Luiz Gama e a força da poesia satírica brasileira e do ser negro
Por Herasmo Braga
Uma das características da
literatura tida como negra não se refere exclusivamente às questões
epidérmicas. A concepção literária de negritude está associada principalmente
ao fator identitário de um sujeito que se propõe a deixar de ser um objeto e
passa a atuar no meio, buscando consolidar-se enquanto peça importante na
formação social. Portanto, um autor, para fazer parte de um segmento literário
tido como negro, deve assumir seus referenciais constituídos pelas condições do
ser negro em uma sociedade marcada pela exclusão. Assim, a construção e a assunção
de uma identidade são um dos pilares deste marco da negritude. No caso da
literatura, esse aspecto se reflete no eu-enunciador que se quer e se reconhece
como negro.
Com essas observações iniciais,
percebemos o quanto é essencial este marco identitário. Ser negro em uma
sociedade escravista ou pós-escravocrata não corresponde, necessariamente, à
ação ou ao pensamento do sentir-se negro e assumir-se enquanto tal. Verifica-se
que a língua é um dos maiores patrimônios culturais de um indivíduo e uma forte
circuncisão de sua identidade. Nesse trajeto, a literatura funciona como
validação do processo de formação do protagonismo do negro, pois através dela o
sujeito historicamente marginalizado tende a sair da sua subcondição, já que “a
literatura não é produzida em suspensão, [...] Ela provém de um lugar, [...]
incontornável de emissão da obra literária” (Glissant, 2001, p. 42). Com isso,
pretendemos potencializar as várias motivações que fazem um autor escrever e
publicar. Um homem de uso da linguagem como ofício não pode se resumir apenas
às questões estéticas ou engajadoras de suas produções. Pode, também, sob
efeito do riso, do burlesco, do formal, do erudito, construir uma obra
esteticamente viabilizadora de outros aspectos, como de propagação da sua
identidade e um certo engajamento, no caso de Luiz Gama, a favor da causa
negra.
Na leitura da obra Primeiras trovas
burlescas, observa se que Luiz Gama parece perceber bem esta possibilidade,
ao inserir no poema “Prótase” — que inicia sua obra — nomes como os de Ariosto
e Lamartine, figuras marcantes pela atuação literária em prol das questões
sociais, sem com isso, inviabilizar suas obras esteticamente.
Luiza Lobo tece também alguns pontos
importantes para a singularização da produção literária negra marcada pela
identidade: “Um dos aspectos primordiais que a meu ver define a literatura
negra, muito embora não seja um elemento norteador, em geral, dos estudos sobre
o assunto, é o fato de a literatura negra do Brasil — ou afro-brasileira — ter
surgido quando o negro passa de objeto a sujeito dessa literatura e cria a sua
própria história; quando o negro visto geralmente de forma estereotipada, deixa
de ser tema para autores brancos para criarem sua própria escritura no sentido
de Derrida: a sua própria visão de mundo. Só pode ser considerada literatura
negra, portanto, a escritura de africanos e seus descendentes que assumem
ideologicamente a identidade de negros” (1989, p. 91). Assim, a produção
literária negra marcada por esses fatores identitários que busca relembrar um
passado com o sentimento de pertencimento era evidente, ou seja, o sentimento
de exclusão poderia até existir, mas este não se daria por questões referentes
à cor, mas por outros elementos que poderiam ser de habilidades, de idade, de
função dentro da comunidade.
Observa-se então que em Luiz Gama
esses aspectos de sujeição a um indivíduo marginalizado, dando-lhe voz através
dos feitos da enunciação de um negro em uma sociedade mestiça que se quer
afirmar branca aos moldes europeus, serão constantes. Nas suas afirmações e
lutas político-literárias sociais, as questões de memória, identidade e
resistência serão elementos que irão compor todos os movimentos táticos de Luiz
Gama, como bem demonstra o seu livro de poemas satíricos Primeiras trovas
burlescas, primeira aparição pública das suas ideias, que terá o
engajamento em prol do reconhecimento do negro como motor de suas realizações.
Interpretamos que a escolha para
esta aparição através de um livro de poemas não se deu por mero acaso, pois
Luiz Gama reconhecia, como todos os sujeitos da sua época, que aos homens das
letras não cabia somente versejar ou contar histórias, a eles atribuíam-se
inúmeras outras questões, como bem frisou Roland Barthes. Além do prestígio que
esses homens das letras exibiam, a eles também se oferecia a condição de serem
centros orientadores da vida social, já que alguns eram políticos e empresários
de grande influência na sociedade. Como esse meio era restrito, um negro
inserir-se nele implicava começar a ruir o projeto de formação de uma
identidade nacional em que aos negros caberia apenas um papel secundário e
braçal. Portanto, intervir nesse meio seria muito mais do que uma simples
atitude de se fazer presente, mas de ser ouvido, incomodar, provocar e provar a
todos que ao negro não era permitido pensar. Nesse sentido, num dos poemas de
Luiz Gama atribui-se a condição de pensar e ser capaz de não só borrar um
livro.
Outro aspecto significativo da obra
de Luiz Gama é o fato de o autor assumir-se em seus poemas, diferenciando-se
dos demais, que se refugiavam no véu dos pseudônimos. Por esse viés, não
analisamos em Luiz Gama pretensões narcisistas ou estilísticas, mas propor ser
uma voz negra em um meio no qual o negro não era bem-vindo era estar na linha
de frente nas questões que pudessem vir discriminar ou sobrepujar a figura do
negro a uma sub-condição. Para Luiz Gama, fazer uso da literatura, como frisa
Glissant (2001), como instrumento de resistência, é uma tentativa de
sobrevivência, no sentido de procurar recompor, através dos seus poemas, o
tecido cultural africano, utilizando-se, ainda que de forma fragmentada e
dispersa, dos vestígios encontrados e que pudessem possibilitar-lhe a condição
de agregar, através da reelaboração em uma terra distante, os elementos que
compõem a identidade de um ser exilado.
Um aspecto que talvez confirme essas
questões inicialmente levantadas seria a adoção de poemas satíricos em vez do
lirismo advindo do período romântico da sua época. Isso demonstra a maneira
consciente com que Luiz Gama se inseriu no meio literário.
Interessante observar uma questão
crucial na produção satírica de Luiz Gama: é você falar sobre outra coisa, é
você falar a partir de, i.e, um negro inserido em um meio onde os fatores de
cor eram muito mais determinantes do que as questões estéticas, atuar de forma
irônica e satírica e ainda assim ser reconhecido por muitos desses dirigentes,
o que prova a força e a qualidade discursiva de seus poemas. Exemplo do poema “Álbum”:
Eu pego na pena,
Escrevo o que sinto;
— Seguindo a doutrina
Do grande Filinto. (Gama, p. 29)
Nesta passagem do poema percebe-se o
sentir das mazelas que atuam sobre o negro, dos quais lhe retiram até o caráter
humanitário. Como afirma Elciene Azevedo, “Luiz Gama denunciava naquelas linhas
uma intransigência social que aparentemente se projetava como intransponível”
(1998, p. 151). Destarte, Luiz Gama não voltava a sua ação discursiva ferina
apenas aos segmentos políticos e sociais da época, a crítica à religiosidade
católica também se fez presente, pois este era um dos pilares que servira de
sustentação para o regime escravista e para a desumanização do negro. Escreve
ele em outra estrofe do poema “Álbum”:
Ao peso do cativeiro
Perdemos razão e tino,
Sofrendo barbaridades,
Em nome do Ser Divino! (Gama, p. 29)
Essa era uma das ações de
catequização ao tornar o negro católico: domesticá-lo para que pudesse aceitar
passivamente sua condição de sujeito sem alma e a de que os castigos terrenos
constituíam pagamento para a salvação de sua alma. E esses são pequenas
demonstrações do vigor satírico de Luiz Gama e da sua qualidade poética
identificado em ser um negro.
Dedicado
ao poeta Élio Ferreira
Escrevo o que sinto;
— Seguindo a doutrina
Do grande Filinto. (Gama, p. 29)
Perdemos razão e tino,
Sofrendo barbaridades,
Em nome do Ser Divino! (Gama, p. 29)
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