Por Alejandro Zambra
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Arte: Patrick Hruby. |
É preciso dizê-lo com alegria,
gratidão: nosso trabalho é ideal. Ainda que vez por outra um editor nos chame e
peça que sejamos mais atuais, sabemos muito bem como escapar da contingência;
somos capazes, inclusive, de dedicar nossa coluna dominical a falar sobre
Hamlet.
Além do mais, se o editor insiste, basta agregarmos uma ou duas frases ao final
da coluna. Podemos dizer, por exemplo, que ao reler algumas passagens dessa
obra maravilhosa descobrimos a profunda atualidade de Shakespeare. Não é
preciso aclarar quais são as passagens tão atuais pois é sabido que nas seções de
cultura não há muito espaço para argumentar.
E qual a diferença, se também sabemos que
ninguém nos lê? Todos os colunistas de todas as seções de cultura de todos os
periódicos do mundo sabemos disso. Puramente neuróticos, cuidamos da prosa,
saboreamos cada adjetivo, perdemos um tempo valioso decidindo se dois pontos ou
ponto e vírgula, e dói o coração quando descobrimos que deixamos escapar algum
erro ou que escrevemos errado a palavra
idiossincrasia.
Sabemos, porém, que é muito
provável que absolutamente ninguém leia nossas colunas. A princípio isso
machucava, mas agora nos alegra. Porque seria muito cansativo pensar, do
contrário, que o que fazemos é importante, que muita gente vai ler, no
periódico, o que dizemos. Que temos uma responsabilidade.
E a propósito de
responsabilidades, é preciso cuidar das páginas culturais. É preciso
desejá-las. É verdade que ao fim e ao cabo alguém embalará os copos ou embrulhará
o peixe com nossas reflexões. Mas é preciso cuidar destes espaços, porque são
escassos e fazemos verdadeiros malabarismos para conviver dignamente com os
anúncios comerciais. Somos os encarregados de dar um pouco de brilho ao
assunto. Nosso papel é, por sorte, decorativo: ninguém nos pede, por exemplo, que
condenemos a prepotência do ministro Rodrigo Hinzpeter, a brutal intransigência
do prefeito Labbé, o inverossímil conservadorismo da senadora biônica Von Baer.
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Ninguém nos pede que falemos sobre o presidente Piñera, e é um alívio, porque
se o fizéssemos teríamos que dizer sabe-se lá quantas coisas desagradáveis.
Felizmente não temos que nos pronunciar em público sobre a incômoda certeza de
habitar um dos países mais desiguais do mundo. É bom saber que ninguém nos
obriga a contar a história de um país que, com muita raiva e certa melancolia,
compreende que a única coisa que lhes resta é erguer-se.
É verdade que por vezes nos invade
certa inquietude. Em cinquenta ou cem anos haverá gente estudando este tempo
tão sombrio da história do Chile e dá um pouco nos nervos pensar que ao revisar
os periódicos encontrarão nossos nomes e nossas opiniões sobre a atualidade de
Hamlet.
Talvez pensem que fomos cúmplices, que fomos covardes. Sentimos culpa ao
imaginar essa cena, quiçá porque certa vez, quando éramos ainda muito jovens e
inocentes, fomos nós que passamos a tarde na biblioteca lendo os periódicos dos
anos 1980. E sentimos uma tristeza profunda e duradoura.
Perdoem-me, não há motivo para
ficarmos tão sérios, tão pessimistas. Para que pensar tanto no passado ou no
presente? Para que pensar tanto, para que pensar? Estou feliz, parece algo
magnífico ter a oportunidade de falar sobre Shakespeare, sobre
Hamlet,
ou sobre poetas e narradores notáveis, sobre romances realmente bons. Que
alívio imenso não ter que resenhar esse romance desolador e tão mal escrito que
há muito tempo é o Chile.
Março, 2012
Nota
1 Cargo biônico é aquele cujo
titular foi investido mediante a ausência de sufrágio universal e
cujo parâmetro para escolha era a sanção das autoridades, como se deu no Chile
e no Brasil durante a vigência de suas respectivas ditaduras militares.
* Tradução de Guilherme Mazzafera.
O texto “Actualidad de Hamlet” encontra-se compilado no volume No leer
(Editorial Anagrama, 2018).
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