Por Gabriel Carra
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Cena de Senhorita Júlia. Arquivo Companhia Bípede de Teatro Rupestre, 2024. |
Hoje em dia não se trata mais,
como fez certa vez Bertolt Brecht em “A função social do teatro”, de se indagar
se o mundo atual pode ser reproduzido pelo teatro. Inúmeros são os expedientes
técnicos disponíveis e o repertório de soluções, que inclui as próprias
experiências brechtianas, é imenso, vasto. A pergunta que talvez realmente
importe é como sustentar a verve crítica do teatro, isto é, o teatro como arte
(pois é próprio de qualquer arte ser crítica do real), em uma época supercrítica,
na qual a própria crítica social parece cansada e na iminência de desabar sobre
o próprio peso.
Em termos mais próprios às
técnicas teatrais, poderíamos precisá-la da seguinte forma: como o teatro pode
sustentar essa verve assinalada sem depender inteiramente dos repertórios
brechtianos, beckettianos ou de experimentações de exposição do signo teatral
de inspiração pirandelliana, formas absolutamente legítimas mas que, para serem
efetivas, dependem (como tudo na vida) de oxigenação, de variação? A resposta,
um pouco incontornável, parece ser retornar ao teatro burguês, ao palco à
italiana, justamente aquele contra o qual as experiências vanguardistas citadas
foram formuladas, e de onde retiraram a força de seus efeitos (toda figura
depende, para ser visível, de um fundo contra o qual se destaque).
Mas como fazer isso sem se tornar
condescendente com essa arte? E essa preocupação é tanto mais importante uma vez
que seus expedientes — o drama do indivíduo, do ser psicologizado, que termina
por transformar a textura social apenas em meio “para revelar as reações que
provoca nas personagens, [...] da mesma forma que percebemos a existência da
tempestade a partir do momento em que barcos recolhem as velas” (Brecht, 1967,
p. 69) — foram incorporados pelo cinema, cujas técnicas (e com elas essa
herança dramática) foram expropriadas pela indústria cultural. O resultado não
poderia ser mais aberrante: produtos com as mais altas cargas de crítica social,
disponíveis abundantemente (até às raias da náusea) em streamings, a
serviço da neutralização das possibilidades de mudanças do real.
Para o primeiro problema, uma
resposta. Para o segundo, muitas possibilidades que caberão aos diretores, aos atores
e a todo pessoal do teatro responder em cena. Aqui trato de uma delas, apresentada
pela Cia. Bípede de Teatro Rupestre em sua encenação de Senhorita Júlia,
de August Strindberg.
À primeira vista, a resposta é tão
simples que chega a ofender o público, o qual pode pensar ser tomado por
simplório: com máscaras. Com máscaras? Não me diga que é com esse recurso
batido, com essa imagem gasta, com essa catacrese do próprio teatro que vão
solucionar o problema tão complexo exposto acima. Mas antes de desqualificá-la
por obviedade ultrajante, pensemos nela.
Em uma peça de teatro burguês, a
máscara causa estranhamento. Não estamos na tragédia grega ou no teatro
popular. Com pouco tempo de cena, no entanto, ela adquire sentido na economia
diegética: estamos em plena noite de São João, no coração das festividades
populares. As máscaras, que lembram muito os demi-masques do carnaval
veneziano ou da Commedia dell’arte, fazem às vezes de papéis sociais com que as
personagens jogarão nesta festa: Cristina, a cozinheira, permanece à parte;
Senhorita Júlia e Jean, seu criado, por outro lado, brincam livremente com suas
máscaras-papéis sociais nesta noite de orgias: são pícaro e bufão um do outro.
A noite segue adentro e, terminada
a euforia dos delírios e sonhos de desejo, de arrivismo, de escapar enfim à
estrutura detestável em que vivem por meio da alegria generalizada e do jogo, elas
percebem (e nós, em sua esteira) que essas máscaras não são apenas um
divertimento. Elas são os próprios papéis sociais, e a isso devemos a
inevitável distância que mantemos em relação aos indivíduos Júlia e Jean: em
seus momentos depressivos, em suas angústias, em seus ódios e em suas
revelações de sofrimento, não há expressões em seus rostos, não há olhos para
acessarmos suas almas.
Aquela capacidade que Jacques
Lecoq em O corpo poético atribui à máscara expressiva, isto é, a de
filtrar as complexidades do olhar psicológico, de impor atitudes piloto ao
conjunto do corpo, na peça parece funcionar de forma extrema: os corpos, que
pensavam interpretar senhora e criado, descobrem-se senhora e criado. A
expectativa é de que elas caiam, de que as personagens possam abandonar aqueles
horríveis adereços cujos narizes apontam, o dele, para baixo, penso como um
falo impotente, e o dela para cima, numa frágil posição esnobe, e que possam
comunicar de verdade — e com isso, nós, os espectadores, possamos
nos regozijar com suas almas.
Mas elas não caem, tal como as estruturas
sociais não caem mediante uma ruína pessoal. A terceira dimensão das máscaras,
e a que consuma a tragédia, é a de que não há essa alma que esperávamos
ansiosos. Duas indicações cênicas nos alertam: em dado momento, Cristina entra
no palco sem máscara, no meio de uma das discussões entre Júlia e Jean, e ela
simplesmente não existe, passa por eles como um fantasma. A segunda é a troca de
máscara de Júlia por outra igual, mas branca, e que faz com que as personagens
se preocupam com sua palidez. Elas valem, portanto, o que vale a expressão no
teatro burguês, e aí se consuma o terrível: se as máscaras não eram máscaras;
se a posições sociais com que brincaram e desdenharam durante a noite serão as
mesmas com que acordarão no dia seguinte, então todos aqueles excessos, todas
aquelas orgias com que acreditavam jogar inocentemente não eram um parêntese na
tessitura dos acontecimentos, eram a própria vida, e, assim sendo, haverá
consequências.
A partir de outros expedientes — o
teatro burguês e a introdução um pouco alienígena de máscaras do teatro popular
e das festividades carnavalescas —, a encenação recupera com toda força a lição
da arte moderna, de que Pirandello, Brecht e Beckett (e, por que não, para nós
falantes de português, Pessoa) foram os mais exímios alunos do século passado:
a vida da arte não é senão a própria exterioridade do signo, e ela não pode ser
crítica do real se não for, primeiro, crítica à linguagem. Não eram máscaras,
mas escafandros.
Consuma-se assim um destino
trágico. Não de indivíduos cujo contexto social é apenas o fundo sobre o qual
se destacam, mas de papéis sociais sobre os quais o indivíduo é apenas esse
fundo que lhes serve de suporte. Respondendo ao artigo de Brecht citado no
início deste texto, a Senhorita Júlia mascarada da Cia. Bípede de Teatro
de Rupestre alcança o efeito de nos lembrar que, embora “o homem já não pode
ser mais descrito como uma vítima, como um objeto jogado num mundo desconhecido
que não poderia transformar” (p. 66), tampouco pode ser descrito como puro
agente em um mundo em que a agência se tornou o mito que sustenta a própria
inanição. Para alcançar o “Isto precisa acabar” (p. 70) do teatro épico, hoje
em dia, talvez sejam necessários um pouco de sentido trágico e de fatalidade,
tal como nos apresenta a peça de Strindberg.
Por meio dessa experimentação
simples e poderosa, a Cia. Bípede de Teatro Rupestre chega a um excelente
resultado, sustentando e deslocando o drama do indivíduo para algo que nos
importa mais, pois ainda é a nossa condição. Strindberg passa vivo e forte em
sua temporada em São Paulo.
Referências
Brecht, Bertolt. “A função social
do teatro” in Sociologia da arte III. Trad. Heitor O’Dwyer. Rio de
Janeiro: Zahar editores, 1967, p. 65-119.
Lecoq, Jacques. O corpo
poético: uma pedagogia da criação teatral. Trad. Marcelo Gomes. São Paulo:
Editora Senac, 2010.
Strindberg, August. Senhorita
Júlia. Trad. Guilherme da Silva Braga. Realização de Companhia Bípede de
Teatro Rupestre, 2024.
* Gabriel Carra é formado em
Letras e é mestrando em Literatura francesa pela Universidade de São Paulo.
Estuda as relações entre retórica e leitura em Roland Barthes e a crítica da
crítica literária de Leyla Perrone-Moisés. Organiza clubes de leitura de prosa
literária em São Paulo e tem interesse em história da arte, cinema e suas
relações com a literatura.
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