Levante a mão quem nunca alguma
vez amaldiçoou os bancos. Difícil não o fazer, pelo menos quando percebemos que
nos descontaram aqueles 0,03 centavos, o que, sim, pode não ser uma fortuna,
mas é inevitável pensar na soma de todas essas poucas “moedas” de cada cliente
e como elas servem para torná-los milionários. Porque por mais que o setor
bancário
lamente, a realidade é que sempre sai com lucros exorbitantes.
“O banco nunca perde”, diz-se, e sem dúvida isso sempre alimenta a suspeita e a
antipatia para com os guardiões do nosso dinheiro. Um terreno fértil, em suma,
do qual a literatura e o cinema se utilizaram em inúmeras ocasiões —
também a partir de acontecimentos reais —,
fazendo com que os bancários levantassem a mão, nestes casos.
Destinatários na Argentina, não só
dessas entidades, mas do sistema financeiro em geral, de uma animosidade
especial, criou-se por lá quase um gênero nesse sentido — a coisa veio de mais
atrás, mas sem dúvida o famoso
corralito reforçou esse sentimento para
todo
o tempo futuro — se levarmos em conta a quantidade de diretores que optaram por
abordar o tema. Aí estão, para citar alguns desses filmes,
A parte do leão
(Adolfo Aristarain, 1978),
Plata dulce (Fernando Ayala, 1982),
Plata
quemada (Marcelo Piñeyro, 2000) ou o mais recente
A odisseia dos tontos
(Sebastián Borensztein, 2019).
Um dia, Rodrigo Moreno foi
convidado para refilmar
Apenas un delincuente (Hugo Fregonese, 1949), película
sobre um funcionário de repartição que fica com dinheiro dos salários da
empresa onde trabalha para depois tentar viver bem. Não o convenceram. Mas a
história ficou em algum lugar da sua cabeça. E anos depois decidiu utilizar
parte dela — “Mudei a ação para um banco porque sempre tive interesse em
trabalhar com aqueles funcionários cinzentos que passam o dia contando dinheiro”
1
— e o nome do protagonista (Morán) para transformá-lo em sua própria criatura,
que chamou de
Os delinquentes (2023).
Morán (Daniel Elías) faz as
contas. Não para calcular como ele poderia ficar rico, mas para saber quanto
seria seu salário até o dia em que se aposentasse. E multiplica a cifra por
dois, numa das primeiras de muitas duplicidades contidas no filme. Sendo chefe
da Tesouraria do Banco Social Cooperativo, para ter todo esse dinheiro de uma
vez só é preciso determinação. Porque já tem as chaves. Ele sabe muito bem que
se os usar assim, como se estivesse fazendo um trabalho de rotina, sua imagem
ficará registrada. Mas não se importa. A pena de três anos e meio, comparada ao
resto da vida — depois de libertado — gozando do dinheiro sem precisar
trabalhar, não lhe parece excessiva. Compensa. Mas para isso precisa de um
parceiro.
Não é por acaso que se trata de um
assalto a banco sem armas nem lutas. O roubo é um pretexto. Cortázar dizia que
para ele a literatura era um jogo. Mas um jogo sério. A mesma comparação pode
ser transferida para Moreno e o cinema. “O cinema, com o seu profissionalismo
funcional e engenhoso, tem perdido o artista impulsivo, o lado caprichoso que a
arte precisa, aquele que pode nos dar obras imprevisíveis, ou poéticas ou
selvagens”, escreveu em “Hacia un cine imperfecto” (
Revista de Cine, n.
4, 2017). É aí que quer se mover: na experimentação, na exploração, no gosto
pelo cinema que vê e que gosta de submeter ao seu próprio filtro. Recusa a
pensar sua obra de acordo com o que a indústria deseja e o que os espectadores
em potencial desejam ver. A fina artesania antecede o plano dos efeitos que
domina grande parte do cinema contemporâneo.
Jogos. Anagramas e palíndromos.
Román (Esteban Bigliardi) torna-se sócio de Morán. Anos de serviço fiel ao
banco. Mas a tentação, a facilidade do plano proposto por Morán supera a
rejeição, o caminho correto. Mas o fato de o ladrão ser preso não significa que
o cúmplice seja um homem livre. Os maços de dinheiro economizados tornam-se
O
coração delator de Poe. Román tenta continuar com sua antiga vida, mas se
afoga. Para ele, o preço da liberdade parece desproporcional. Nem um nem outro
falam muito, mas os seus silêncios dizem tudo.
Ser livre é tomar um sorvete
sentado na calçada
Os delinquentes torna-se um
filme não acerca de um assalto a banco e sim sobre a liberdade. Mas, o que é a
liberdade? Ou o que é ser livre? “Sou um velho conservador que anseia por aquele
tempo... gozávamos de maior liberdade”, explica Del Toro (Germán de Silva), o
gerente do banco, fumando na calçada durante um intervalo de trabalho. “Você
está dizendo que houve mais liberdade, Rolando?”, uma funcionária quer saber. “Não,
você tem razão, não havia mais liberdade, mas você podia fumar em qualquer
lugar.” Morán olha para eles pensando no que está prestes a perder. Ou talvez a
ganhar. “Três anos e meio de prisão ou vinte e cinco no banco?”, explicará mais
tarde, dando a entender que a segunda é a coisa mais próxima de uma prisão sem vigilância.
Román viaja para um pequeno povoado
chamado Alpa Corral, na província de Córdoba. Carrega dentro de si a paisagem
de Buenos Aires. Sua agitação, sua correria, gente vindo de todos os lugares,
barulhos, falta de tempo. A atmosfera permeia os personagens na grande capital.
E da mesma forma, Moreno se serve de uma nova realidade externa que os permeia
e se apodera deles. E intensifica sua tendência lúdica: aparecem uma Norma, uma
Morna, um Ramón (Margarita Molfino, Cecilia Rainero, Javier Zoro Sutton). Leem
a HQ de Namor, que também é um personagem duplo: meio atlante, meio humano
mutante. Mas o mais importante é que também brinquem, cantem, desfrutem da
quietude e da conversa e de um piquenique pictórico, uma natureza morta cheia
de vida. Só num oásis como este Román consegue acalmar os seus pensamentos rotineiros,
escapar, recordar uma anedota e ter vontade de compartilhá-la. E se perguntar:
“Por que ainda me lembro disso, se isso não é nada?”
Lisandro Alonso (que nomeou seu
filme de estreia como
La Libertad) disse uma vez que quando estavam
filmando
Os mortos (2004) na prisão, muitos presos diziam que “a única
diferença entre estar preso e ser livre era que lá fora eles podiam beber
álcool que quisessem.” E a cena que ele mais gostou naquele filme foi quando o
protagonista, recém-libertado da prisão, se senta para tomar um sorvete numa
calçada. “E ele fica ali sentado, sem fazer nada, vendo a vida passar. Mas em
liberdade.”
Morán faz alo semelhante, mas ao
contrário: antes de se entregar à polícia. Embora mais tarde descobrirá que
talvez não esteja tão condicionado quanto imaginava. “Todo mundo lá fora está
de olho no telefone”, explica um carceráriop, interpretado, numa outra
dualidade, também por De Silva. “A pequena mensagem, a pequena foto, o
comentário. Todas as pessoas pensam que são livres, passam o tempo atualizando
páginas na internet. Percebe? Isso não acontece aqui. Tínhamos que ter alguma
vantagem. Lá fora falta, e aqui se há algo que temos de sobra é tempo.” Ah…
talvez a coisa seja sobre o tempo então? “Em média, as crianças de hoje usam o
TikTok durante cem minutos por dia. E o vídeo médio é de oito segundos”, afirma
o jornalista e divulgador Johann Hari em entrevista ao
El Confidencial.
Bela liberdade. Belo panorama.
O uso do tempo
“Em que consiste a essência da obra cinematográfica autoral?” — Andrei
Tarkovsky se perguntou certa vez. “Em certo sentido, pode-se dizer que esta é
uma ‘escultura do tempo’. Da mesma forma que um escultor pega num bloco de
mármore e, sentindo os contornos da sua futura obra, começa a descartar o
supérfluo, assim também faz o artista cinematográfico, pegando um ‘bloco de
tempo’, que engloba o enorme e indiferenciado conjunto dos fatos da vida,
começa a esculpir e descartar tudo o que é inútil, preservando apenas o que
serão os elementos essenciais da imagem cinematográfica”
2. Aos
poucos, a simbiose entre as ideias e preocupações de Moreno e as dos próprios
integrantes do filme, bem como a particularidade do próprio filme, torna-se
total.
O diretor e roteirista, em seu
quinto longa-metragem, parte do presente para dialogar com o passado e com
diferentes possibilidades de futuro. Ele manteve a paciência para filmar nos
intervalos de 2018 a 2022. Não se preocupou que a duração acabasse sendo
superior a três horas se era isso o que a história
pedia. Nem reunir e
misturar diferentes gêneros cinematográficos. “Gosto que os filmes funcionem
como um passeio sem destino preciso ou propósito muito claro, ou como uma
visita a um determinado mundo ou estado de espírito e você não sabe bem quando
ou por que isso vai acabar”, declarou em seu “Manifesto” (revista
Las naves,
n. 1, 2013).
Ele diz por que não se deleita com
a nostalgia do retorno ao passado. Não se
volta ao passado, mas vai ao
seu encontro, resgata-o, revaloriza-o e utiliza seus recursos para construir
sua própria escultura temporal. Assim é que vemos esse banco em tom ocre que
pode ser atual ou um
flashback dos anos setenta, essa calculadora comercial
de mesa na qual Morán faz suas contas que saem em uma tira de papel que ele
guarda no bolso — gesto que o aproxima ao de um especialista retrô como o
finlandês Kaurismäki, que em seu mais recente
Fallen Leaves, por
exemplo, faz seu personagem escrever também um número de telefone em um pedaço
de papel, em vez de registrá-lo diretamente como um contato —, até mesmo as
próprias notas, pode-se dizer, já têm ares antigos nesta era do capital
invisível, e esse Wincofón (toca-discos) no qual Morán toca para Norma o seu
disco preferido,
Pappo's Blues (1971), e ouvem a música “El Viejo”:
Qué nos ocurre después de tanto tiempo,
reflexionamos al vernos al espejo;
qué es lo que pasa, me estoy viniendo viejo,
no se ya qué pensar, si ya no se qué es lo que
pienso.
Se falamos de música e som, é
fundamental destacar a habilidade no uso de ambos. Por um lado, nas escolhas da
trilha sonora e na sua combinação — novamente — de gêneros, como no caso de
Astor Piazzola, um compositor único e revolucionário que hibridizou o tango com
o jazz e a música clássica. E por outro lado, na forma como acompanham,
reforçam, ajudam a transferir planos e sequências, vibram com os habitantes do filme
e até acrescentam um ponto de estranheza à cena (essas palmas que parecem
ressoar na cabeça de Román). Ou simplesmente deixando que alguém leia em voz
alta, sem qualquer acompanhamento sonoro, para que se sinta inclinado a ouvir
atentamente o guarda da cela para nós mesmos. Como quando Norma lê um poema (
Fui
al río, de Juan L. Ortiz) para Morán.
E em
Os delinquentes, esses
desvios da rotina que os protagonistas procuram ou são apresentados, nesses
dilemas que têm de enfrentar quase constantemente, chega também o amor.
“Acredito que no cinema só podem existir histórias de amor”, disse Jean-Luc
Godard.
3 Mas aqui o amor, como não poderia deixar de ser, chega sem
avisar, trazendo não só doçura e alegria. Aliás, o título de um dos discos de
Ulises Conti — artista também incluído na trilha sonora — seria muito aplicável:
El amor es un francotirador. Porque na sua chegada arrasta as pessoas
envolvidas, agita-as, desorganiza-as ao mesmo tempo que as coloca no seu lugar.
“Acho que o que a
Nouvelle Vague trouxe de novo”, refletiu Godard na
década de oitenta, “como um grande movimento, é que promovemos algo que até
então não existia na história do cinema e que era o amor pelo cinema, amar o
cinema antes de amar as mulheres, o dinheiro ou a guerra.”
Nexos com a arte
Enquanto caminham pela noite calma
de Alpa Corral, Morna descreve para Román a profissão de Ramón: “ele é
cineasta”. Mas é autor de um filme que também mudou de rumo, e depois
esclarece: “Videomaker. O cinema como tal já está morto.” Na sua dedicação, na
sua forma artesanal de abordar a sétima arte, Moreno quer reverter essa agonia.
Homenageia Robert Bresson —
fades encadeados, telas divididas, Román
indo ver
O dinheiro4 numa sala meio vazia — e recupera a
influência da pintura impressionista (com a ajuda de uma cinematografia que
transforma alguns fragmentos em verdadeiras pinturas a óleo sobre celuloide, e
que exige a menção dos nomes de Inés Duacastella e Alejo Maglio). Deixar as
cenas respirarem o tempo que for necessário, movimentar a câmera em velocidades
diferentes, muito mais sintonizadas com o processo interno dos intérpretes do
que com movimentos padronizados e previsíveis, atingindo seu apogeu na
construção dessa bela, poderosa e magistral elipse perto do fim. E acima de
tudo, ousa desenvolver numa liberdade criativa sem medo de errar.
Felizmente, para quem não quer
apenas consumir cinema que hoje equivale a produções como se saíssem de uma
fábrica, Rodrigo Moreno não é um caso isolado no seu país. Quer o seu filme
pertença ou não ao chamado
Novo Cinema Argentino (surgido em meados dos
anos noventa com cineastas como Lucrecia Martel ou Martín Rejtman — além do já
citado Alonso — e posteriormente promovido pelo coletivo El Pampero Cine), são
evidentes os vasos comunicantes que estabelece com filmes como
Trenque
Lauquen (Laura Citarella, 2022); e não apenas por compartilhar atores,
produtores ou uma duração inusitada, mas por sua disposição de colocar o olhar
e as ações de uma forma que decida se distanciar da ansiedade dominante, ou do
próprio
Jauja (2014) de Alonso, do qual parecem chegar os ecos de suas
paisagens nessas serras de Córdoba por onde passam os personagens que trocam
letras em seus nomes.
A verdade é que
Os delinquentes
estabelece pontes não só no campo cinematográfico, mas também no campo
literário. Essa comunhão com as paisagens das ficções citadas fica ainda mais
completa em dois livros que parecem formar uma espécie de arquipélago criativo
em Córdoba. Porque perto de Alpa Corral (General Cabrera) está Federico Falco,
que em
Planícies narra os dias de alguém que se isola numa casa com
jardim: “Na cidade perde-se a noção das horas do dia, da passagem do tempo. No
campo é impossível.” E a poucos quilômetros de distância (General Deheza) está
sua amiga Soledad Urquia, que em
La luz y la montaña dá forma inédita ao
diário pessoal de uma mãe que se muda com a família para as montanhas, e começa
uma busca espiritual ao mesmo tempo que abraça a natureza e a maternidade.
Viver ao contrário é viver
certo
Quando se saboreia o tempo, ficam
longe os números do banco, o dinheiro, os minutos e as horas. Morán fala de
trabalhar sempre fazendo a mesma coisa para ter quinze dias de férias por ano,
para ter tempo livre. “Só vivemos para trabalhar”, conclui. “O ser humano vive
ao contrário, vai na direção oposta”, refletiu recentemente no
El País o
filósofo coreano Byung-Chul Han. “Simone Weil diz isso. É violento, destrói o
meio ambiente, comporta-se como uma bactéria, que mata quem deve a sua vida.
Nenhum animal é violento com a natureza, só o homem o é, perturba aquilo a que
deve a sua vida. Ou seja, vive ao contrário. E como se pode escapar dessa vida ao
contrário? Vivendo ao contrário.”
Será então, talvez, que além de
alcançar ou não a almejada liberdade, que para cada um pode ter um significado
diferente, uma maneira de seguir em sua busca, pelo menos, é tentar viver como
acreditamos que deveria ser, mais próximo do nosso ideal, que durante muito
tempo foi o oposto do que parece constituir o modelo de vida estabelecido. Colocar
freio. Deixar as horas suspensas e suspender o desempenho e a produtividade
como uma norma imposta. E a telinha, a que estamos. Pelo menos por enquanto.
Não deixar a corrente nos levar. Assumir a incerteza. “Nesse sentido, o erro
como possibilidade, como o oposto da perfeição, aparece como porta de saída e clara
expressão da liberdade”, escreve Moreno.
Há uma cena de
Os delinquentes
que poderia ser tomada como paradigma de quase tudo o que é expresso: toca “Por
la mañanita” de Violeta Parra, e no pátio dessa casa rodeada de verde, esses
quatro quarentões agitam lenços brancos que, poderiam ser, alguns anos antes,
não imaginariam estar dançando uma cueca chilena que teriam rotulado de
ultrapassada ou anacrônica. Assumem e assimilam um passado, o tradicional, que
até há pouco rejeitavam
per se. Dançam e percebem, ou talvez se sintam,
libertos, livres, plenos e que não há nada melhor que possam fazer nesse exato
momento. Sim, pode ser efêmero, mas muito quando não se olha o relógio e que,
em todo caso, não é.
No poema que Norma lê, o
protagonista tenta decifrar a linguagem do rio e do que o rodeia. Sente que não
pode e se angustia. Mas. “Logo senti o rio em mim, / corria em mim / com suas
margens trêmulas de sinais, / com seus fundos reflexos quase estrelados”. Para
terminar exclamando: “Um rio me atravessava, um rio me atravessava!” O mistério
como parte da vida. Um personagem do filme sai e vai embora. Perde-se. Mistura-se
e funde com a paisagem. Tudo o que vimos ia para algum lugar. Mas não sabemos
onde. Como o rio, que não para. Pelo contrário, flui, livre, continua até o
mar, à imensidão insondável em que vivemos e que o cineasta esculpe. Ramón, o
cinegrafista, diz que está fazendo um filme. “O cinema havia morrido?” Morna
pergunta. “Talvez ele nem tenha morrido totalmente”, responde.
Não morre. Nãomorre. N
ãomo
rre.
Nomore. Moreno. Anagramas.
Jogar.
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