Por Vinícius de Silva e Souza
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Colson Whitehead. Foto: Sophie Palmier. |
Mesmo que as narrativas de The Underground Railroad: os caminhos para a liberdade e O reformatório
Nickel, romances de Colson Whitehead, estejam situadas em tão diferente
período temporal, tratam do mesmo tema: o trauma e a liberdade. Essas formam
duas conjunturas marcantes na existência de seus protagonistas.
No primeiro, Cora, escrava abandonada pela mãe que há muito fugiu e a abandonou,
é convidada por Caesar, escravo recém-chegado, a fugir com ele. A partir daí,
Ridgeway, caçador de escravos que fracassou em recapturar a mãe da
protagonista, parte em seu encalço e assim se constrói parte substancial do
enredo romanesco.
Já em O reformatório Nickel,
Elwood, promissor adolescente negro, estudioso e ambicionando ingressar na
universidade, tem sua vida inteira alterada quando é enviado por um engano para
Nickel, antigo reformatório para jovens infratores. Uma vez no lugar, conhece
Turner, amigo que o acompanha e o ajuda a colocar em xeque suas crenças sobre o
mundo e a sociedade; juntos buscam sobreviver enquanto aguardam uma chance de
escapar do inferno na terra em que vivem.
Se por um lado é o trauma de uma
busca malsucedida que leva Ridgeway a caçar Cora tão determinadamente, e o
trauma do que viveu que faz Cora fugir de maneira incessante, sem nunca cogitar
desistir ou parar, é o anseio por se livrar de tudo que a atormenta e a prende
que faz com que essa fugitiva corra sempre. Ela precisa, mais do que tudo, de
sua liberdade como alternativa de vencer seus traumas — principalmente o que
diz respeito à sua mãe e a Caesar.
Ciente de que não resta mais
nenhuma alternativa, Turner insiste com Elwood que a única maneira de escapar
do que foi imposto é fugir: “era loucura fugir e era loucura não fugir. Como
seria possível para um garoto olhar para além da divisa do terreno, ver o mundo
livre cheio de vida diante de si e não pensar em correr para a liberdade? Escrever
a própria história, uma vez na vida. Proibir a ideia da fuga, mesmo que aquele
pensamento da fuga fosse leve como uma borboleta, equivalia a matar a
humanidade da pessoa.”
Elwood e Turner espelham a dúbia
face do movimento pelos direitos civis, de Martin Luther King a Malcom X. Mas é
o trauma e a busca da verdade como libertação que movem o protagonista na
conclusão do romance, fechando o círculo que se abriu no início ao ver as
notícias do jornal. Os amigos se tocam, se alteram e se misturam para, ao
final, tornarem-se algo diferente do que eram quando se conheceram. E o que
fica de Elwood em Turner o move para se libertar do que carrega consigo desde a
conclusão de sua segunda passagem por Nickel.
Pode-se dizer o mesmo de Cora e
Caesar. Mesmo ausente por boa parte da narrativa, é notório como em momento
algum a protagonista se desvincula do toque daquele que a colocou no caminho
que agora persegue. Uma vez alterados e misturados, não há mais escapatória e
tudo que resta à Cora é persistir pela liberdade em nome do amigo. E pela
sutura do trauma que carrega de sua mãe.
Nas estruturas sociais excludentes
e racistas, mesmo com mais de cem anos de diferença, tudo que resta a esses
protagonistas negros é o anseio pela libertação física e do trauma de tudo que
viveram. Cora chega até mesmo a ceder no primeiro momento, quando desembarca na
primeira parada de sua jornada, ainda com Caesar. Mas, assim que tudo dá errado
e precisa fugir novamente, abandonando o amigo e para sempre, em seu segundo
encontro com o amor, já não aceita tão rapidamente encerrar sua jornada:
hesita, teme, marcada pelo passado e presa ao medo do que ainda pode lhe
acontecer — e descobrimos, posteriormente, que ela estava correta em temer. O
trauma se faz presente e a aprisiona em uma irônica busca sem fim por
liberdade.
Por outro lado, Elwood, empolgado
com as mobilizações e ansioso pelo fim da segregação e pela liberdade que
parece ao alcance, se vê puxado para a realidade e tem os limites de sua crença
testados à exaustão, aprisionado quando ser livre parecia a mais certa das
certezas. Cabe apenas à Turner, assim como coube a Cora, carregar a dor e o
desejo adiante e, movidos por uma ferida jamais cicatrizada, persistir até a
liberdade.
Esses dois romances não tratam
especificamente da violência ou do racismo, mas da liberdade. Como seria
possível para alguém aprisionado olhar para o mundo livre cheio de vida diante
de si e não pensar em correr para a liberdade?
*
The Underground Railroad: os caminhos para a liberdade Colson Whitehead
Caroline Chang (Trad.)
HarperCollins, 2017
O reformatório Nickel
Colson Whitehead
Rogerio Galindo (Trad.)
HarperCollins, 2019
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