Palmeiras selvagens, de William Faulkner

Por Pedro Fernandes

William Faulkner. Foto: Henri Cartier-Bresson



Palmeiras selvagens foi como ficou conhecido o livro que William Faulkner pretendeu intitular If I Forget Thee, Jerusalem e chegou a ser publicado mais tarde com esse designativo numa tentativa meio atabalhoada, comum entre os editores, de reparação do acontecido. A partir dos anos 2000 uma solução conseguiu resolver o impasse: ao The Wild Palms acrescentou-se o título original como um subtítulo. No Brasil, essa sutileza é desconsiderada porque a tradução segue como a obra aparece em Novels 1936-1940.
 
A decisão da Random House pela modificação do manuscrito parece confirmar que nem sempre as soluções propostas (nesse caso, imposta) por um editor parecem adequadas. É verdade que o título original soa pouco atrativo e isso do ponto de vista comercial tem sua importância; desde há muito essa tem sido uma das funções dessa figura que mete a mão no trabalho dos escritores. Agora, para um escritor como Faulkner, para quem a estrutura é um elemento crucial no desenvolvimento da unidade da obra, essa alteração inaugura pelo menos três problemas: fomenta a primazia de uma das narrativas do livro; interfere no sentido ordenador da obra como um romance; e modifica de alguma maneira o proposital interesse de problematização das formas literárias.
 
“Palmeiras selvagens” é o título da primeira história. É narrada in medias res e os acontecimentos principais que envolvem o fim trágico do casal de amantes passam-se em Nova Orleans em 1937. A segunda história é denominada “O velho”. Embora seu desfecho se deixe infiltrar por versões variadas do andamento dos acontecimentos, uma vez se estruturar pelo relato de um sobrevivente, a narrativa é organizada cronologicamente. O narrado se desenvolve uma década antes da narrativa anterior, durante a grande cheia do rio Mississipi, e é protagonizado por um condenado distinguido apenas pela qualidade física incumbido da missão de, com um companheiro de prisão, resgatar dois sobreviventes em meio às inundações.
 
Pela organização das narrativas e o que se conta, é possível desenvolver a leitura das duas histórias de maneira independente tratando cada uma como uma novela ou mesmo um conto. Esta não parece ser a proposta de William Faulkner, quando consideramos como essas duas narrativas aparecem estruturadas no livro: elas não são histórias paralelas, mas intercaladas, perfazendo uma unidade narrativa manifesta pelo tratamento espelhar e complementar entre as circunstâncias que envolvem suas personagens e mesmo os temas suscitados. Ou seja, sabendo um pouco do projeto literário do escritor estadunidense, o leitor reconhece facilmente nesse modelo de estrutura do livro um trabalho de complexificar as formas da prosa, concebendo o romance a partir de suas matrizes originais, enquanto um organismo polifacetado capaz de interceptar as várias outras matrizes da narrativa. Esse princípio é de alguma maneira afetado ao se desconsiderar do título If I Forget Thee, Jerusalem.
 
Talvez por isso o escritor tenha sido sempre interrogado, quando o assunto era o livro de 1939, das relações entre as duas narrativas aí reunidas, ao que sempre respondia que fora uma maneira de ampliar melhor duas histórias que isoladamente não formariam um romance. A explicação um tanto ordinária ao mesmo tempo que parece convergir com os limitados interesses editoriais, é uma solução elegante para algo que seus leitores mais atentos não deixariam de notar.
 
O título original é derivado do versículo 5 do Salmo 137. O texto bíblico expressa o lamento do povo judeu no exílio depois da conquista de Jerusalém em 586 a.C. e uma das passagens, como é recorrente no canto do desenraizado, se revela a eternização da cidade prometida pela memória: “Se eu me esquecer de ti, Jerusalém,/ Esqueça-se a minha mão direita da sua destreza”. Os dois fios narrativos do romance de William Faulkner lidam especificamente com o tema da errância e a impossibilidade do errante de reencontro com a ordem perdida.
 
Em “Palmeiras selvagens” um dedicado jovem estudante de medicina cede ao convite de um amigo e alheio às forças do mundo vê-se arrastado pela correnteza de um amor proibido cuja única maneira de não definhar é se preservar da mesmidade, obrigando, assim, uma errância dos amantes até que, impedidos como somos do romper com os desígnios naturais, se encontram encalacrados pelo destino que os lançam para a tragédia.
 
Em “O velho”, a narrativa redivive vários elementos simbólicos do texto bíblico — estão retrabalhados episódios que remontam o dilúvio, a tentação, a concepção e a redenção, para mencionar alguns. Pouco ou nada resta para um condenado fora da obrigação de obedecer. Nenhum dos presos, trabalhadores rurais numa fazenda de algodão, possui experiência com a água; assim, é outra condena ser designado para o resgate de sobreviventes em meio às inundações do Mississipi e um deles transformará o destino trágico em libertação.
 
Notemos então dois movimentos complementares nos dois fios narrativos de Palmeiras selvagens. Enquanto no primeiro, a errância é movida por uma escolha e uma aposta dos amantes, sempre possível de ser revertida, porque nem mesmo este casal está em fuga de um marido ciumento e perseguidor, no segundo é uma imposição inescapável. Se aqui, o desprovido de liberdade, redivive a expressão de ser livre e subverte o destino trágico — algo visível mesmo no tom da narrativa com nuances cômica e sublime —, lá, o amante livre se vê aprisionado de sua obsessão até ser continuamente soterrado por ela. A segunda narrativa pode ser lida como uma parábola da liberdade e ela serve de iluminadora para a primeira; mesmo situada no passado, os acontecimentos de “O velho” anteveem o futuro de “Palmeiras selvagens”.



Mas, além dos pares prisão-liberdade, Faulkner lida com outras variáveis que se subvertem e são complementadas pelas duas narrativas, como as nuances do amor e a natureza humana para o bem e para o mal, este talvez outro tema dos mais evidentes no romance. O jovem de extrema boa índole, quase-médico, não mede esforços, num arroubo individualista de manutenção da latência do desejo carnal, de atentar contra a vida para atingir seu objetivo; o jovem condenado por uma tentativa frustrada de assalto aborta a ideia de se livrar da vida alheia colocando à parte a oportunidade de escapar da própria prisão.
 
As duas narrativas chegam a se tocar, quando o destino do amante por duas vezes aproxima-se com o do condenado: preso, aquele se pegará observando a estrutura de uma antiga embarcação de resgate da cheia do Mississipi de há uma década abandonada às margens do rio; condenado, o jovem é enviado para o mesmo campo de trabalho dos presos de “O velho”. Além da evidente circularidade dos acontecimentos, Palmeiras selvagens, qual o refrão contínuo dado pela presença reiterativa das palmeiras na primeira narrativa, atesta a danação contínua do existir.
 
Toca-se ainda nas decisões dos dois protagonistas. O condenado regressa à sua condição aceitando de bom-grado o acréscimo de mais dez anos por tentativa de fuga; o preso recusa as oportunidades que legariam sua liberdade, a fuga da cena do crime e a fiança paga pelo ex-marido da amante. O romance lida assim com duas contradições: apenas desprovido da liberdade é possível ser livre; e a liberdade absoluta é uma prisão. E outra vez ganha sentido a errância: nunca se é livre em terra estrangeira, tampouco na sua própria terra.
 
Palmeiras selvagens se organiza em torno de algumas das obsessões recorrentes na obra de William Faulkner — a queda do homem por sua atitude individualista e consequente, a luta terrena dos indivíduos ante a inexorabilidade da existência, incluindo a dimensão trágica, as contradições no interior do conservadorismo forçadas pela mesma condição encontrada na natureza humana, o reconhecimento do mundo quando nossas faculdades de ver foram sequestradas pelas ideologias e seus aparelhos, entre outras.
 
E à evidenciada organização do romance, acrescente-se mais essas qualidades: a composição frasal e das descrições. O narrador sempre prefere a estrutura longa, cheia de volteios e inserções como se quisesse capturar o caos das simultaneidades do que designamos problematicamente de realidade. Prefere ainda a minúcia do descritivismo, como quem olha o mundo com o assombro da primeira vez, sempre em modo de descoberta, da mesma maneira que seus protagonistas — fora de suas convenções — encontram o mundo que precisam decifrar sob pena de não perecerem.
 
Ou seja, o romance confirma que a leitura de uma nova obra de William Faulkner nunca é por repetição e sempre por acréscimo. No tempo corrente, o leitor sempre encontrará nas Palmeiras selvagens muitas das questões que apesar de muito repisadas na literatura de agora são quase sempre alijadas por um batido pedagogismo ou pela excepcionalidade da experiência do eu: o aborto, o machismo e a homossexualidade são alguns exemplos. Também aqui, o leitor aprenderá por acréscimo. Em parte, é isso que coloca um escritor entre os mais importantes da literatura.


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Palmeiras selvagens
William Faulkner
Newton Goldman (Trad.)
Companhia das Letras, 2024
312p.

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