|
Goncharov Andrey Dmitrievich. Alieksêi. Ilustração para Os irmãos Karamazov |
Não apenas em Dostoiévski que a
obra literária russa dava palco para questões estéticas, político-econômicas ou
sociais.
1 Seja no periódico
Tempo,
2 nos Diários do
escritor ou nas Cartas a seus contemporâneos, Dostoiévski manifesta um profundo
entrelaçamento do conteúdo a ser representado na sua ficção nos diversos
gêneros nos quais escreveu. Neste ensaio, vamos nos deter apenas nas últimas
Cartas do autor e na relação entre algumas delas com seu último romance,
Os
irmãos Karamázov; uma relação comum quando tratamos de autores que
manifestaram sem restrições suas intenções literárias junto a interlocutores.
Na obra-síntese
Os irmãos
Karamázov,
3 Dostoiévski retrata o que há muito discutia em
Cartas e Discursos anteriores ou concomitantes ao período de escrita do
romance. A morte precoce de seu filho Alieksêi — que daria o nome ao jovem em
formação religiosa no romance em destaque
— e a viagem ao Mosteiro de
Óptina, que já havia sido também refúgio espiritual de outros escritores, entre
eles Tolstói, se transformaram no que a crítica considera o ponto alto da prosa
do escritor pós trabalhos forçados no kátorga.
3 Mas antes da obra
máxima do escritor, seus assuntos literários já haviam sido diluídos em outras
obras, menores ou não, como é o caso do suposto ateu de
Os demônios ou
do santo à moda de Jesus e Dom Quixote em
O idiota. A noção de ateísmo
na obra de Dostoiévski é antes uma tentativa de controle religioso e político
que sugere apenas descrições caricatas diante do fenômeno cultural que se
desdobrava na Europa do mesmo período.
Apesar de ser contemporâneo de
Charles Darwin (1808-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913) no Século do
Naturalismo, Dostoiévski não teve qualquer relação com o debate que causou
grande celeuma na Europa e que acabou criando uma nova cisão causada pela então
recente descoberta da origem e expansão dos hominídeos.
4 Tal debate
expunha outra fissura narcísica no pensamento religioso e nas suas incessantes
tentativas em explicar de maneira metafísica a origem do Ser Humano e do Mundo
via alguma crença religiosa.
5 O debate seria importante para um novo
modelo de pensamento, que fez a passagem de um deísmo ainda assentado nas
descobertas de Newton — este que era também teólogo — e nas Leis da Mecânica
para o Universo caótico de recombinações genéticas — antes de Mendel — que o
modelo Naturalista sugeria
a priori como princípio de (des)ordenação do
mundo orgânico. Antes disso, a preocupação de Dostoiévski nitidamente expressa
em suas Cartas aponta apenas para aquelas próprias de um teólogo, completamente
alheias a essas questões que circulavam fora da Rússia.
Antes de entrarmos na questão
Dostoiévski e a representação do ateísmo em
Os irmãos Karamázov, vale a
pena remontarmos por suas Cartas as obras que o escritor lia e recomendava a
seus interlocutores no fim da vida, durante a escrita dessa obra-síntese. Entre
os historiadores Schlosser e Prescott, que, para Dostoiévski têm “alto valor
educacional”, estão as obras de Walter Scott, Tolstói, Shakespeare, Púchkin,
Turguêniev e Gonchárov e — ao menos — Goethe e Schiller.
7 O autor
ainda deixa claro nas Cartas que recomenda a partir de uma reflexão da própria
existência; mesmo que depois de Walter Scott, morto em 1832, a literatura tenha
se transformado a ponto de deixar
Ivanhoe enfadonho pelas longas
descrições, fruto, claro, do veio histórico de Scott. Não devemos esquecer que
no bojo dos anos 1880, quando Dostoiévski recomenda essas leituras a seus
interlocutores, Tchekhov já sintetizava a vida russa em contos humorísticos e
peças teatrais que transformariam o Tempo no teatro do Século XX, o Século da
descoberta do inconsciente e de suas consequências para a representação
artística.
Em Carta, além da constante
preocupação de que a crítica da época não entendia tão bem o seu
modo de
representação artística,
8 Dostoiévski afirma que a consciência
nacional da Rússia é baseada na cristandade; “renunciar” ao nacionalismo, diz
ele, faria com que a Rússia caísse em puro ateísmo.
9 A pergunta a
Dostoiévski, que não lia diretamente a literatura ateia de seu tempo, seria
direta e simples: àquela altura, já com uma base sólida da literatura ateia e
Secular,
10 o que ele entendia por ateísmo (?). Aqui chegamos ao
suposto ateísmo de que Dostoiévski diz entender e o qual a crítica
insistentemente atribui a duas personagens perturbadas pela ideia de Deus em
suas obras. Antes de Piotr Verkhovensky e de Ivan Karamázov tomarem a forma da
representação romanesca, Dostoiévski escreve sobre seu material de fonte de
pesquisa a respeito do ateísmo e, no trecho selecionado, aproveita para falar de
sua concepção
diferenciada de Realismo na literatura:
“Eis o que tenho em mente:
primeiro, um longo romance intitulado “Ateísmo” (mas, pelo amor de Deus, vamos
manter esse segredo entre nós dois); antes de iniciá-lo, preciso ler toda a
bibliografia sobre ateísmo escrita por autores católicos e da Igreja Ortodoxa
Grega. Mesmo na melhor das hipóteses não conseguirei fazer isso em menos de
dois anos. Tenho o personagem principal em mente. Um russo de nossa classe social,
de meia-idade, que não é particularmente culto, embora também não seja inculto,
com certo grau de importância social e que perde, repentinamente, às portas da
velhice, a fé em Deus. Por toda a sua via ele dedicou-se ao trabalho, nunca
sonhou em fugir da rotina, e do topo dos seus quarenta e cinco anos não
angariou muita sabedoria na vida (a abordagem será puramente psicológica:
profunda em sentimentos, humana e absolutamente russa). A perda da fé tem um
colossal efeito em sua vida (o tratamento da história e ambientação já estão
ambos planejados). Ele tenta aderir às gerações mais jovens — ateístas,
eslavos, ocidentalistas, os fanáticos russos e os anacoretas, os místicos;
entre tantos outros, ele cruza com um jesuíta polonês; depois desce aos abismos
— e, ao final, encontra o Cristo e a Terra Russa, o Cristo Russo e o Deus Russo
(pelo amor de Deus, não fale disso a ninguém; quando escrever esta última
novela, estarei pronto para morrer, pois terei me livrado de todo o peso do meu
coração). Meu querido amigo, tenho uma concepção de verdade e realismo
totalmente diferente daquela dos nossos ‘realistas’ e críticos. Meu Deus! Se
alguém pudesse falar categoricamente do crescimento espiritual, todos os
realistas iriam bradar que era pura fantasia! E, no entanto, é realismo puro!”
11
O enredo do romance já estava
preparado antes mesmo da leitura da bibliografia — dado no mínimo curioso. Suas
recomendações não ultrapassam o pensamento religioso do autor; sejam elas
frutos de algum receio pela literatura profana de fora da égide da inspiração
divina, seja pela ausência de interesse em se aprofundar em temas que, para
Dostoiévski, não teriam de fato alguma significância profunda. Antes mesmo de
ler a tal bibliografia, Dostoiévski já tem o enredo e o encontro final do
suposto ateu com o “Cristo russo”/ “Deus russo”, mas chama a nossa atenção que,
assim como acontece com Aliôcha, a personagem
escolhe acreditar ou não
em um deus. Aqui, Diderot, que fez a passagem do deísmo ao ateísmo sem precisar
escolher acreditar ou desacreditar em nada, como mostra Minois, mas pura
e simplesmente pelo novo sistema de pensamento que o Século XIX apresentava, se
fosse ele um deus, sentiria seu nome profanado ao tê-lo na boca de Fiódor
Karamázov a torto e a direito. Em diversas Cartas Dostoiévski recomenda insistentemente
a seus interlocutores a leitura dos evangelhos, principalmente aqueles que
julga serem os mais transformadores. Sabe-se que Dostoiévski levou apenas a
Bíblia para o campo de trabalhos forçados, quando a sua pena de morte foi
transformada em exílio por ordem do tsar Nicolau I em 1849, e talvez da leitura
dela, da vida de Jesus, que celebra e divulga com entusiasmo catequético,
Dostoiévski nunca tenha saído, mesmo depois de 1854, quando recebe autorização
do governo para retornar São Petersburgo.
12
Mesmo para a forma romanesca
Diderot ultrapassa sem pensar os limites nítidos da forma do romance de
Dostoiévski. Diderot, Sterne, Daniel Defoe são exemplos de “romancistas
envergonhados”, como diz a crítica francesa Marthe Robert — epíteto que merece
também comentário. Eles, antes, parecem negar o estreitismo formal e as
convenções nas quais gradualmente o romance poderia se trancar — e nas quais se
trancou. Lembramos que na ascensão do romance, além das novas possibilidades
causadas pelas transformações tecnológicas, econômicas e sociais que
possibilitaram a sua dispersão,
13 o Gênero que mais demarcou a
fronteira clara do Tempo no romance foi a Carta. Em
Pâmela,
Clarissa
e até em
Gente pobre, a junção Tempo e Espaço faz com que a concorrência
com a História, premissa básica da separação das funções dos Autores desde
Aristóteles, seja mais insistente e intrusiva pois aumenta o grau de realismo
da obra em questão. Concorrer com a História — contra uma leitura institucional
e nacional dela — será o principal objetivo das obras de memorialistas do
Século XX, entre elas as
Memórias do cárcere, os
Contos de Kolimá,
entre outras obras de quem viu e sentiu na pele experiências carcerárias, de
massacre ou de abusos do Estado, tal como Dostoiévski também sofreu. Mas, ao
contrário das eloquentes voltas ao mesmo eixo que as personagens de
Os
irmãos Karamázov fazem deixar hoje em dia o romance carregado de episódios
desnecessários — e apesar de também grandes em volume de páginas — as intenções
dos autores das obras de testemunhos são muito mais tchekhovianos no intuito de
sintetizar uma experiência coletiva do que walterianas ou dostoievskianas no
desejo de aumentar via camadas e camadas enunciativas dificultando o nível da
representação da realidade na arte literária.
14 Um pouco das
possibilidades que Diderot apresentava em
Jacques, o fatalista15 não teriam feito mal a
Dostoiévski.
Aqui voltamos ao problema da
declaração de Dostoiévski ao final do trecho citado de sua Carta: se a
transformação espiritual de Aliôcha Karamázov indica também mais um passo de
Dostoiévski ao seu realismo superior, teríamos um problema que não poderia ser
resolvido ou sequer descrito pela Teoria Literária — pois se trata de outra
natureza para a questão; é um outro sentido para a palavra realismo,
completamente alheio aos estudos da literatura. Basta ver o Assunto de que
trata a Carta da qual o excerto foi retirado.
16
Poderíamos pensar nesse realismo
apenas na medida em que acompanhamos o crescimento espiritual de Aliôcha: todos
os episódios dos encontros de Aliôcha com os irmãos, com o pai ou com quaisquer
outras personagens estão submetidos a essa leitura, como se Dostoiévski
obrigasse o leitor a usar óculos de lentes com um grau de foco específico
durante a leitura do romance. Aliôcha é tão pouco
humano quanto Míchkin,
pois demonstra alguns traços comuns das paixões humanas — como a felicidade em
ser bom, por exemplo —, mas está limitado ao não julgamento das ações dos
outros, uma das características que compõem a humanidade de um sujeito. Nessa
perspectiva, em vez de a personagem ampliar as possibilidades de reconhecimento
das paixões, Aliôcha acaba reduzindo o
exame das paixões, assim como
acontece com Míchkin. Se partirmos agora para um dos exemplos contrários do
pensamento religioso de Aliôcha, Ivan Karamázov, teríamos apenas um suposto
ateu que quer transformar o Estado como apêndice do poder eclesiástico e que
reconstrói a volta de Jesus reforçando o poder deste. O artigo de Ivan sobre
como livrar o mundo do crime é elogiado inclusive pela figura máxima do
pensamento religioso no romance: o
stárietz Zossíma. Todas as
personagens de
Os irmãos Karamázov circulam no mesmo epicentro da
religião, porém todas manifestam sua religiosidade à sua maneira — nada além
disso: cada uma com a sua própria teologia.
As alucinações de Ivan Karamázov
com o diabo dizem mais a um cristão às voltas com a fé, assim como a
passividade em não julgar o próximo de Aliôcha em tratar do inferno na terra da
vida além do Mosteiro. O palco de deflagração da fé cristã, o mosteiro comandado
pelos ensinamentos do
stárietz Zossíma — este que se assemelha mais a um
monge zen-budista com fé em um deus que a um sacerdote cristão — se antepõe ao
mundo dos infernos do além-muro. Aliôcha não quer passar pela provação que
necessita para a sua formação como santo.
17 Mas o monge que o guia
sabe que é a única formação possível para transmitir um dia a outros seus
ensinamentos — característica típica da formação nas hagiografias. O outro
mundo além-mosteiro que a obra de Dostoiévski oferece é o da perdição, do
pecado do triângulo Fiódor, Grúchenka e Dmitri, dos favores corteses advindos
das dívidas financeiras, das perturbações do irmão Ivan, da injustiça pela
falsa acusação e condenação do irmão Dmitri, do assassino e renegado
Smerdiakov, filho concebido no mais terrível pecado: Fiódor estuprou uma
iurodiv,
uma pobre mulher que vivia a esmo e abdicava de bens materiais — para
Dostoiévski, uma santa. Todos carregam dúvidas e dívidas, menos Aliôcha.
Mas qual é a regra desse mundo? O
discurso do romance sugere uma origem que Dostoiévski não desconhecia — pelo
contrário. Soma-se ao último romance o desejo final do autor que queria
resolver os
grandes problemas da humanidade, assim como vários ditadores
também já o quiseram. Essa leitura de Dostoiévski como profeta da vida — como
revelador do campo de guerra entre Deus e o Diabo no coração dos homens —
parece ter muito fôlego ainda nos dias de hoje — mas evidentemente ela não lê
de modo sincrônico e diacrônico seus romances, deixando escapar episódios de
fanatismo que são problemáticos até para a época de Dostoiévski.
18 A
outra corrente crítica mais conhecida — e da qual Joseph Frank expressamente
não concorda — é a de Bakhtin, esta que sugere uma unidade, o Autor, como único
detentor das finitíssimas possibilidades da polifonia. Ivan, Dmitri, Aliôcha
repetem frases que Dostoiévski usa em cartas, mas isso não torna nem de longe
uma personagem tão diferente assim da outra no discurso. Isso porque todas
estão concentradas na mesma unidade de Discurso que diz Bakhtin — e a única
possível, claro — o Autor.
Por fim, vamos para as regras do
jogo de
Os irmãos Karamázov — regras que todas as personagens repetem e
estão sujeitas, pois a unidade, como se disse, é o Autor-narrador. De onde
todas as personagens tiram a máxima que controla todo o romance (?): “Se Deus e
a imortalidade da alma não existem, tudo é permitido” — naturalmente — do Autor
Dostoiévski. Por isso todas as personagens concordam com as regras do jogo.
Essa estrutura de ordenação Dostoiévski não retirou de outro lugar senão da
própria Bíblia, que leu e releu incansavelmente. Mostro aqui como podemos ler a
Bíblia também dessa forma, por meio de Axiomas, tal qual o axioma “Se Deus e a
imortalidade da alma não existem, logo: tudo é permitido”.
Vamos ao início do Gênesis, onde
estão as regras iniciais na Bíblia: as personagens corporificadas no mito de
criação são apenas três: Adão, Eva e o Diabo, este que aparece metamorfoseado
em uma serpente.
19 Deus é o ordenador, logo, vem dele a primeira
regra axiomática:
“O senhor Deus prescreveu ao
homem: ‘Poderás comer de toda árvore do jardim, mas não comerás da árvore do
conhecimento do que seja bom ou mau, pois desde o dia em que dela comeres, tua
morte estará marcada’”.
20
As regras iniciais de Deus se dão
em algumas afirmações e negações:
A árvore do conhecimento leva à
morte
21
Adão e Eva não podem comer da
árvore do conhecimento
Adão e Eva estão na eternidade
Aqui a noção de eternidade só
depende de Adão e Eva comerem ou não a maçã — primeiro axioma. Vamos partir
para um outro axioma utilizando modalizadores verbais de condição, o que nos
permite deixar a sua estrutura mais analítica:
22
Se a árvore do conhecimento do bem
e do mal levam à morte; Adão e Eva, para manterem a imortalidade, não devem
comê-la.
Se Adão e Eva comerem do fruto,
estão condenados ao conhecimento da morte, não mais à eternidade do jardim do
éden.
Outro axioma que temos se dá na
criação de Eva a partir de Adão (este exemplifico a título de curiosidade):
“O senhor Deus transformou a
costela que tirara do homem em uma mulher e levou-a a ele. O homem exclamou:
‘Eis, desta vez, o osso dos meus
ossos e a carne da minha carne!
Ela se chamará humana,
Pois do humano foi tirada’”.
23
O axioma aqui pode ser descrito
assim:
Todos os humanos têm ossos e carne
Adão e Eva têm ossos e carne
Adão e Eva são humanos.
Antes de voltarmos à obra de
Dostoiévski, a última análise bíblica do Gênesis será de uma fala do Diabo,
quando ele quer convencer Eva a comer do fruto do conhecimento:
“A serpente disse à mulher: ‘Não,
vossa morte não está marcada. É que Deus sabe que no dia em que dele comerdes,
vossos olhos abrirão e sereis como deuses, possuindo o conhecimento do que seja
bom ou mau’”.
24
Neste excerto o mito cristão se
aproxima muito dos mitos gregos, pois deixa clara a distância entre Humanos e
Deuses.
25 Mas outro elemento também nos chama a atenção: neste
excerto, o conhecimento, uma palavra que pode ter inúmeros sentidos nas
culturas, é condenado. Aprender e conhecer excedem os limites do bom e do mau
facilmente, pois nunca são apenas direcionados ao que é bom e ao que é mau — um
binarismo muito simplista, típico do pensamento religioso e, consequentemente,
da lógica do mundo grego. O próprio gosto, a textura, a cor da maçã dependem do
conhecimento e do reconhecimento posterior de Eva. Não à toa, come-se maçãs até
hoje, pois se sabe através de pesquisas que frutas
in natura são
riquíssimas fontes de vitaminas. Descaracterizando as consequências para o mito
cristão da ação de Eva na narrativa bíblica, o Diabo parece muito mais
interessado em fazer Eva conhecer do que o próprio Deus, que quis privá-la do
sabor da maçã e consequentemente de todos os seus benefícios para a saúde, hoje
amplamente conhecidos.
Partimos agora para uma análise do
axioma — ao modo grego — que se instaura já no início de
Os irmãos Karamázov.
Aqui a palavra bíblica imortalidade (ou eternidade) irá voltar:
Se deus e a imortalidade da alma
não existem, tudo é permitido.
Troquemos as negativas — já que se
trata de um pensamento apenas binário (o “sim” pelo “não”; o “não” pelo “sim”;
“tudo” pelo “nada” ou “nada” pelo “tudo”). Teríamos a seguinte regra na
narrativa de Dostoiévski:
Se Deus e a imortalidade da alma
existem, nada é permitido.
Não há espanto algum ao percebermos
que voltamos ao mesmo modelo de regras da narrativa bíblica em que Deus opera
as regras do jogo: Eva Não pode comer a maçã. O contrário de Não é Sim na
estrutura do pensamento grego: Eva come Sim a maçã, por isso É condenada junto
à Adão, que também come Sim a maçã. Tal qual acontece na Bíblia, em Dostoiévski
só há duas possibilidades: ou Deus e imortalidade da alma Existem — pois o
verbo “existir” sugere um dado concreto de existência ou não na realidade — ou
Não existem. Na frase-síntese de Dostoiévski não há meio-termo: ou existe ou
não existe.
26
1 Os populistas russos ou
narodniks
tinham o objetivo de “ir ao povo” para aprender e representar em obras
artísticas como viviam e falavam as pessoas das classes baixas da Rússia
Imperial da segunda metade do Século XIX. Vale lembrar que no período pós-revolucionário
as diretrizes vindas do Partido e sintetizadas na cartilha do Realismo
Socialista buscaram também um movimento parecido, este que poderia ter como
representante Maksím Górki, literatura que viceja em paralelo à de Tchékhov no
final do Século XIX. (cf.
Storia della letteratura soviética: de Lenin a
Stalin, Gleb Struve). Enquanto Tchékhov sintetiza questões caras à classe
da aristocracia, esta já com pouco mais de meio século de representação na
literatura e nas artes plásticas, Górki parte da representação da experiência
da pobreza com a acentuação dos desenvolvimentos do Capitalismo na Rússia da
segunda metade do Século XIX, após a abolição dos servos da gleba. (Cf. sua
trilogia autobiográfica:
Infância;
Ganhando meu pão;
Minhas
universidades).
2 Jornal fundado por Dostoiévski e
pelo irmão Mikhail, com publicação mensal entre 1861 e 1863.
3 Cf. Posfácio à edição brasileira
(BEZERRA, Paulo. Posfácio do tradutor in.
Os irmãos Karamázov. São
Paulo: Editora 34, 2013).
4 Kátorga e Gulag são os nomes dos
sistemas prisionais de exílio, punição e de trabalhos forçados respectivamente
do período do Império e da República Socialista Soviética.
5 Para a época, Charles Darwin
seria o que conhecemos hoje como uma celebridade. As famosas charges que
representavam Darwin como uma simbiose entre um Homem e um Chimpanzé alteram
mais uma vez a noção de
sujeito público, dada a afronta que a publicação
da pesquisa científica
A descendência do homem (1871) causava nos meios
midiáticos da época. (Cf. o estudo do sociólogo alemão Richard Sennett,
O
declínio do homem público).
6
Neste Ensaio, o pensamento religioso expressado aqui diz respeito
principalmente à hegemonia dos séculos de pensamento cristão, seja ele antes ou
depois do Grande Cisma, em 1054, ou ainda da Reforma Protestante advinda das
Teses do teólogo alemão Martinho Lutero em 1517.
7 Cf. Carta de 18 de agosto de
1880 a N. L. Ozmidov. As cartas de Dostoiévski estão disponíveis
aqui.
Consulta em maio de 24.
8 Assim inicia a Carta a Ivan
Aksakov, em 28 de agosto de 1880.
9 Cf. Carta de 19 de dezembro de
1880 a Aleksandr Blagonravov.
10 Cf.
História do Ateísmo,
de George Minois. No Século de Dostoiévski, como citei anteriormente, houve uma
transformação essencial para o pensamento ateu e secular. A passagem do sistema
mecanicista — nítido ainda na obra de Voltaire (um deísta) para o sistema
naturalista. (Cf. A ordenação mecanicista no conto “Micrômegas”, de Voltaire).
11 A tradução é de Robertson
Friezo (
Correspondências: 1838-1880, p.150) do excerto: “Здесь же у меня
на уме теперь 1) огромный роман, название ему “Атеизм” (ради бога,
между нами), но прежде чем приняться за который, мне нужно прочесть чуть не
целую библиотеку атеистов, католиков и православных. Он поспеет, даже при
полном обеспечении в работе, не раньше как через два года. Лицо есть: русский
человек нашего общества, и в летах, не очень образованный, но и не
необразованный, не без чинов, - вдруг, уже в летах, теряет веру в бога. Всю
жизнь он нанимался одной только службой, из колеи не выходил и до 45 лет ничем
не отличился. (Разгадка психологическая; глубокое чувство, человек и русский
человек). Потеря веры в бога действует на него колоссально. (Собственно
действие в романе, обстановка - очень большие). Он шныряет по новым поколениям,
по атеистам, по славянам и европейцам, по русским изуверам и пустынножителям,
по священникам; сильно, между прочим, попадается на крючок иезуиту,
пропагатору, поляку; спускается от него в глубину хлыстовщины - и под конец
обретает и Христа и русскую землю, русского Христа и русского бога. (Ради бога,
не говорите никому; а для меня так: написать этот последний роман, да хоть бы и
умереть - весь выскажусь). Ах, друг мой! Совершенно другие я понятия имею о
действительности и реализме, чем наши реалисты и критики. Мой идеализм реальнее
ихнего. Господи! Порассказать толково то, что мы все, русские, пережили в
последние 10 лет в нашем духовном развитии, - да разве не закричат реалисты,
что это фантазия! А между тем это исконный, настоящий реализм!” Disponível em
aqui. Consulta em maio de 24.
12 Tanto no período da Rússia
imperial quanto na União Soviética, o sistema de degredo russo manteve traços
burocráticos praticamente inalterados. Um deles, como o que citei aqui, é o de
que mesmo após o cumprimento da pena, o Estado ainda mantinha o cidadão em
exílio, vivendo e trabalhando — agora como trabalhador livre — nos limites do
Campo onde ficou preso. Na URSS, era comum que os prisioneiros libertados ainda
trabalhassem no local da pena. (Cf.
Os contos de Kolimá, de Varlam
Chalámov).
13 Cf.
A ascensão do romance,
de Ian Watt.
14 Nas correspondências com Górki,
Tchékhov alerta o jovem escritor acerca do uso abusivo de descrições e de
adjetivos. A prosa de Tchékhov sempre mirava a precisão sintética, tanto no
número de personagens — “apenas ele e ela já são o bastante” — como na forma
breve de se enunciar. (Cf. ANGELIDES, Sophia.
Carta a Literatura:
correspondência entre Tchékhov e Górki. São Paulo: Edusp, 2016.)
15 Diderot se nega a contar o
passado de Jacques e não apenas para quebrar convenções — elas sequer estavam
bem assentadas àquela altura da história do romance. Em Dostoiévski, novas
personagens frequentemente interpelam o discurso de outros ou do narrador para
narrar seus passados ou contar alguma longa história de vida e sofrimento. Aparecem,
discursam e depois somem, para depois reaparecem a certa altura do romance,
tornando muitas vezes, para os nossos dias, a leitura cansativa, pois se faz
necessário muito a se rememorar.
16 Esse excerto foi usado por René
Wellek para descrever o realismo de Dostoiévski nas palavras do autor. Wellek
não indicou o contexto de uso da palavra realismo. (Cf.
História da Crítica
Moderna, de René Wellek)
17 No final da Primeira Parte do
romance, Zossíma insiste que Aliôcha deve passar por uma formação fora do
mosteiro. Só depois dessa experiência “mundana” Aliôcha estaria preparado para
aconselhar aqueles que procuram o mosteiro para a renovação da fé.
18 Refiro-me aqui — evidentemente —
à linha crítica que tem por Joseph Frank seu principal expoente.
19 O número três é uma importante
simbologia para a Bíblia, pois nele também se assenta o discurso axiomático do
pensamento grego. Outra noção importante é a da trindade, do “pai”, do “filho”
e do “espírito santo”; a ressurreição de Jesus ao terceiro dia, entre outras
noções simbólicas caras ao mito cristão. (cf. Bíblia)
20 Cap. 2 vers. 16-17.
21 Palavra contrária à palavra
“eternidade”.
22 Opto por deixar mais analítico
porque todo axioma tende à síntese. Poderíamos pensar que o axioma é o
princípio de uma ideia de dialética — aos moldes do pensamento grego,
obviamente: uma
Tese geral (Todo homem é mortal); um
Reforço da
tese (Sócrates é um homem); e uma
Síntese: Sócrates é mortal. Em Marx
teríamos no lugar do
Reforço da tese uma
Antítese ou (Anti)Tese.
Este é um dado fundamental para entender o princípio da Dialética de Marx, que,
segundo Edmund Wilson, “vira Hegel de ponta-cabeça”. Não apenas Hegel, mas
também a ordenação lógico-discursiva do pensamento grego. (cf.
Rumo à
Estação Finlândia, de Edmund Wilson)
23 Cap. 2 vers. 22-23.
24 Cap. 3 vers. 4-5.
25 Lembro aqui da expressão latina
“Quod licet Iovi, non licet bovi” (O que pertence a Júpiter, não pertence ao
boi). O poeta Iossef Brodsky, no poema “Versos sob uma epígrafe”, usa a
expressão latina em russo para transmitir a mesma ideia ao longo do poema: “То
что дозволено юпитеру не дозволено быку”.
26 Um meio termo seria o que não
estamos acostumados a ouvir a respeito da crença em Deus: “Existe em partes”,
“Existe mais ou menos”; “Existe com ressalvas”; “Nem tudo Dele existe”; “Alguma
coisa dele existe”; “Quase tudo Dele existe”...
Bibliografia
Bíblia. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
Dostoiévski, Fiódor.
Os irmãos Karamázov. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2013.
Minois, Georges.
História do ateísmo. Trad. Flavia Nascimento Falleiros. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
Comentários