A sequência de créditos finais de
La
chimera (2023), dirigido pela italiana Alice Rohrwacher, mal começa e
aparecem alguns pássaros filmados contra o céu. Aos poucos seus grasnidos e cantos
são cercados pelo pop suave e excêntrico de Franco Battiato. Pareceria um
detalhe insignificante; normalmente, com os primeiros nomes na tela, as luzes
da sala se acendem e o público desaparece. Eu mesmo faço isso, principalmente
se não gosto do filme, mas “Gli uccelli” (“Os pássaros”) exige nossa atenção: é
o final ideal para um filme que se comporta como a música de Battiato.
O compositor e a diretora são tão
sérios quanto brincalhões. A contradição se manifesta na capa de
La voce del
padrone, álbum que contém “Gli uccelli”: vemos Battiato de paletó e gravata
na praia; por baixo da calça jeans, um pé calça uma sandália e o outro um
sapato. Rohrwacher, por sua vez, realiza filmes que sugerem simultaneamente as
caricaturas carnavalescas de Federico Fellini e o misticismo marxista de Pier
Paolo Pasolini. Isso nos leva a mais uma coincidência: Rohrwacher e Battiato
são criadores movidos pela irracionalidade que inventam ao deixar fluir a
memória coletiva, como demonstra outra música incluída em
La voce del
padrone, “Cuccurucucù”, que alude, claro, ao huapango de Tomás Méndez, mas
também Bob Dylan, os Beatles e os Rolling Stones. Rohrwacher faz algo
semelhante com seu novo filme, que sugere inúmeras influências e até temas
cinematográficos e culturais, mas sempre evita os significados explícitos.
Já em
Lazzaro felice (2018)
Rohrwacher havia conseguido uma das expressões definitivas de seu imaginário.
Nele narrou a vida de um santo semelhante a outros filmados por Carl Theodor
Dreyer e Roberto Rossellini. Cheia de influências, o filme é um compêndio do
cinema religioso europeu, expresso com uma ingenuidade, uma ternura e uma
desordem que o torna uma experiência genuinamente mística. Um filme mais
convencional narraria com precisão e talvez dogmatismo quem ou o que é Lazzaro,
um menino inocente que dorme durante décadas e acorda idêntico. Em vez disso,
Rohrwacher parece confundida com o enredo que ela mesma escreveu. A sua
perspectiva vai além da dos narradores que concluíam, nos séculos XV ou XVI,
que se alguns frades ou freiras voaram foi porque Deus os ressuscitava.
Comovida pela beleza dos milagres, Rohrwacher admite que não entende nada.
Esta fé na superstição popular é
novamente expressa em
La chimera, e é precisamente o que causa a
dificuldade, para muitos, de resumi-la. Nas fichas informativas da Letterboxd e
da Wikipedia, as sinopses são reduzidas a uma frase. Será devido ao desejo de
preservar os mistérios de
La chimera, ou à confusão produzida por uma
trama dissolvida entre incidentes desconcertantes? Seja qual for a razão, estes
resumos desajeitados produzem uma impressão de marginalidade — são sempre os
filmes mais populares que merecem descrições detalhadas e até analíticas — o
que não corresponde inteiramente às intenções de Rohrwacher. E digo “de jeito
nenhum” porque, com efeito,
La chimera não é um filme típico, mas isso
não significa que procure ser um anticinema alienante ou desconfortável.
O protagonista de
La chimera
é um arqueólogo inglês chamado Arthur (Josh O'Connor) que acaba sair da prisão,
aonde chegou por praticar seu verdadeiro ofício: ladrão de tumbas etruscas. Ele
não parece ter muito sucesso, pois mora em uma cabana e se aquece à noite com
um pequeno botijão de gás. Embora seus amigos e colegas o recebam com apreço,
Arthur parece furioso e reserva sua gentileza para Flora (Isabella Rossellini),
uma professora de canto que mora em uma vila elegante e em ruínas, decorada com
afrescos classicistas de pássaros e frutas. Rohrwacher nos dá a entender que
Flora é mãe de Beniamina (Yile Vianello), namorada de Arthur, que lhe aparece
em visões e sonhos filmados em 16mm. Ambos os personagens parecem guiados pela
saudade de uma mulher que, apesar dos delírios de Flora, nunca mais voltará.
Este, contudo, é apenas um dos vários pontos dramáticos que Rohrwacher se
recusa a desenvolver. Arthur e sua história se comportam na verdade como folhas
no ar, na água. Seu nascente romance com Italia (Carol Duarte), aluna de Flora
que oferece trabalho doméstico em troca de aulas, também parece relevante, mas
ele fica permanentemente preso em visões de Beniamina e em uma amarga diferença
entre ela e Arthur.
Poderíamos dizer que o tema
principal de
La chimera está ligado à raiva da Italia — talvez um
símbolo da nação — quando descobre o que Arthur faz para viver. E o
arqueólogo-ladrão rouba dos mortos para vender seus pertences sagrados no
mercado negro. Italia afirma que estes objetos “não são feitos para os olhos
dos homens, mas para as almas”. No fundo, Arthur sabe disso, pois se orienta
pela radiestesia, ou seja, utiliza bastões em forma de ‘Y’, como quem procura água
pela areia, para encontrar as tumbas, e quando fica sobre uma delas, um cansaço
inexplicável o ataca. Seus colegas chamam esses episódios de “quimeras”; daí o
título. Pode-se argumentar que Rohrwacher aborda assim a pilhagem britânica —
não esqueçamos a nacionalidade de Arthur — da riqueza cultural italiana, mas,
novamente, é apenas mais um elemento entre muitos para configurar uma fábula de
tom subversivo. Rohrwacher narra antes por meio de alusões: a pobreza e o
misticismo evocam Pasolini; a santidade e o realismo, Rossellini, para não mencionar
na colaboração de sua filha Isabella; o humor e alguns afrescos que se desvanecem
pelo ar vêm de Fellini, e a modernidade vista na forma de fábricas sugere
Michelangelo Antonioni.
Além das referências de
Rohrwacher, a doce extravagância dos atores norteia o filme. Isabella
Rossellini, por exemplo, dá a Flora a loquacidade de uma aristocrata em desgraça
diante de não sei quantas filhas vestidas em tons pastéis, enquanto Carol
Duarte brinca com uma caricatura séria ao dançar uma coreografia que é ao mesmo
tempo solta e rígida, ou dando aulas de italiano a Arthur em uma montagem
animada por “Spacelab”, uma música naif de Kraftwerk. Pela tela, os colegas de
Arthur cheiram a campo e a cerveja italiana, a
birra. Rohrwacher deixa o
elenco assumir o controle das cenas, a determinar seu ritmo e até mesmo o
enredo, que reescreveu para Josh O'Connor depois de conhecê-lo. Ao abandonar
seu poder de diretora e roteirista, ela deixa o filme se fazer e se confundir
com seus mistérios.
Quando Arthur vivencia suas
quimeras, a câmera foca nele e começa a virar de cabeça para baixo, como se nos
mostrasse passando para outra dimensão. Numa cena de aparente simplicidade, as
peças dentro de uma tumba parecem ouvir Arthur e seus colegas, que estão
prestes a saqueá-las. Com pura montagem e som, ou movimentos incomuns de
câmera, Rohrwacher anima e deforma a realidade; ela nos confunde com sugestões
e nos permite inventar, junto com ela, a explicação do sobrenatural, do divino.
Se assistir
La chimera
corresponde à experiência única e ao mesmo tempo viciante de ouvir
La voce
del padrone, não é porque Rohrwacher seja uma deriva de Battiato ou dos
muitos cineastas que admira. Ela é sua igual: uma cronista do milagre,
excepcional em nosso mundo sem fé, e uma original protetora da tradição. Uma cineasta
genuína.
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