Ou quando a terra voltar a brilhar verde para ti

Por Eduardo Galeno

A morte de Empédocles, 1987. Sabzian.


 
Se você quiser efetuar algo de parâmetro, que inaugure a tecitura do ponto em que surge a obra, você precisa pesquisar. Pesquisar: avaliar, reter, permitir, desafogar, enfim, aquilo que vem antes. A pesquisa é uma techné; a arte, em suma, seria uma pesquisa que não possui limites. Técnica permeável, ir para cima e ao lado do objeto. Possuí-lo, agarrá-lo. Obsessão, transferência, violação de leis. Você precisa. A isso, você deve estar abalado, confundido com a própria contemplação. Você deve morrer como se morre em vida ou deve morrer em vida. Para se sustentar, sustentar a necessidade: eu preciso, alguém precisa, a obra precisa, o mundo precisa. Ou nada: fazer por fazer. Simplesmente. 
 
Isso mesmo que está em eterno processo no filme A morte de Empédocles (1987), de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Processo pelo qual o valor obra passa numa divisão. Ele está dentro ou fora de tudo. Existindo um texto-base, existe também um subterfúgio. A estratégia na qual o filme se alonga precisa passar pelo crivo do drama de Hölderlin, o seu fragmentado Der Tod des Empedokles, a interpretação romântica da Grécia pré-socrática. Talvez aí incida certa regra de reconfiguração das artes: onde começa o filme, onde termina, onde, assim, ocorre o enigma que funde e disjunta a literatura e o cinema?
 
Mas não esquecemos: a meia-lua do intermediário entre a letra e a imagem faz configurar também o teatro, a representação. À revelia, a ocasião suplanta qualquer índice e desmascara qualquer pontuação insinuante que diz “isso não não estava aqui” (o enunciado “o teatro e a literatura não estão no cinema”). Fato que, absorvida a circunstância em que a obra se assume única — com suas propriedades, inclusive as comuns em todas elas —, essa experiência faz do particular um universal. Como a vida empírica do siciliano Empédocles de Agrigento passa para a ficção do caloroso germânico Friedrich Hölderlin, que pula para uma outra ficção (do casal francês Straub-Huillet): o que sai de prognóstico desse tipo nos faz, por incrível que possa parecer (após tanta análise ao longo dos anos), bater a cabeça ainda hoje.
 
Advém que o fenômeno, por causa disso, tende a ser exageradamente turvo, superfície enchida de alvoroço. Plano móvel. Porém, um ponto a ser levantado, que pode justamente cair como uma luva na construção do sentido, é a transparência dessa forma. Fractal? Floco? Um conjunto de Mandelbrot declina em objetos iguais; na arte, não acontece assim. A cada vez que você tenciona um a, os b, c e d vão, naturalmente, estar à disposição não da mesma maneira, mas continuamente imaginados sob deslocamentos (interpolados). Se nós quisermos fazer analogias, o filme de Straub/ Huillet é, nesse prisma, a tragédia holderliniana. Ou pelo menos assim se coloca.
 
Julia Kristeva, ao roubar o conceito cantoriano de transfinito, pôde resumir um pouquinho do que quero dizer. Uma parte do seu Introdução à semanálise (1969) responde às questões levantadas pelo dialogismo de Bakhtin, o qual se projeta a captar a veia da intertextualidade nos níveis que a) ou não possuem causalidade b) ou não estabelecem substância. Os encargos transfinitos na linguagem poética fluem de um lado para outro por intermédio das sequências do poema. É óbvio que — e é interessantíssimo — uma parcela de determinado grupo sempre fica à mercê do outro elemento. Já falei anteriormente, mas recapitulando: isso funda o tecido da obra. Tecido elástico, plástico.
 
Em outras terminologias, está em curso, em A morte de Empédocles, o serialista. O desenvolvimento da decupagem somatiza os fluxos num método, bem delineado, esquematizado (mas não menos ziguezagueante). Basta pensarmos em outras referências: em Boulez ou Cézanne, por exemplo, quando fazem da tangibilidade uma abertura para o som (de um lado) e a cor (do outro). Eles, Danièle e Jean-Marie, quiseram planejar as séries conforme esses mesmos espaços que são desconexos, contudo ainda produtores de saídas seriais aos planos do filme. Logicamente, esses cacos pelos quais Huillet e Straub derivam são planejamentos. Tudo é antevisão.
 
A preparação é longa, mas rasteira, concreta, fácil. Porque o cinema do casal é contra o hermetismo, contrário a uma ideia de fixação do signo fora do eixo. Para eles, o signo ensaia. Não há nada fora da pesquisa. Não há nada que, pensado, possa ser impossível. Segundo a clínica lacaniana, há uma dobra; segundo Platão, o universal se desdobra em Ideia. Para Straub e Huillet, a linguagem se dobra, mas também se consome como idealização e volta a ser matéria pura. Cinema de base. Realidade
 
*
 
No fim da terceira versão da história de Hölderlin, Empédocles diz: “meus olhos não devem afastar-se sem alegria desta terra verde e aprazível”. Pontuemos: nem sempre é assim, principalmente aqui, em Hölderlin, que tenta emular a prática grega no século XIX. Não se trata do mesmo caso, mas há uma ponte entre ele e a atitude nietzscheana de ser trágico e ir além da lógica da tragédia (o caso do fim ser sempre triste), superando. Ao mesmo tempo em que guarda a consoante do que é negativo (Empédocles procurar a sua morte), igualmente encara o monstro da positividade — a alegria — em sua inteireza. 
 
Esse gesto espinosano procura afirmar certo caminho. Em 20 de agosto de 1987, na escrita sobre as várias versões que fizeram sobre o filme, os dois diretores marcam tanto um ataque contra a reprodutibilidade da arte na era da técnica quanto uma ojeriza à unidade da obra. O mercado e a norma, enquanto formas convergentes, são expulsos nesse desvelamento, do gleiche Geist (mesmo Espírito) que incitou Hölderlin às produções poéticas. Enquanto divergentes, eles preparam a fissura em duas diferentes situações: do resgate da aura e, também, da urgência de se fazer a crítica à monocromia (das aparências, dos valores de troca).
 
O compasso de Empédocles, cuja marcação insistiria em unir os deuses e os homens — Olimpo e o Etna —, desmembrou toda figura de viés ateológico. Esse protesto contra o esclarecimento resiste chamando os deuses de volta para a festa, assumindo aí o mote do redentor. A mitologia na qual Hölderlin perfaz — e que J-MS fala positivamente; diremos que ele defende o projeto de volta ao encantamento pré-moderno (não existe filme político sem mística) —, entretanto, jamais pode significar o mito desprendido da materialidade. Afinal, a Natureza — que não necessita da palavra — não estaria tão central na mediação no bojo fílmico. 
 
“E me
Estendes o cálice fervilhante do pavor,
Natureza, para que o teu aedo ainda
Beba o derradeiro entusiasmo?
Estou em paz agora, nada mais procuro
A não ser meu lugar de sacrifício. Tudo está bem.”
 
diz Empédocles, ao se exasperar na consciência do todo-poderoso Todo, o Universo, às suas claras. Universo que lhe nega a identidade porque ultrapassa a barreira do que seja dual: meu poema é apenas o que não-é-poema, isto é, meu poema se apresenta não como contrapartida do cosmos, mas apenas ele mesmo como poema. Tudo está bem. Para Empédocles, a meia-noite é clareira. Rilke nomeou a experiência de Weltinnenraum (espaço interior do mundo): agora, as palavras do herói de Agrigento ganham tamanha significação: o mundo não me é oposto; eu mesmo sou a interioridade do mundo que reluz.
 
Algo aqui se abre. A abertura é o Offen (aberto). O aberto se abre, fazendo também, a partir dos outros, se abrir a abertura. Isso se faz nexo, se faz livre. Nessas trocas, a Natureza se choca com o mito. Pausânias, na segunda versão do texto, fala: 
 
“Homem excepcional! Tão intimamente ninguém
Jamais amou, nem viu o mundo
Eterno, seus espíritos e forças
Como o fizeste; eis porque só tu também
Pronunciaste a palavra temerária e também sentes
Tanto, como por Uma palavra altiva
Te apartaste do coração dos deuses
E por eles te sacrificas com amor,
Ó Empédocles!”
 
Eis a qualidade do filme A morte de Empédocles. Trabalhar, até o fim, com um roteiro, estabelecido a ferro e fogo, porém indicativo de saídas, que só poderiam vir a ser decorações de liberdade interpretativa (o ato em si até explicaria por que o teatro e a literatura, a ação e a palavra, são tão pontuais para a imagem). Somos livres apenas na consciência da brutalidade do destino, da necessidade. Somos livres, como deuses, no mesmo momento em que saudamos a liberdade irrestrita da Natureza. 
 
Assim, as paisagens e o vento, a câmera e o enquadramento, os sussurros mais murmurantes e os enunciados mais energéticos, as pausas de fala e os olhares, tudo isso repete, via cinema, o que já estava lá em Hölderlin. Exigências, fidelidades, incorporações, presenças ausentes. Parece cair no mesmo poço: criar arte, criação, pesquisa. Criar um filme — que é arte — e pesquisar Hölderlin. 
 
O conceito de criação me lembra, agora, a última frase da terceira versão da tragédia. “Que evoque o espírito vivente”, acredito, é um complemento semântico de “quando a terra voltar a brilhar verde para ti”. Quando a terra voltar a brilhar verde, o vivente, vendo a torrente jorrar sobre a aridez, viverá de novo com os deuses e também com o Olimpo. Mas ele não passará senão na própria aridez. Quem sabe Straub e Huillet não tenham visto exatamente esse domínio? Em tempos de Antropoceno, de devastação ambiental, das práticas draconianas sobre os corpos dissidentes, pensar a Natureza é, além de necessidade, um ato de criação. Deixo as palavras de Deleuze sobre o tema: 
 
E qual a relação que existe entre a luta dos homens e a obra de arte?
 
“É a relação mais estreita e, para mim, mais misteriosa. Exatamente o que Paul Klee queria dizer quando dizia: ‘Pois bem, falta o povo’. Falta o povo e ao mesmo tempo, não falta. Falta o povo, isso quer dizer que — não é claro, nunca será claro — esta afinidade fundamental entre a obra de arte e um povo que ainda não existe não é e nunca será clara. Não há obra de arte que não recorra a um povo que ainda não existe.”
 
Interpretação: somente numa arte que se deixe levar por esses problemas, essa transposição de núcleos do que existe e do que ainda-não-existe, pode nos propor um futuro, um passado e, é lógico, um presente.
 

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