No dia 26 de outubro [de 1976],
lemos em algum jornal que na manhã do dia 25, Raymond Queneau, “renovador da
ortografia francesa e autor do bizarro
Zazie dans le Metro, adaptado
para o cinema por Louis Malle”, havia morrido em Paris. Faltava ressaltar que o
falecido também foi o autor da letra da música “Si tu t'imagines”, popularizada
por Juliette Greco, para que um dos escritores mais ricos e revolucionários da
França ficasse reduzido a uma parcial e mínima figura no dicionário de ideias
realizadas. Mas é verdade que é difícil situar Queneau.
Como explicar que o erudito
criador da
Encyclopédie de la Pléiade, o apaixonado por matemática e
pela filosofia de Hegel, o acadêmico do Goncourt e o inovador da ortografia
francesa (
mais oui!) fosse ao mesmo tempo um egresso do surrealismo, um
sátrapa do Colégio de Patafísica, um escritor de romances engraçados em
“linguagem falada”, um dinamitador dos clássicos e da retórica, o fundador dos
jogos do OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle) e o colecionador de loucos
literários?
Num dicionário, Hubert Juin
considerava Raymond Quenau o mais inapreensível dos autores franceses. Tal como
os personagens dos seus romances, como esses mesmos romances, que têm método e
estrutura e parecem caprichosos, nunca se sabe ao certo se Queneau é engraçado ou
sério, malabarista ou técnico, professor ou poeta, rigoroso retórico ou escritor
fácil.
Depois de uma solene cerimônia de
entrega de prêmios na Academia Goncourt, era possível vê-lo pregando a Grande Ordem da Espiral a algum jovem sátrapa — como Boris Vian — do Colégio de
Patafísica, do qual foi o Eleitor Único e, claro, Sátrapa Transcendente.
Seus poemas soavam às vezes,
voluntária e alegremente, como um acordeão popular, quando não indecoroso, ou, sob
aspectos de paráfrase, paródia ou pastiche, respiravam pela ferida metafísica e
alçavam-se às alturas do consolo pela filosofia... (ou pela ortografia).
Queneau, um ortografista? E por que
não? Zazie, uma Alice em Paris sem Metrô, assinou com seu
mon cul tanto
a urbanidade como a língua francesa, e o livro que narra suas aventuras abre
com uma misteriosa palavra proferida pelo tio Gabriel, “danseuse de charme”
profissional e filósofo
hamlet-ou-pascaliano amateur:
Doukipudonktan,
que simplesmente significa “De onde vem esse fedor?”,
ábrete sésamo
para uma visão sombria e celiniana da humanidade comum, e não comum, mas
estagnada nas cidades líquidas.
Traduzir o
francês-falado-como-escrito para o francês-escrito-como-falado é certamente
renovar a ortografia, mas também é ouvir a humanidade cotidiana falar com o
coração e as entranhas, e é algo mais, é nada menos do que (respirem forte,
apertem os cintos, vamos decolar) colocar a Língua e a Linguagem nas esferas do
Destino Real do Homem, assim como em si ou nos outros o curso de cada dia os
muda (o Homem e seu destino).
A gramática é uma filosofia, é uma
política. “Não comemos a palavra pão nem bebemos a palavra vinho”, disse
Queneau a Ribemont-Dessaignes, “mas quando as dizemos bem elas têm a sua
importância. Não acredito na linguagem que finge ser o que não é, nem acredito
na poesia que mente. A precisão é o que dá todo o seu valor às metáforas menos
óbvias. Um imperador mudou os costumes dos chineses modificando a língua
chinesa…”
Será que Queneau mudou os costumes
dos franceses ao traduzir o discurso de Descartes para a língua francesa falada
no século XX, ao reivindicar a possível metafísica das linguagens que usam
gravata ou boné, param nos
pissoirs, se espremem no metrô ou em um
ônibus Contrescarpe-Champerret e se dão tapinhas nas costas, pisam os pés, bebem
clava, trocam moralidades, provérbios, acidezes, clichês, insultos,
beijos e pequenas cosmogonias portáteis?
Se Queneau não mudou os franceses,
pelo menos os tornou vivos e saudáveis, uma multitude de linguagens, na Língua
cor do tempo de uma obra multiforme e, em última análise, única, na qual há
romances (
Le Chiendent,
Les Derniers Jours,
Les Enfants du
Limon,
Pierrot mon Ami,
Zazie dans le Metro,
Les Fleurs
Bleues etc.), livros de poemas (
Chêne et Chien,
L'Instant Fatal,
Les Ziaux etc.), artigos e ensaios (
Bâtons, Chiffres et Lettres ,
etc.), recriações retóricas (
Exercises de Style, obras do OuLiPo etc.),
sem falar na concepção ambiciosa da
Encyclopédie de la Pléiade, suas
colaborações no cinema, no rádio e um
peupartour.¹
Este erudito rigoroso amava a
Língua e a Literatura, violou-as para fecundá-las, virou-as do avesso e
simultaneamente fez com que ficassem de pé no chão. Talvez o poeta Queneau
tenha sido um pouco ignorado: poemas como “Petite Cosmogonie Portative”,
“L'homme du tramouai”, “Chêne et Chien”, são peças-chave da poesia francesa
contemporânea, e nem sempre são tão “engraçados” como parecem…
Le singe san effort le singe devint l'homme
lequel un peu plus tard désagrégea l’atome.
Foi sobre Queneau que Blanchot
citou Goethe (pontualmente): “Quando faz um trocadilho, há um problema
escondido aí”. Assim, uma obra que raramente deixava de suscitar o sentimento
trágico da existência escondia o seu sentimento profundo atrás de uma
exclamação latente, “Philosophie mon cul!”, uma fachada pessoal de um sereno professor
ou de uma coruja elegante, um mestre da retórica com um sorriso nos lábios: a
Língua, como se sabe, é a mãe de todos os vícios e de todas as graças.
Notas da tradução
1 A obra de Raymond Queneau é rara
em tradução brasileira. Dos títulos referidos, temos conhecimento de
Zazie
no metrô e
Exercícios de estilo.
* Este texto é a tradução de “Raymond
Queneau (1903-1976)”, publicado aqui, em Letras Libres.
Comentários