Por Henrique Ruy S. Santos
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Fernando Gabeira. Foto: Agência Estado |
O que é isso, companheiro?,
livro de Fernando Gabeira publicado em 1979, experimentou um sucesso estrondoso
à época de seu lançamento.
1 Os motivos para tal façanha são
certamente discutíveis e capazes de gerar muitas hipóteses e conjecturas, mas,
de fato, não se pode deixar de mencionar o peso histórico que o relato de
Gabeira teve entre um público ávido por entender, afinal, o que fora tudo
aquilo. Por “aquilo”, entenda-se o período da Ditadura Empresarial-Militar
2
vivida pelo Brasil desde 1964 até 1985, mas que já dava sinais de
enfraquecimento em 1979, a partir da Lei da Anistia, que concedeu aos exilados
políticos (entre os quais se encontrava o próprio Gabeira) a repatriação.
Por essa espécie de
“responsabilidade histórica” que o livro carregava (e carrega), acabam sendo
diversas as possibilidades de seu enquadramento em um determinado gênero
textual: suas primeiras edições lhe designavam como “testemunho”, apensa à capa
a modo de subtítulo; Tânia Pellegrini, entretanto, chama-o
“livro-testemunho-documento-depoimento-memória”, ressalvando que não o designa
como romance (Pellegrini, 1996, p. 35). No que tange a suas temáticas e
possíveis interpretações, essa mesma pesquisadora chama a atenção para
diferentes possibilidades de leitura do livro: “uma [leitura] que busca no
livro um depoimento pessoal. Outra que investiga referências históricas. Mais
outra, que sai à cata de uma aventura singular. Outra ainda, que procura um
acerto de contas com a própria história” (Pellegrini, 1996, p. 35). Destaca-se,
também, o ponto de vista de Affonso Romano de Sant’Anna, no livro
Política e
paixão (1984), que adota uma perspectiva mais histórica e social e para
quem o livro pode ser entendido como o encontro marcado de uma geração.
Em que pesem os diferentes
enquadramentos possíveis, nas mais diferentes formas de designar a obra,
destaca-se com certa insistência a ideia de que ela, de alguma forma, supre uma
falta histórica ou, pelo menos, propõe-se a endereçá-la de forma um tanto
quanto indefinida ou perplexa. Se não encara a história e acerta as contas de
uma vez por todas; se não conduz os anistiados e a geração que se reencontrava
a novos rumos políticos, com novas formas de luta, de resistência e de
compreensão da realidade, o livro lança a pergunta ruidosa em uma inquietante
presentificação que joga o leitor (subitamente tornado cúmplice do momento
histórico pelo vocativo “companheiro”) no olho do furacão: o que
é isso?
O livro, seja para aventar uma
resposta imbuída de um sentido individual que sirva ao próprio Gabeira, seja
para vislumbrar um possível sentido coletivo na experiência militante e na luta
contra as ditaduras latino-americanas, narra as experiências do autor como
participante da luta armada promovida pelos movimentos da esquerda
revolucionária, como forma de resistência e combate à ditadura brasileira.
Abrangem-se os momentos deflagradores do golpe de 1964, expondo-se certas
minúcias e frustrações dos bastidores políticos, passando pela iniciação do
narrador na luta armada e enfatizando dois momentos decisivos: o sequestro do
embaixador estadunidense Charles Elbrick e a prisão de Gabeira em 1969.
Em seu testemunho altamente
reflexivo, o livro parece sinalizar, em graus de clareza que variam a depender
dos entrechos narrativos (correndo-se o “risco” de ler o livro como romance, à
revelia do alerta de Pellegrini), uma certa cisão na figura do militante
Fernando Gabeira: “Muitas vezes, se tem a impressão de que são dois eus que se
digladiam o tempo todo para se fazerem ouvir, alternando-se e/ou
entrecruzando-se incessantemente. O artifício usado para manter essa tensão
aparente é o emprego do ritmo narrativo referido: no ritmo factual predominaria
o personagem; no ritmo reflexivo predominaria o narrador” (Pellegrini, 1996, p.
52).
Nessa dicotomia personagem-narrador,
dois Gabeiras travam uma batalha que tem reverberações no andamento e no ritmo
da obra. Como ressaltou Pellegrini, quando está em cena o
eu-
personagem,
impera a ação rápida, o fato “puro” e a informação concedida na cadência da
escrita jornalística dominada pelo autor; quando o
eu-narrador assume o
foco, predomina a reflexão, a dilatação temporal e a precisão cuidadosa de quem
supõe que “mil vozes mais autorizadas que [a dele] vão surgir” (Gabeira, 1979,
p. 25).
A título de exemplo, vale a pena
conferir trechos do próprio livro:
“Quando irrompeu o golpe de 64,
ninguém ficou em casa. Os que participavam do Grupo dos 11 foram fazer a fila
das armas do Aragão. Nessa fila muita gente se encontrou, mas as armas não
apareceram. Lembro-me de ter ido para a Cinelândia até o momento em que
começaram a atirar nas pessoas, de dentro do Clube Militar [...].
Um pouco tocado pelas balas do Clube
Militar e um pouco tocado pela vontade de estar perto dos amigos, saí da
Cinelândia. Para o Panfleto não adiantava voltar, pois os homens já haviam
cercado tudo, recolhido os arquivos e empastelado a redação. Segui para o JB e
encontrei um grupo de jornalistas na Rio Branco. Era o que procurava. Fomos
juntos para o Sindicato dos Gráficos, onde resistiríamos.” (Gabeira, 1979, p.
11).
Nesse trecho, é notável o predomínio
da ação rápida, com uma célere alternância espacial que concede pouca margem à
reflexão. A cadência narrativa transporta o leitor diretamente para o ruído e o
caos dos acontecimentos imediatamente posteriores à eclosão do golpe. Trata-se
do ruído e do caos que o Gabeira-narrador tenta organizar retrospectivamente,
nos momentos em que a ação é suspensa e dá-se brecha à reflexão. Nesses
trechos, o narrador dá vazão a um certo fatalismo retrospectivo que tinge de
cores melancólicas a apreensão do momento político vivido.
“Me diz uma coisa. O que adiantava
chegarem as armas? Estou correndo assim para me meter na Embaixada da Argentina
e vi muita gente gastando o seu tempo precioso para esconder as poucas armas
que tinha. De que adiantavam as armas se os principais partidos políticos não
tinham tensionado suas forças para resistir? E de que adiantava os partidos
fazerem isso, se a sociedade no seu conjunto não estava convencida da
importância de resistir?” (Gabeira, 1979, p. 19).
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Uma das várias edições do principal livro de Fernando Gabeira. Esta foi a primeira pela Companhia das Letras, de 1996. |
Partindo, portanto, da compreensão
de Tânia Pellegrini, que enxerga um Gabeira dividido em dois eus na
obra, é possível propor preliminarmente duas teses que procuram, em certa
medida, estender a interpretação da autora, enxergando possíveis novos sentidos
nessa dicotomia narrador-personagem: a transição personagem-narrador é mediada
por um sentimento de melancolia política; e essa transição melancólica ecoa uma
passagem da modernidade para a pós-modernidade.
Quanto à primeira tese, convém
recorrer a um entendimento freudiano de melancolia, que a compreende como um “rebaixamento
do sentimento de autoestima, que se expressa em autorrecriminações e
autoinsultos” em decorrência da “perda de uma pessoa querida ou de uma
abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal etc.” (Freud,
2012, p. 28). Reconhecem-se, entretanto, as limitações do pensamento freudiano
para pensar a melancolia como um estado político e coletivo especialmente
acometedor das esquerdas do pós-Guerra Fria, profundamente abaladas pelas
derrotas do século XX, entre as quais não se pode deixar de mencionar as
ditaduras do Cone Sul, como indica o historiador italiano Enzo Traverso, em seu
Left-Wing Melancholia: Marxism, History, and Memory: “após a queda do
Muro de Berlim, os rebeldes remanescentes dos anos 1960 e 1970 encontraram uma
visão da história engendrada pelas derrotas dos anos 1930, um encontro que teve
lugar sob o signo da melancolia política” (Traverso, 2016, p. xvi, tradução
nossa).
As experiências das derrotas
políticas vividas pelo narrador de O que é isso, companheiro? marcam
profundamente a nova visão política que o livro parece carregar, determinando o
tom da reflexão do narrador em exílio: “A derrota de 64 iria marcar nossas
trajetórias. Dificilmente nos sairia da garganta. Até hoje, nos domingos de
manhã, caminhando juntos para o trabalho, costumamos evitar aquele golpe” (Gabeira,
1979, p. 20).
Assim, a passagem de um eu-personagem
para um eu-narrador é mediada por um forte sentimento melancólico que,
como lembra Freud, tende a prolongar psiquicamente “a existência do objeto de
investimento” (Freud, 2012, p. 29), no caso, a revolução aos moldes soviéticos
ou pelo menos a interdição dos golpistas.
Aliada a isso — indo ao encontro de
nossa segunda tese —, a transição personagem-narrador, marcada no livro, indica
uma mudança paradigmática de visão política e de momentos culturais. Em outras
palavras, o livro media, em termos de performance político-cultural, a
transição de um paradigma moderno para um pós-moderno. Tal transição é mais
visível em trechos em que o narrador reflete sobre a precariedade da luta
política empreendida pelas esquerdas brasileiras nos anos 1960, pouco
preocupadas com as potencialidades individuais e com as possibilidades de uma
política do corpo que, então, ascendia no Ocidente:
“O assustador naquele período de
exaltação do militarismo foi o quanto andamos perto de uma visão muito rígida e
burocratizante, incapaz de libertar não apenas as forças culturais dos setores
onde atuávamos, mas incapaz inclusive de liberar nossa própria potencialidade.”
(Gabeira, 1979, p. 138).
Gabeira, portanto, ao narrar um
passado recente de lutas e derrotas políticas, põe em jogo um contraste de
visões políticas e culturais que acenam para uma mudança paradigmática nas
práticas de engajamento político. Não mais as visões “rígidas e burocratizantes”
que o narrador atribui a um setor da esquerda radical de sua época, mas, sim,
os atos descentralizados de resistência, atentos às especificidades locais e
àquelas assinaladas por marcadores sexuais e raciais, preocupação típica das
novas organizações políticas emergentes nos anos 1960-70.
Gabeira colocou em questão, como se
vê, um embate que constantemente se renova no âmbito da atuação política das
esquerdas, isto é, uma suposta dicotomia irredutível entre uma visão mais
ortodoxa dos objetivos das lutas sociais e uma outra perspectiva (recente à
época do lançamento do livro) mais alinhada às práticas atomizadas de subversão
e reivindicação. No primeiro caso, as inspirações eram inegavelmente os
teóricos marxistas e o processo revolucionário russo; no segundo, os Estudos
Culturais que consolidavam um rompimento com as grandes narrativas do século XX
e que fomentavam os movimentos contraculturais importados dos Estados Unidos e
da Europa.
Considerações quanto à trajetória
política de Fernando Gabeira até os dias atuais à parte, O que é isso,
companheiro?, em toda a sua ambiguidade formal, narra/ relata/ testemunha
um período histórico decisivo para o nosso país, mas não o faz unicamente do
ponto de vista da apresentação “crua” dos fatos, mas de modo a colocar em jogo
complexas mudanças de paradigmas culturais e mesmo psicológicos. Ao falar do
passado, Gabeira fala do presente (e a preposição “de” é aqui proficuamente
ambígua), mostrando que a pergunta que dá título ao livro sinaliza para uma
certa perplexidade cujos resultados, sejam eles positivos ou negativos, serão
sempre e unicamente vislumbrados no agir histórico.
Notas
1 Como menciona Tânia Pellegrini no
livro Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70 (1996), o livro
esteve por 86 semanas na lista dos mais vendidos.
2 A opção pelo uso do adjetivo
“empresarial-militar” se dá em razão da compreensão, sustentada, entre outros,
por Dreifuss (1981), de que o golpe de 1964 e a ditadura subsequente foram
arquitetados e mantidos pelos esforços de militares e de setores do
empresariado brasileiro e estrangeiro, o que estabelece um nítido caráter de
classe que o termo “civil-militar” não contempla.
Referências
Dreifuss, René Armand. 1964: a
conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classe. Trad. Ayeska
Branca de Oliveira Farias, Ceres Ribeiro Pires de Freitas, Elise Ribeiro Pires
Vieira e Glória Maria de Mello Carvalho (Laboratório de Tradução da Faculdade
de Letras da UFMG). 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1981.
Freud, Sigmund. Luto e melancolia.
Trad. Marilene Carone. São Paulo: Cosac & Naify, 2012.
Gabeira, Fernando. O que é isso,
companheiro? 10 ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1979.
Pellegrini, Tânia. Gavetas vazias:
ficção e política nos anos 70. Campinas: Mercado de Letras; Editora da
UFSCar, 1996.
Sant’anna, Affonso Romano de. Política
e paixão. Rio de Janeiro: Rocco, 1984.
Traverso, Enzo. Left-Wing Melancholia: Marxism, History, and Memory.
New York: Columbia University Press, 2016.
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