Por Renildo Rene
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Foto: Leo Martins/ Agência O Globo |
Ela já tem uma trajetória bastante sólida na literatura —
especialmente poesia, publicando cerca de 17 títulos — e na música, mas este é
apenas o seu quarto romance publicado (em 2023, pela Bertrand Brasil). Denise
Emmer, artista carioca, reimagina suas cifras literárias para montar
O
barulho do fim mundo, narrativa que realoca uma família transtornada na
violência dentro de um testemunho lírico e volúvel produzido por uma residência
secular.
Conhecemos, então, Amiudinha, uma garota com a infância
ameaçada pelo desprovimento de afeto da mãe e os constantes abusos do seu
padrasto. Diria assim que esse é o núcleo dos 15 capítulos curtinhos e o seu
interesse maior, na verdade, salta para o modo como conhecemos essas
personagens: aqui, a verdade é relatada por uma casa que, com um fundo de “vida
própria”, se afeiçoa à garota e Lanterna, um cachorro comovido pela defesa de
sua fiel companheira. Balançando entre o real-possível e o real-fantasia, o
livro vai tentando equilibrar certo teor fantástico e lírico.
A casa e os seus novos moradores. Recém-instalados,
essa dupla de indefesos me lembra um pouco o cachorrinho do desenho
Coragem,
o cão covarde (Cartoon Network, dir. John R. Dilworth) enfrentando perigos
assustadores para salvaguardar a sua casa e os seus donos, desmontando também a
sua personalidade amedrontada para fazer jus ao seu nome. Já no romance de
Denise, as suas personagens funcionam dentro de uma lógica de temas bem
específicos sobre infância e tirania — mas ainda na atmosfera do fantástico,
tal qual a animação. O nome de Amiudinha reflete sua condição de inferioridade
frente às formas frequentes de autoridade que sofre por seus cuidadores. Os
momentos em que é verbalmente descuidada pela mãe para preparar o banho de seu
padrasto revelam isso. Porém, certas pretensões de realismo — quais sejam,
fixar descrições objetivas específicas — são suspensas para que a história
consiga simular sentimentos e devaneios dentro de um espaço penetrado pelas
trevas da violação infantil. Diga-se de passagem, assim são as chances da
filha-criada de resistência e de proteção aos mal assombros adultos: “O momento
em que admirava as estrelas radiantes, mais belas do que todas as coisas que
vira até então, inventava que o mundo haveria de ser uma praça florida em meio
ao oceano escurecido.”
Essa família aparece como o centro: a partir do momento de
instalação na nova casa, as ações das personagens entre si e as reações
garantem a agilidade da trama. E ainda assim o livro se equilibra no “bruto” da
narração do que somente para os desentendimentos parentais. Isso porque a casa
como narradora vai lapidando a história em torno de uma fala diferente da que
se espera o convencional. O enredo sequencial e episódico permanece, muitas
vezes são elementos que a escritora não pode fugir para construir seu romance.
Mas a inventividade maior reside na possibilidade de o próprio domicílio contar
os eventos que ocorreram no seu interior de maneira atraente, permitindo ao
leitor penetrar nessa condição
sui generis.
Poderia até defender que ela é uma personagem fora a parte,
mas isso reduz um pouco seu potencial objetivado. A residência é muito mais
aproveitada na sua natureza de narradora do que de um ser vivo que interage com
a família. Sua proximidade com os moradores atuais ocorre em termos de uma fala
sentimental, pois à medida que se afeiçoa com Amiudinha e causa repúdio ao
casal principal, ela destina ao leitor sua experiência de relatora de certa
tirania paternalista. O que não elimina, claro, seu grau de afetividade com os
sujeitos. Não é que não participa da história — quem narra também é testemunha —,
mas é que ela não pode ser alçada à categoria humana enquanto sua presença é
superiormente sentida no elemento fantasioso da própria leitura.
A casa e o seu dicionário. Os primeiros capítulos de O
barulho do fim do mundo são, por vezes, truncados, e transparecem uma
dificuldade inicial de acertar o seu tom. Na tentativa de introduzir o seu novo
universo, Denise inicia com um discurso um pouco artificial, que tenta
justificar a existência da propriedade para deixar claro a centralidade da
arquitetura no romance. Exemplificam essa problemática os flashbacks
isolados, trazidos somente para inserir a noção temporal de moradores antigos
que adentraram na memória do abrigo. Ora, se a autora apenas sumariza cenas
passageiras e não investe nesse passado, tal recurso apenas causará lapsos e se
tornará dispensável, pois o leitor encontrará a força do livro em outras
questões distintas.
Diria, sobretudo, que essa preocupação em confirmar uma
residência de moradores transitórios em nada envolveu, pois a noção de
experiência e de afinidade com os sujeitos que passaram por ali será mais
pavimentada, e por isso complexa, no vocabulário químico e musical. E é
justamente ao sair desse flashback e centralizar a trajetória de
Amiudinha que a linguagem da casa alinha sua visão de mundo com a protagonista,
trazendo elementos do pensamento infantil para o romance. Dito em outros
termos, a fala da casa secular buscará a possibilidade de ficcionalização nas
imagens sentimentais refletidas nela, e não no teor histórico evocado no início
da leitura.
Até mesmo para essas crises, a casa parece ser um prazer da
escrita. Sua brecha para cativar é resultado de um processo que divide a fala
da casa entre o conhecimento acumulado obtido de outros moradores e o
sentimento de apego no presente. Tente ouvi-la: “A tudo eu via e chorava pelas
trepadeiras umedecidas dos muros. Um objeto colonial impotente, o que eu era.
Presa na imobilidade de minha condição de coisa”. Passado o início estranho, é
de uma beleza ver a casa alçando o seu próprio modo de dizer, se sentindo
igualmente livre para tomar posição e arrochar um laço meigo. Para minha
surpresa, e o leitor poderá provar disso, a veia ficcional de Denise Emmer
larga quaisquer preocupações externas e abre espaço para a imaginação dos
problemas enfrentados por nossa garota em perigo no meio de uma narração
arrojada na sensibilidade. É como se a autora olhasse para aquele exemplo “de
ditadura inchada da vaidade ordinária” e apresentasse uma possibilidade para
falar do mal que não seja simples caracterização.
A casa e a sua estrutura. Mais à frente, nos
deparamos com uma surpresa: Amiudinha agora se torna a mãe de Céu, filha
gestada e logo depois criada no cárcere onde vivem. Aliás, a netinha está longe
de ser meramente um artifício romanesco que dê conflito ao enredo: é um
alicerce ainda simbólico da autora para erguer a noção de liberdade e
desobrigar a leitura de dar justificativas para o acontecido, pois para o corpo
ingênuo, violação e abusos são situações confusas. Isso a casa entende e nos
entrega sensivelmente, para que caminhemos entre indignação e deslumbramento;
entre a sua atmosfera sombria no caso da infância perseguida e a cintilação dos
futuros sonhados em posição à crueldade que deu nascer novas relações.
“Um quarto há de ter a medida do mundo. Pequeno mundo entre
três vértices e uma cama rasa. O teto não abria em cúpula no ventar dos astros,
e a visão era a de um pequeno ângulo, encontro dos lados do triângulo. Escuro,
sem brechas e brisas, somente o espaço para um olhar discreto onde o horizonte
não mora, tampouco os sonhos penetram.”
Da segunda metade em diante, o romance arrisca outros
conflitos maiores para paralisar todos os residentes. Seria uma tentativa de
gerar catarse ou comoção diante da crueldade dos tiranos? Me questionei
rapidamente nisso como se estivesse diante de um problema, mas em seguida, a
admiração cresce ao compreender como a casa negociou sua linguagem com o
lirismo, remetendo às figurações e metáforas poéticas da autora. Os sentimentos
em torno do fim, eles mesmos, confusos e humanos, são discutidos no seu aspecto
mais pueril possível. Por outro lado, tal aspecto pode significar a longa
aproximação do romance (e da escritora) com essa forma lírica assumida pela
casa da aspirante a bailarina, obtendo certo valor singular na leitura.
Mãe(s) e filha(s), avó e neta. A literatura por vezes não
quer definir papéis dicotômicos, porém as relações triangulares dessas três
mulheres driblando lamentos, possibilidades, angústias e cuidados maternais são
indicações da tarefa de identificar a prepotência da barbaridade masculina, e
enfrentá-la. Minando a infância e a liberdade feminina, o padrasto acaba por
minar a própria residência. Contudo, se a sua covardia nunca impediu a
fantasia, a narração — já tão focada na visão de nossas “Alices” — encerra seus
dias de existência física na própria experiência do romance. Os sonhos,
especialmente da Amiudinha e da menina Céu, são reconstruídos dentro daquele
tom lírico para que a casa adquira rigidez no seu testemunho, e desperte
afinidades e julgamentos ao leitor. Nada é mais alegórico dessa relação do que
a imaginação convidativa para dar corpo ao fantástico cenário em que vivem.
Mais perto do final, a forma do romance se coincide com a
(des)forma da estrutura física do nosso “esqueleto de alicerces”. Sua ruína,
resultado do descuido de seus donos, acompanha um longo exercício da escrita
que se esfarela junto dela, e atesta a fidelidade de Denise aos limites da
casa-narradora. No último capítulo, as criações poéticas são valorizadas como
um endosso de tudo que essa linguagem se tornou. Para narrar seus últimos dias
de vida e a liberdade alçada pelas personagens, decide a própria residência
transformar seu texto em um texto concreto, aludindo às reações químicas tão
caras à sua existência. E por que não dizer, é uma recriação alinhada ao
faz-de-conta. No meu momento, eu enxergo que acompanhamos o caso de destruição
do lar, mas não somente isso, tendo em vista dois pontos singulares:
visualizamos como aquela própria arquitetura reage ao seu falecimento e o que
disso se reverbera na estética do romance.
Certamente,
O barulho do fim do mundo é um livro de
muita agilidade, lidando com os próprios perigos da escrita para tentar se
resolver e prender o leitor. Tem uma linguagem ensaiada e criada para a casa,
porém somente explorada na última metade; tem personagens óbvias, mas
carismáticos, que cedem suas fantasias para o pensar ficcional; a sua estrutura
é flexível e pouco decidida (principalmente devido a duração do texto), porém
ainda trazem caminhos que convidam para uma breve reflexão. É como se
majestosamente houvesse um pulsar do coração em algum tesouro secreto, e somos
nós que vamos descobrindo que tesouros são esses.
Denise Emmer, por fim, encontra na própria trajetória
poética a estratégia singular de “expurgar os demônios impregnados na pele
juvenil”, ao alçar o lirismo como semblante da narração. O abrigo da Amiuda,
Lanterna e Céu, por sua vez, é o elemento mais próximo que temos para
confrontar a estrutura romanesca e a estrutura física como encenação ficcional
que destina o livre exercício da imaginação. Muito mais que nos ganhar ou
somente ver se funciona, temos ainda outro questionamento: é possível imaginar uma
casa como território narrativo nas nossas leituras?
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O barulho do fim do mundoDenise
Emmer
Bertrand
Brasil, 2023
166 p.
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