Em 2012 a editora Oficina Raquel reuniu doze escritores de
diferentes origens e idades para compor um livro em homenagem a Clarice
Lispector, um dos maiores nomes da literatura brasileira. Cada autor reescreveu,
em um conto, um personagem da escritora. Entre os integrantes da coletânea
estão, entre outros, os brasileiros Conceição Evaristo e Silviano Santiago, a
portuguesa Maria Teresa Horta e a cabo-verdiana Vera Duarte. O livro,
intitulado
Extratextos 1: personagens de Clarice Lispector reescritos, se
encontra esgotado. Contudo, usando de boa vontade e paciência, é possível adquirir
um volume usado.
Nessa antologia, Conceição Evaristo contribuiu com o conto “Macabéa:
flor de mulungu”. A editora resolveu publicá-lo numa edição independente em
2023. Como o nome já indica, a personagem escolhida pela escritora foi a
protagonista de
A hora da estrela. A partir do episódio de desfecho da
narrativa, uma Macabéa deitada na calçada em posição fetal depois de ter sido
atropelada, volta ao passado para que se faça uma reescrita do seu destino,
mantendo parte de sua essência.
Ainda sobre o título,
mulungu é uma árvore que pode
ser encontrada no cerrado, caatinga, Amazônia e mata atlântica. Ela perde suas
folhas em determinada época do ano. E justamente quando parece morta, ressurge,
florescendo inclusive no inverno, quando as árvores em seu entorno estão
desfolhadas. As folhas podem ser utilizadas em chás que servem como calmantes e
sedativos. E não raramente, a diferença entre remédio e veneno é a desmedida,
quando as folhas são usadas em excesso para que se consiga o efeito contrário
ao da cura.
Intercalado por ilustrações de Luciana Nabuco, o conto de
Conceição Evaristo redivive Macabéa. Béa, que carrega a morte consigo em seu
nome, como promessa a Nossa Senhora da Boa Morte, agora também carrega a vida.
Ela exerce duas funções nas quais mostra considerável talento: parteira e
cerzideira. Nos dois casos, é uma mantenedora da vida, seja trazendo crianças
para o mundo sem deixar nenhuma morrer, seja remendando lenços para as pessoas,
que chegavam cheias de lágrimas. “O afazer da moça não se resumia somente em
restaurar os fios esgarçados. Era tudo o mais. Tratava-se de recompor, de
devolver a vida que ali existiu.”
Assim como em seu conto “Olhos d’água”, Conceição escreve
novamente uma história atravessada pelas águas. No texto que dá nome ao seu
livro de 2014, a personagem sem nome se sente culpada por não lembrar a cor dos
olhos de sua mãe. Depois de uma viagem de volta às origens para redescobrir essa
informação, ela percebe que eles são “cor de olhos d’água”. São olhos que
choram as agruras da vida. E em conclusão, o sofrimento fica marcado nos olhos,
mais até do que a própria cor deles. Macabéa, por não ter conhecido a genuína
felicidade, também verte as mesmas dores de existir, esse “dói aqui dentro, não
sei explicar”.
As águas que perpassam as narrativas de Conceição são uma
faceta de Oxum, o orixá das águas doces, que está sempre intimamente ligado às
emoções. “Um dia, Béa ouvira a fala de um rio. E quem diria, pensava ela, que
um tantinho de água arrastando num leito tão esmirradinho fosse capaz de
oceanar as dores de sua secura.” — aponta a voz narrativa de “Macabéa: flor de
mulungu”.
A voz narrativa é um ponto de análise importante para as
duas histórias. Clarice Lispector traveste a voz narrativa de
A hora da
estrela de Rodrigo S.M. para contar uma história, que por boa parte do
texto funciona como uma metaficção. Conceição Evaristo, por sua vez, usa a
narradora sem nome para que criemos um sentimento de identificação. Justamente
por ela não possuir um nome ou algo que a faça distinta, ela pode ser qualquer
pessoa. Pode ser inclusive o leitor, o que traz à baila outro recurso
inteligente já utilizado por Conceição: os artifícios empregados para criar um
traço de universalidade da personagem.
Os traços de universalidade aparecem quando Béa é, ao mesmo
tempo, todas as mulheres brasileiras. Puxando pelo fio da memória, ela lembra
de três mulheres: uma índia, uma mulher negra e uma portuguesa. As três olhando
a água do mar (novamente a água).
A Macabéa
de Conceição carrega simbolicamente a história do Brasil em si mesma. Ela é
particular e é universal. “E assim era Béa. Una e múltipla”. “Macabéa, a Flor
de Mulungu, sou eu. Tal é a minha parecença-mulher com ela. Repito, sou eu e
são todos os meus.”
Por fim, Macabéa é como o mulungu. Ela é o mulungu. Perde as
folhas e ressurge, com as flores vermelhas como o sangue que verte da
personagem em posição fetal no chão da calçada, mas tendo a potência para
alimentar com néctar toda a vida existente. Ela não é mais “um parafuso
dispensável na engrenagem da vida”.
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