausto nossa primeira
tragédia do desenvolvimento. É uma tragédia que ninguém deseja enfrentar —
sejam países avançados ou atrasados, de ideologia capitalista ou socialista —,
mas que todos continuam a protagonizar. As perspectivas e visões de Goethe nos
ajudam a ver como a mais completa e profunda crítica à modernidade pode partir
exatamente daqueles que de modo mais entusiasmado adotam o espírito de aventura
na modernidade. Todavia, se
Fausto é uma crítica, é também um desafio —
ao nosso mundo, ainda mais do que ao mundo de Goethe — no sentido de
imaginarmos e criarmos novas formas de modernidade, em que o homem não existirá
em função do desenvolvimento mas este, sim, em função do homem. O interminável
canteiro de obras de Fausto é o chão vibrante porém inseguro sobre o qual
devemos balizar e construir nossas vidas.”
Essas questões que nos aproximam das composições fáusticas
expressas pelo autor do século XVI, por Goethe e por Thomas Mann, indicam-nos quão
atual Fausto nos é, não apenas no sentido do personagem, mas das suas
características, na vontade de potência de maneira individual, na retirada da
ideia e de tudo que o cerca da centralidade de Deus, agora substituída pela do
homem, um homem individual. Com a modernidade, as características faustianas
não só se tornaram mais agudas, mas a principal busca de muitos em ser, mesmo
de maneira inconsciente, tal qual. Mefistófeles se encontra transvestido no
que, nas mensagens dos instrumentos e ações realizadas pela sociedade moderna
ou pós-moderna, nos orienta como valor e fazem com que todos na condição
acrítica de dormência automática nos iludamos que a felicidade, a realização, a
autonomia, os sentidos da vida, encontram-se em consumo de produtos, em
vaidades de papéis dos carreiristas acadêmicos, nas exposições ilusórias de
representações do que não se vive, e sim, do automarketing que realiza sob a
condição vazia de experiências nas redes sociais, nos cargos de chefia, na foto
exposta do funcionário do mês, nos cargos e disputas políticas em todos os
níveis partidários, administrativos. Uma grande rede fáustica em que o espaço
para reflexão e/ ou arrependimento ou possibilidade de crítica é logo apagado
pelas urgências que a vida contemporânea impõe.
Poderíamos, sem maiores dificuldades, ver e nos reconhecer
no sujeito moderno e hoje contemporâneo, centrado em si, com seu olhar supremo,
que nada o detém e que tudo a ele é possível e disponível nestes dois trechos
do nosso autor anônimo do século XVI, ao se referir em um dos seus passeios no
específico caso do Palácio Papal e na observação de todos que se encontram
nele:
“Ele também visitou, invisível, o Palácio Papal, ali viu
muitos criados e cortesãos, assim como muitas delícias, que eram servidas ao
papa com tamanha abundância que Fausto disse a seu Espírito: ‘Caramba! Por que
o Diabo não me transformou em um papa também?!’. Doutor Fausto reconheceu que
eram pessoas como ele, cheias de presunção, orgulhoso, soberba e temeridade,
entregues à gula, ao vício da bebida, à fornicação, ao adultério; era tal a
impiedade do papa e daquela gentalha que ele logo disse: ‘Eu achava que era um
porco ou uma porca do Diabo, mas ele ainda tem de me manter por muito tempo na
engorda. Esses porcos em Roma já estão no ponto de abate e prontos para serem
assados e cozidos.’”
Vejamos agora no quarto ato denominado “Alta região
montanhosa”, na peça dramática de Goethe:
Mefistófeles
Qual será pois essa ânsia tua?
Decerto algo é de ousado e belo;
Já que tão próximo pairas da lua,
Para ela atrai-te o teu anelo?
Fausto
Em nada! Este âmbito terreno
Tem para a ação espaço assaz.
Realizo nele o intuito em pleno,
De esforço e arrojo
sou capaz.
Mefistófeles
A auferir glórias te destinas?
Vê-se que andaste com heroínas!
Fausto
Poder aufiro, posse, alto conteúdo!
Nada é fama; a ação é tudo.
Mefistófeles
No entanto encontrar-se-ão poetas,
Que, a alçarem tuas gloriosas metas,
Inflamem com chavões patetas.
Fausto
Nada, a ti, disso se revela,
Que sabes do homem, do que anela?
Teu ser de aguda,
hostil pesquisa,
Sabe do que o homem
precisa?
Mefistófeles
Cumpra-se pois tua fantasia!
O alcance do teu sonho me confia.
Fausto
Percorreu meu olhar o vasto oceano;
Cresce, e em si mesmo se encapela, alto;
Logo após se desmancha e ao vasto plano
Da orla, se lança em tumultuoso assalto.
Amuou-me.
O gênio livre,
independente,
Preza o direito e o
seu lugar à luz,
Mas a arrogância, a
exaltação fremente,
Só mal-estar no
espírito produz.
Julguei-o acaso, e firmei bem o olhar;
A onda estacou, para depois recuar;
Após vencê-la, a vaga ignara a meta;
Chega a hora, a brincadeira reenceta.
Mefistófeles
(
ad spectatores)
Que grande novidade aí se dá!
Sei disso há mais de cem mil anos já.
Com base nos trechos retirados que abordam em épocas
distintas o mito fáustico, percebe-se o quanto nos assemelhamos mesmo com a
própria obra anônima do século XVI, relembrando o trecho “eram pessoas como
ele, cheias de presunção, orgulhoso, soberba e temeridade, entregues à gula, ao
vício da bebida, à fornicação, ao adultério”, no dizer do grande filósofo
contemporâneo Peter Sloterdijk em
Ira e tempo: ensaio político-psicológico,
no tocante à questão de como nos é acentuada essa centralidade do Eu no mundo
moderno atual e chegando a invadir até a nossa configuração enquanto ser. Em
tom de consciência-crítica do momento, nos dirá, ao perceber o nosso caráter
condicionado e midiaticamente de qualquer posição: “Existência e ser-no-centro
significam hoje o mesmo. Heidegger certamente diria: existir é ser-retido na
médio-cridade”. Destarte, tudo que o homem moderno toma para si que se confunde
com si mesmo sempre é algo idealizado e potente para ele. Espelhado na sua
eficiência em ser. Algo como reiterado por Mefistófeles, “Decerto algo é de
ousado e belo”.
Além de ser algo esperado de extraordinário, de um efetivo
vaidoso romântico, no dizer de René Girard, senhor pleno de si e desconhecedor
de qualquer outro que não esteja perante o seu espelho. Assim, de toda vontade
realizada como nos diz em Goethe: “Realizo nele o intuito em pleno,/ De esforço
e arrojo sou capaz”. Portanto, não necessito de outros na minha trajetória,
pois não sou influência, e sim, influente e grande realizador, e mesmo quando
ocorre momentos de reflexão do tipo “Que sabes do homem, do que anela?/ Teu ser
de aguda, hostil pesquisa,/ Sabe do que o homem precisa?”, Eu senhor de si e
independente do outro asseguro: “O gênio livre, independente,/ Preza o direito
e o seu lugar à luz,/ Mas a arrogância, a exaltação fremente,/ Só mal-estar no
espírito produz”. Não é à toa que além do trocadilho da vaidade inverdade que
tanto enaltecemos tem nos levado a perdas de sentidos e reverências. Como nos explicita
Sloterdijk antes de nos apontar o motivo de tudo que advoga desta “Existência e
ser-no-centro, contextualiza-nos, mesmo problematizando a questão da ira, irá
elucidar o mundo corrente e suas transformações: “entramos em uma era sem
pontos de coleta da ira com perspectivas mundiais. Não sabemos mais, nem no céu
nem na terra”, assim, diante deste sentimento global, ele nos descreve a
sociedade na qual estamos inseridos: “Ela não gera senão uma embriaguez
insatisfeita e quase não leva mais a termo outra coisa além de ações
expressivas isoladas”.
Com toda essa vigência de perdas de sentidos, aspectos
históricos e tradições, são expandidas novas formas de comportamento que só vão
acentuando os comprometimentos dos indivíduos e suas vidas sociais, por
exemplo, as mediações internas, que podemos nos debruçar noutra ocasião, em que
pesem ser mais constantes, mais acentuadas, pois se esquece cada vez mais o
reconhecimento do outro. Mesmo que em um mundo de “espumas”, na leitura de hoje
do mundo por Sloterdijk, ocorra uma provocação deste Eu para a insegurança como
no seu Eu soberano, percebe que como não atingirá sua integridade moral,
distinta, única, superior, mas apenas algum temor no afronto físico, então se
dissipa em seu ser qualquer abalo forte. Pois, de todas as outras formas que
para ele realmente importa, vê-se seguro, mesmo que em seu ser apresente
“mal-estar no espírito”, não será algo insuportável a ponto de desistir de si e
ter de reconhecer o outro.
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