Perto do final de “The Perfect Little
Lady”, um dos contos mais irônicos e perturbadoras encontradas no livro
Little
Tales of Misogyny (1977), Patricia Highsmith (1921-1995), a escritora
texana autoexilada que morreu na Suíça, avisa-nos que nada acontecerá à sua
protagonista, Thea, a “perfeita senhorita” do título. Nesse conto inquietante, a
narrativa nos apresenta uma garota que é uma
precoce
femme fatale
que destrói tudo e engana a todos, exceto seu pai distante, que suspeita do
tipo de monstro que ela criou.
Thea é retratada como uma autêntica
sociopata sem nenhum pingo de consciência moral ou remorsos que, por sua beleza
radiante e bons modos, atrai a admiração de amigos, estranhos e até do próprio
universo, o que lhe permite sempre conseguir o que quer. As duas últimas linhas
do conto, quando Thea completa 15 anos, narra que uma certa rival de nossa
protagonista sofre um acidente de carro que deforma para sempre seu corpo e
rosto. E é Claro, a personagem fica feliz com isso, e a narrativa ressalta que
a menina tem um futuro promissor, pois “escapará de todas as catástrofes”, já
que “existe uma divindade que protege perfeitas senhoritas como Thea”.
É talvez o final mais lapidar de
qualquer conto escrito por Highsmith e um dos mais próximos da sua forma de
compreender as relações humanas e o significado da nossa existência. A
escritora disse em mais de uma ocasião que a justiça não punia os personagens
de suas histórias e romances — assassinos, golpistas, ladrões, sociopatas,
extorsionários — porque esses tipos de histórias edificantes tendiam a ser
muito “aborrecidas” e “artificiais”. Além disso, estava convencida de que o
universo é indiferente às nossas ações: “nem na vida nem na natureza existe
justiça”. E se algum de seus malvados protagonistas acabava sendo punido ou
preso — como acontece em um ou outro romance — isso se devia mais a uma
causalidade, a um inexplicável jogo cósmico. Em geral, na sua obra, o crime
compensa e o criminoso tem tudo a seu favor.
É por isso que Tom Ripley sempre
se sai tão bem, tanto nos cinco romances de Patricia Highsmith em que ele
aparece como protagonista quanto na maioria de suas aparições cinematográficas
e, mais recente, na minissérie de oito episódios lançada pela Netflix. Escrita
e dirigida pelo roteirista vencedor do Oscar (por
A Lista de Schindler)
Steve Zaillian,
Ripley é, na minha opinião, não apenas a melhor
adaptação para as telas já feita de
O talentoso Ripley, o
primeiro romance em que aparece Tom Ripley, mas é uma perspicaz extensão
temática e conceitual do texto original de Higshmith e uma brilhante apropriação
genuinamente cinematográfica da história.
A adaptação escrita pelo
roteirista, criador e diretor Zaillian é muito fiel, em termos gerais, ao
romance de origem, adaptado pela primeira vez em
O sol por testemunha (René
Clément, 1960) e depois em
O talentoso Ripley (Anthony Minghella, 1999).
Estamos em Nova York, em 1960: Tom (Andrew Scott) é um pobre diabo que
sobrevive cometendo pequenas fraudes aqui e ali. Por uma confusão, o rico
empresário marítimo Herbert Greenleaf (o cineasta e roteirista Kenneth
Lonnergarn em uma participação especial muito competente) contata Tom,
acreditando que ele seja um amigo próximo de seu único filho, Richard “Dickie”
Greenleaf (Johnny Flynn), que há anos mora na Itália, desperdiçando o dinheiro
da família e se dedicando, supostamente, à pintura. Ou seja, al
dolce far
niente. Mr. Greenleaf pede a Tom que vá para a Itália e convença seu filho
bom
a voltar para assumir os negócios da família. São, portanto, férias
remuneradas, com tudo e um generoso salário incluído. Quando Tom chega a
Atrani, o acidentado lugar onde Dickie vive entre pedras, escadas e praias,
Ripley se apaixona pela geografia, pelo estilo de vida despreocupado do indolente
herdeiro e, finalmente, pelo próprio Richard, sob o olhar atento da namorada de
Greenleaf, a assim chamada escritora e fotógrafa Marge Sherwood (Dakota
Fanning).
Com oito episódios de uma hora
para desenvolver a história original, Zaillian expande o mundo do primeiro
romance de Ripley, concentrando-se principalmente na logística do engano, da
fraude e do crime. Presenciamos, desde o início, não apenas as decisões que vão
sendo tomadas por Tom, mas principalmente como ele pensa, planeja e, no final,
as executa. O Ripley de Andrew Scott é o que mais se aproxima ao personagem dos
livros: um ser amoral e opaco que sabe se adaptar a cada circunstância, que
pensa rápido e que faz o que tem que fazer com a precisão de um cirurgião. Ele
tem sorte, sem dúvida (como a “perfeita senhorita” Thea), mas também não lhe
falta audácia: quando se sente encurralado, sua fuga será sempre para frente.
Embora seja verdade que,
aparentemente, Andrew Scott, de quase cinquenta anos, é um Ripley velho demais
para o papel — supões que é um garoto de 25 anos e, em um dos episódios, dizem
que ele e Dickie têm “uns 30 anos” —, também é verdade que o primeiro capítulo
desta minissérie não termina quando fica claro que o ator irlandês assumiu
completamente o personagem. Estamos diante de um Ripley muito mais maduro do
que aquele encarnado pelo jovem predador Alain Delon, de 25 anos, de
O sol
por testemunha, sem falar no inseguro e instável Matt Damon, de 29 anos, do
filme seguinte. O Ripley de Scott não tem dúvidas: ele sempre sabe o que fazer,
como e quando fazer. Na verdade, ele se parece mais com o Ripley dos romances
subsequentes de Highsmith —
Ripley subterrâneo (1970) ou
O jogo de
Ripley (1974) — do que com o personagem inexperiente do primeiro romance,
mas o que importa: o rosto inexpressivo de Scott e seu inalterável olhar vazio
terminam prevalecendo sobre qualquer ceticismo.
Existem outros elementos notáveis
nesta miniss
érie al
ém de Scott. Em primeiro lugar, esse
tom wellesiano/ hitchockiano nas imagens, cortesia da fotografia a preto e
branco do tamb
ém vencedor do
Oscar (
Sangue
negro) Robert Elswitt, cuja soberba ilumina
ção de
focos nas ruas de Roma e os seus ocasionais enquadramentos inclinados e
interiores nos remetem a cl
ássicos como
O terceiro homem (Carol
Reed, 1949),
O homem errado (Alfred Hitchcock, 1956) ou
Sombras do mal
(Orson Welles, 1959).
Depois, a extraordinária sonoplastia,
que nos coloca noutro tempo, noutro mundo, que um ou outro espectador poderá
lembrar se tiver idade suficiente: um lugar onde tudo é pesado, barulhento,
onde precisamos de tempo para fazer algo, em que as coisas se movem ou são
movidas com dificuldade. Refiro-me ao elevador que avaria de vez em quando, aos
passos noturnos pelas antigas pedras romanas, o invasivo toque do telefone que
ecoa nos ouvidos, a assinatura forjada de Dickie que Tom carimba em cada cheque
com uma caneta que ouvimos
passear pelo papel… Tudo que Ripley faz
envolve esforço porque o mundo que habita é tátil: nada é digital, nada é apressado,
nada é simples. Seguindo um certo
dictum hitchockiano, em
Ripley
fica claro que, embora matar seja fácil, livrar-se de um corpo é mais difícil.
Vários meses atrás, quando
descobri que a Netflix produziria outra versão de
O talentoso Riply,
anotei no Twitter, meio brincando, meio sério, que esperava que as futuras
minisséries fossem dedicadas à construção de um
RCU, ou seja, um
Ripley
Cinematic Universe. Depois de tudo, Highsmith escreveu cinco romances com
Tom e o personagem já foi interpretado não apenas pelos já citados Delon e
Damon, mas por Dennis Hopper, Ian Hart, Barry Pepper e John Malkovich. Ou seja,
há muito pano para cortar e muitas presenças que podem aparecer de forma
surpreendente nas temporadas seguintes. Aparentemente, no desenlace desta
primeira (?) temporada de
Ripley, Zaillian e sua equipe leram meu tuíte.
Depois de tudo e parafraseando Highsmith: “existe uma divindade que protege
vigaristas e assassinos como Ripley”.
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