Por Eduardo Galeno
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
— Boal/ Buarque
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Fedra num afresco de Pompeia, 60-20 a.C. World History Encyclopedia. |
Racine, Eurípides — para que servem, ou melhor, aonde vão?
Mais ainda: em que lugar ocupam quando falam de Fedra? Como sonham Fedra? A
isso, podemos qualificar ambos na esteira daqueles que falam, pensam e possuem
um ente fictício (uma ficção: a mulher Fedra). Eles falam
sobre (em uma
posição superior?), eles jogam e incidem como autores, como tragistas. A
tragédia, para os dois, é um receptáculo por meio do qual o aparelho temporal
escapa por um evento, quer dizer, uma eventualidade (ato, quiçá, sempre
disperso num texto em que o
sangue é o principal batismo de passagem).
Fedra alcança a ideia por participar — ser partícipe de um
evento no qual a chama tanto do dever quanto do desvio estão a par. Sencientes,
Eurípides, no teatro grego clássico, e Racine, no teatro francês do século
XVII, brotam na criação desse ente que vem persuadir o público. Persuasão por intermédio,
de novo, do
acontecimento. Esse acontecer que amplia o fatal e complica
a linha do acaso, manejando o barco da narração, só advém da pura necessidade.
Isso, aliás, é o que faz a tragédia ser uma tragédia.
Ode ao destino: no
tarot, a carta da Roda do Fortuna —
na figura da androginia diabo/ anjo marcando o programa do bebê/ criança/ adulto/
velho — representa a performance em caracterizar a nuance do tempo como
prefixada. Se a história de Fedra é sustentada por um evento, de que modo ele
vem? Porque, de fato, parece digno falar que ele mesmo já é sempre dado,
acontecido. Ou seja: Fedra pode ser culpada ou responsável? Primeiro falemos um
pouco sobre ela.
Fedra é uma mulher e é imaginada por homens ao seu redor. É
a esposa de Teseu. Ela se apaixona por Hipólito, seu enteado e — logicamente —
filho do seu marido (com sua primeira esposa). Fedra é uma segunda na linhagem
de amantes e objeto de magia de Afrodite, magia pela qual todo o texto grego já
está tachado na superfície.
Fedra, fidalga esposa de seu pai, o viu
e teve o coração, naquele mesmo instante,
inteiramente dominado por amor
violento e irresistível, que eu mesma instiguei.
(Eurípides,
Hipólito)
É bom deixarmos à vista que ela já aparece no canto XI (do
Hades) da
Odisseia — bem antes de Eurípides — quando Ulisses cai com sua
nau no mundo dos mortos. O fragmento acima nos mostra, a propósito, essa
repetição
ad infinitum que tanto o poema épico como a tragédia/ comédia
sustém na significação do feminino. A figura de Fedra exala no corpo da
história aquele toque nupcial em que, por um lado, a terra está intacta (o
sentido territorial) e, por outro, tudo se molha quando é tocado por ela.
“Seus desejos destroem-se uns aos outros!” — ditava a ama
Enone (no texto raciniano). O que pode sair daí é que Fedra, e mais ninguém,
sabe a potência do seu corpo. Realmente, a feminilidade antiga perpassa um
enigma. É tão óbvio — a sugestão enigmática na corporalidade de Fedra — que,
deixada de lado a visão turva (cegueira na qual o resíduo da velha Atenas é
exposto pela luminosidade incidente lunar da fêmea) dos que a rodeiam, é só por
meio da posse
no desejo que podemos, em primeiro momento, falar dela.
Muito bem. Fala de Fedra sob os olhos de Hipólito, mesmo de
Teseu. No entanto, como se pode notar, não há nada de falso — falsa
consciência, ideologia — nessa conjugação. Ora, no drama de Eurípides, na obra
de suas falas — como sujeito de enunciado brigando com o Real —, vemos um
caminho inteiro de como a mulher grega era visitada pelo imaginário masculino
em sua sujeira. Nela, existe uma fisiologia, física da pele, banhada de acessos
emotivos, isto é, de compromisso com o
pathos, com o patético. Pujança
absoluta nos afetos.
O fenômeno começa no corpo, enquanto a essência feminina,
parece, significa umidade. A umidade surge aqui na esfera do sujo, algo pouco
iluminado, quase sem luz direta. O irônico seria que esse universal não apenas
é anulado no contrato, como também resvala noutra cena: a de incorporação de
Fedra em singulares exteriores.
Explico.
Da visão de Eurípides para a visão de Racine, (acho) que o
drama sofre dilatação. Mas nada substancial, haja vista que, após o relapso e
relaxamento histórico, algumas imagens permanecem muito nítidas. Um exemplo que
constitui essa tendência reside no fato de que é o
Amor, começando na
letra maiúscula, o ânimo possuidor de Fedra. Maldição de Afrodite, Fedra é
animada num signo de circunstância passional. Numa
primeira inscrição,
ela não tem vontade (veremos abaixo que não é bem assim). Ela se confunde com o
próprio projeto de Amor. Racine e Eurípides conseguiram captar os versos de
manejo aterrador, que desabaram todo e qualquer monumento: “Do amor tenho os
furores” (Racine,
Fedra) ou “Amor, que traz para os mortais consigo/ a
ruína e todas as calamidades!” (Eurípides,
Hipólito).
Em outras palavras, o principal ponto anexado nesse ínterim
é o de aceitação da rasura. Estando em polvorosa, o ambiente em que Fedra vive
não acompanha o dos outros (apenas na contraposição). O fato de se exasperar,
de aterrar o envolto, constituindo a ligação, acompanha aquilo que existe no
ritual da cultura grega: a razão por que sua psique é porosa não pode ser
explicada simplesmente pela artimanha da moral e os costumes normativos.
A distinção dos quadros dramáticos, entretanto, é uma
distinção um pouco complexa. Fedra, como esposa eroticamente possuída,
necessita, a certo modo, do discurso quer de Teseu, quer de Hipólito (vindo
dali, mais ou menos mediado, mais ou menos pacífico, mas também violento).
Implica em formalizar a adesão de diversos modos de individuação, inclusive nas
partes que estão fora de cogitação de sua vontade. Chamo a voz de Foucault aqui:
“a vida é um longo tecido de infortúnios pelos quais os homens são provados” e “não
pode haver ensinamento da verdade sem um exemplum”. Esses dois cacos de
fala resumem a ideia¹.
A amplitude na ação de Fedra é a seguinte: ela, claramente,
é destinada, mas o Destino não pode ser completado sem um ardente desejo (a
interioridade é uma dobradiça e aresta do não é ela). As imprecações da deusa
contra sua física são apenas parte de um todo. Digo: o resultado é exceder a
lógica. Pouco importa se Fedra é inocente ou culpada. Isso acontece, isso não
depende do escopo do conteúdo moral (somente de sua forma: ela tem que provar e
ser exemplo).
Nitidamente, o que marca essa passagem, de Eurípides a
Racine, é o valor-mulher. Nada impede, entretanto, Racine de seguir à risca a
valoração da alma feminina, mesmo quando arrisca um Hipólito fora do horizonte
de discussão misógina (representado na peça de origem), mesmo no plano no qual
a solicitação de outra figura (Arícia, mulher amada e espelho de Hipólito na Fedra
de 1676) é inaugurada.
Afirmo que a valoração é negativa e não pode ser diferente
disso. Ou, de outro jeito, ela não pode ser preponderante no lado positivo.
Fedra, caracterizada sob o ditame exposto acima (da relação radical entre a
Vontade e o Fora), está eternamente exilada (como Electra, Antígona, Medeia). É
pura negatividade: onde Hipólito e Teseu — e as variações de personagens das
peças — estão, ela está diametralmente oposta.
Aí vemos o quanto a complexidade assusta. Não existe
vontade, existe vontade; o Destino se sobrepõe, mas fictício. Digamos que uma
coisa é certa: entre as duas peças, há uma ampla novidade: a de que o logos
ruma para o naufrágio do cronos em prol do kairós. Quer dizer, o
Tempo — geral — fenecendo e dando abertura ao tempo determinado (a paixão de
Fedra, o acontecimento que não se compara a nenhum outro).
Eu, reinar! Eu, ditar leis ao Estado,
Quando a fraca razão em mim não reina!
Quando os sentidos meus reger não posso!
Quando em jugo cruel respiro apenas!
(Racine, Fedra)
e ainda
Ah! Infeliz! Destino miserável
o das mulheres! Quais os nossos meios,
que palavras, para escapar ao cerco
desta desgraça que nos aniquila?
(Eurípides, Hipólito)
[A mulher grega não pode governar a pólis porque ela é maior
do que a forma da política; a mulher grega deve, no interior dos
recursos familiares, assumir a sua aniquilação como excrescência do patriarca.]
Aristóteles comentava que Eurípides era o dramaturgo das
coisas como elas eram de verdade. Barthes, se me lembro bem, ousou comparar
Racine a um magista, tratando os seus personagens como desordeiros. Quando
misturamos as duas interpretações, isso resulta num quadrado: as pontas de
cima, I e II, são cruzadas com as de baixo, III e IV (as primeiras são de
enunciação; já às segundas restaram a mitologia do enunciado). Aonde quero
chegar? Pulo para uma mulher: a Safo de Lesbos.
não sei como escolher:
em mim, há dois intentos
Safo, no fragmento 74, nos explica melhor a questão que aqui
apontamos durante o percurso do texto. Em Fedra, não existe apenas um único
caminho. Há dois. O de Eurípides — o do movimento para o discurso de um mestre
implicado no paganismo — e o de Racine — o da transformação da metanoia
cristã no caso modernista (podemos verificar os constituintes de um no outro,
mas há, realmente, uma diferenciação entre as duas noções). E, em ambos, os
caminhos entram em colapso por falta de tradução. O corpo de Fedra é intraduzível.
Não dá para nomear qualquer noção.
Minha principal tese é de que, embora as duas peças falem
sobre ela e suas proezas e seus desastres, Fedra não consegue passar totalmente
percebida. Por seu discurso, pode ser promíscua e santa, cínica e real,
complacente e rebelde. Pode ser Fedra.
os que me condenam,
que o vento e suas aflições os carreguem
(Safo, fragmento 73)
Notas
1 Do curso de Michel Foucault de 1982, pronunciado no Collège
de France.
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