Por Liliana Muñoz
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Georges Rodenbach. Foto: Felix Nadar |
Não hesitaria em qualificar Bruges,
a morta, de Georges Rodenbach (Tournai, Bélgica, 1855-Paris, 1898), como um
romance que é perfeito. Já na altura da sua publicação, em 1892, despertou o
interesse da crítica: foi o primeiro romance em que tanto o texto como a imagem
— neste caso, as fotografias da sofrida Bruges — desempenharam um papel
primordial. Contudo, o seu mérito não reside nos aspectos meramente formais,
mas em outras questões que considero essenciais discutir neste texto: a forma
como o significado se aproxima e nos escapa, a forma como os significantes
dialogam entre si, se entrelaçam, desdizem, comovem e nos falam de um romance
plural, no sentido barthesiano do termo. Assim, a cidade, as vozes, os sinos, a
imagem da mulher, o amor-paixão ou a morte são veículos para nos falar de outra
coisa, para nos aproximar, como diria Borges, da iminência de uma revelação que
não se produz.1
Aproximar-se de Bruges, a morta
é aproximar-se de uma série de topos literários: por um lado, a imagem
da mulher — que obceca Nerval, Rodenbach, Bioy Casares, mas também cineastas
como Alain Resnais, Alfred Hitchcock ou Céline Sciamma; por outro, a cidade
como protagonista, que encontramos em Thomas Mann (Morte em Veneza),
Leopoldo Alas Clarín (La Regenta), W. G. Sebald (Os emigrantes)
ou Juan Rulfo (Pedro Páramo), para citar alguns exemplos. E ainda,
embora estes dois grandes temas tensionem a trama, num sentido quase dialógico,
há outra questão, igualmente importante, que se coloca ao leitor: a do próprio
romance e da sua construção, a das engrenagens que tecem uma história. para nos
contar outras.
Em A importância do romance,
Karl Ove Knausgård discute alguns dos ensaios de D. H. Lawrence, incluindo “Why
the novel matters”, e explica: “Para Lawrence, a vida era uma onda,
ingovernável, imprevisível e em constante mudança. Tudo o que impedia a
mudança, ou seja, o acabado, o definido, o categorizado, o absoluto, ia contra
a vida. Portanto, cada rotina, cada plano, cada sistema ordenado era uma
espécie de morte em vida.”2
Em Bruges, a morta, Hugues
Viane, um viúvo gris e desolado, incapaz de lidar com a morte da sua esposa,
decide instalar-se em Bruges para chafurdar na sua dor, para se tornar um com a
cidade, para se fundir com as ruas solitárias e as piedosas beguinas que tudo
olham e tudo julgam. É então que conhece Jane, uma mulher idêntica à morta, uma
miragem que aos poucos aparece e se dissolve graças à influência de Bruges. Em
última análise, o que Knausgård e Lawrence apontam aproxima-se do que Rodenbach
parece nos contar neste livro: Bruges, a morta é a história de uma
cidade morta e um romance cheio de vida; uma cidade definida e categorizada
que se impõe a Hugues e o ataca com toda a força do absoluto, e uma trama que
escapa ao leitor, que evita uma interpretação única ao estabelecer uma série de
analogias e caixas chinesas.
Sob a sensação de ordem e
contenção, o leitor logo descobre o movimento do romance: não só vemos o
protagonista fazendo longas caminhadas pelas ruas ou atravessando pontes, mas
também duvidando de si mesmo, retraindo-se, cedendo aos seus impulsos, evitando
a unanimidade que governa a cidade. No fundo, Bruges é um reflexo da alma
distorcida de Hugues, um indivíduo que anseia por um amor que se perdeu para
sempre, mas cuja essência, mesmo que adulterada, ele procura preservar a todo
custo. O papel da cidade não é passivo; Bruges não é observada: observa. E dá a
sua opinião, critica, fica escandalizada e tenta moldar o comportamento de
Hugues. Quanto mais próximo ele estiver de experimentar a felicidade, mesmo uma
felicidade degradada — porque a natureza de Jane é vil e gananciosa — mais
fortemente a presença de Bruges é percebida.
Em Bruges, a morta é
essencial o jogo de espelhos e de fantasmagorias: quando Hugues decide
instalar-se na cidade após a tragédia, o narrador afirma: “Uma equação
misteriosa se estabeleceu. A esposa morta devia corresponder para ele uma cidade
morta [...]. Ele precisava de um silêncio infinito e de uma existência tão
monótona que apenas lhe desse a sensação de estar vivo.” Mas o protagonista não
está morto: é apenas a aparência da morte. A de Jane, por outro lado, é a
aparência da esposa viva; a de Bruges, o da esposa morta: “Bruges era sua
esposa morta. E sua esposa morta era Bruges. Tudo se unia em um destino
idêntico.”3
O romance tortuoso e agitado que
mantém com Jane alude ao delicado “senso de semelhança” que o narrador
menciona, semelhança que o leva a ficar obcecado pela nova mulher. A sua gradual
transformação, portanto, não só contamina a visão que Hugues tem de Jane, mas
também a visão que tem da própria cidade. À medida que Jane se afasta da imagem
da morta, emerge a de Bruges em toda a sua terrível analogia, lembrando-lhe que
o rosto da morta não está na nova amante, mas na própria cidade, e que, se isso
for um espetáculo de prestidigitação, Bruges é a miragem verdadeira.
Em “A arte de contar histórias”,
Walter Benjamin relembrava uma história contada por Heródoto: a de Psamético
III, o último faraó da XXVI dinastia egípcia, que foi feito prisioneiro de
Cambises, rei dos persas. Para humilhá-lo, Cambises fez Psamético admirar a
entrada triunfal dos persas, ver sua filha se tornar uma serva e ver seu filho
ser levado junto com outros para serem executados. Em todos os momentos, o rei
permaneceu impassível. Porém, ao reconhecer entre os presos um de seus servos,
um homem idoso e empobrecido, bateu na cabeça com os punhos e mostrou sinais da
mais profunda dor. Por que o rei fica comovido apenas ao ver o servo? Segundo
Benjamin, Heródoto não explica, ou não explica o suficiente. Não há resposta
porque todas são possíveis, e essa é a chave, não apenas da arte de contar
histórias, mas do que acontece neste livro.
As possibilidades de sentido de Bruges,
a morta são ilimitadas: se remetemos a Hans Mayer, poder-se-ia pensar que
“o feminino fatídico é impossível de domesticar” e que, portanto, Jane poderia
juntar-se a Dalila, Judite, Galateia ou Ofélia, mulheres paradigmáticas que
rompem com a ideia cristã do feminino, encarnada pela esposa morta; outra
leitura poderia sugerir que existe uma espécie de tensão entre o ponto de vista
masculino e o ponto de vista da cidade, e que o ponto de vista feminino, em
qualquer caso, ocupa um papel secundário; outra poderia propor que Hugues, tomado
de amor, só conseguia captar a ausência da amada, sua memória, e não a própria
amada, e que portanto Jane não era nem memória nem ressurreição da carne, mas
algo a meio caminho que apenas contribuía para cristalizar sua dor. Não acredito
que nenhuma dessas leituras seja capaz de abarcar a pluralidade deste livro:
como na narrativa de Psamético, o romance não se explica nem se traduz, mas se
move no campo da ambiguidade, da complexidade dos significantes, de infinito de
linguagem.
Bruges, a morta é um
romance que nunca termina: é um duelo entre ausência e presença, entre o corpo
da amante viva e a memória da amada morta, entre a incisiva Bruges e o
atormentado Hugues. Mais do que uma história sobre o amor além da morte, este é
um livro sobre a cidade como extensão da paixão amorosa. Afinal, como indica o
narrador, “cada cidade é um estado de alma”.
Notas da tradução:
1 No original, existe um parágrafo
depois deste em que Liliana Muñoz tece considerações acerca da editora Firmamento,
responsável por recolocar em circulação em língua espanhola o livro de Georges
Rodenbach. É possível aceder ao texto original no endereço abaixo desta
postagem.
2 O livro referido de Karl Ove Knausgård
até agora é inédito no Brasil; utilizamos a tradução livre a partir do título
em língua espanhola.
3 Existe uma tradução brasileira
do livro de Georges Rodenbach. É o título de
Bruges, a morta que
utilizamos aqui. A tradução de Juracy Daisy Marchese, dos anos 1960, editada
pelo Clube do Livro, está há muito esgotada. A versão nossa de passagens do
romance é a partir do texto em língua espanhola. Mais recente, saiu uma
tradução em Portugal feita por Aníbal Fernandes (Sistema Solar, 2013).
* Este texto é a tradução livre de
“El rostro en la ciudad”, publicado aqui, em Letras Libres.
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