Ao contrário de outros ofícios, o
de crítico literário exige uma permanente explicação do que é e como se exerce.
Para o bem ou para o mal, o público leitor (ninguém mais me interessa) entende
o que é um poeta ou a atividade de um romancista, enquanto a figura do crítico
é elusiva e equívoca. É comum — como gosta de dizer o crítico peruano José
Miguel Oviedo — que os críticos literários nos perguntem se, além de
“criticar”, escrevemos; isto é, se também nos dedicamos à “verdadeira” literatura,
seja a prosa ou a poesia.
É duvidoso que os críticos, embora
usemos a mesma linguagem dos poetas ou dos romancistas, sejam escritores, uma
vez que o lirismo ou a imaginação se confunde com a literatura, excluindo do
corpo desta a prosa alheia à ficção; a maioria dos críticos literários, por sua
vez, se expressa através do ensaio, que é a principal, embora não a única,
forma de crítica moderna. O ensaio literário, aliás, inclui a dissertação sobre
teias de aranha (Hugo Hiriart, outro dos maiores, demonstrou isso), mas não é
dedicado apenas ao deleite taciturno e os ensaístas são também aqueles que
escrevem a história literária (como fiz recentemente com
La innovación
retrógrada, 1805-1863), pois o crítico atende, com o ensaio, à novidade e
renova a tradição.
É fácil voltar a elogiar Virgilio
ou José Lezama Lima. O difícil é criticar um contemporâneo com quem
esbarraremos no café ou na livraria. É mais difícil julgar, sobretudo se for
feito de forma desfavorável, o livro de um estreante, jovem ou não, poeta ou
prosador e, se assim acreditamos, criticá-lo publicamente. Somente aqueles que
não têm uma verdadeira vocação são intimidados por uma primeira crítica
negativa. Crítico de artes ou de letras é aquele que, diante do que acha desagradável,
abre os olhos e se obriga a ver ou a ler. Meu exemplo será sempre o de Jorge
Cuesta, fundador da crítica moderna no México, que a princípio, ante
Cristo
destruye su cruz (1943), de José Clemente Orozco, o repelia, e por fim o
compreendeu.
Os escritores costumam nos ofender
excluindo-nos dos seus grêmios quando fazemos primordialmente crítica
literária. Se privássemos esta taxonomia, não seríamos aqueles que fazem
não-ficção,
para usar o método crítico da Barnes & Noble. Desde Dionísio de
Halicarnasso a Cioran e quase todos os ensaístas que não tenham incorrido na
fraqueza de escrever pelo menos um romance, um punhado de contos ou alguns
poemas, ficariam excluídos. Nem todos os críticos são grandes escritores,
concluiu William Empson, mas somos todos escritores.
Investiguei de onde vem a ideia de
que quem se abstém de escrever poesia, romances ou peças de teatro não é um
criador, mas um frustrado, duplamente frustrado (um exibicionista, suponho) se
também trabalha como crítico literário. A genealogia da questão, nos tempos
modernos, parece remontar ao teatro inglês do século XVIII, quando o crítico,
apaixonado pelas companhias de atores, atuou como César no Coliseu, decretando
o fracasso de um indefeso dramaturgo cuja obra
trovejava, fazendo com
que o público interrompesse, com estrépito, a encenação. Essa má fama, vinda do
teatro, passou para a literatura com o suposto assassinato do poeta John Keats,
que teria morrido de tristeza porque em 1817 críticos conservadores rasgaram um
de seus últimos livros. Isso ocorreu num momento em que as revistas literárias
se espalhavam por todo o planeta. Shelley e Lord Byron — bardos radicais que
sobreviveram brevemente ao seu jovem protegido — propagaram a lenda desse
“assassinato crítico”.
Mais tarde, o casamento entre
Sainte-Beuve e Adéle Hugo, esposa do gigantesco poeta de quem o crítico era
amigo íntimo e propagandista, criou outra lenda: a do crítico que tenta roubar —
na cama do gênio e através de sua esposa — o estro poético de que a natureza o
privou. Uma ideia que Nietzsche sintetiza maliciosamente contra Sainte-Beuve em
alguns de seus fragmentos e aforismos. Desde então é comum ouvir que os
críticos literários são como eunucos: sabemos como fazer amor porque vimos como
se pratica nas coxias, mas, como somos emasculados, não podemos, fazê-lo.
Contra Sainte-Beuve recairá não
apenas o filósofo alemão, profeta do século XX e corsário do relativismo, mas
ninguém menos que Marcel Proust, o romancista encantado de
À procura
tempo perdido, que o leu de má fé. Num livro póstumo que o
francês não preparou para impressão (
Contra Sainte-Beuve, 1954), e no
qual foram recolhidas sem a devida precaução filológica algumas obras inéditas
da sua juventude, o romancista acusa o crítico oitocentista de se concentrar
apenas nas personalidades dos autores e não em sua obra. Isso convertia Sainte-Beuve
— se for verdade, porque não o é — no pai da Escola do Ressentimento, como a
batizou Harold Bloom, composta por professores muito preocupados, eles
próprios, em quem escreve os textos e como estes refletem a real ou suposta verdadeira
marginalização de seus autores.
A lenda do crítico frustrado me
convém porque expõe uma das duas naturezas que constituem o nosso espírito.
Gostamos de nos passar por bandidos, eunucos ou vermes. Conceber a crítica como
uma patologia é útil para equilibrar sua outra natureza, o caráter judiciativo
(julgar e diferenciar a literatura boa da má) e o caráter apostólico (conduzir
o “rebanho” de leitores para algum ideal estético) que a coloca como aspirante à
regência do gosto literário de cada época. A primeira natureza, segundo
Leopoldo Alas “Clarín”, crítico de curta duração e autor de
La regenta,
impede o império apostólico da segunda. Quis dizer o gênio zamorano que o
crítico sempre está sob suspeita, especialmente nas duas margens da nossa
linguagem, como um pretenso apóstolo da beleza, enquanto ele próprio é uma
criatura feia e hedionda.
Se se considera o crítico o juiz
de literatura (ou seu advogado, de acordo com o crítico judeu alemão Marcel
Reich Ranicki, cujo assassinato, aliás, foi ficcionalizado por uma de suas recorrentes
vítimas críticas, Martin Walser), espera-se dele que não seja o que julga. Não
se deve escrever poemas ou romances, proibição que nós críticos aceitamos
tacitamente, embora Sainte-Beuve, Edmund Wilson, William Empson ou Cyril
Connolly não tenham desistido de escrever poemas, contos e até romances, mas o
fizeram com a consciência pesada de estarem exercendo uma exceção e mostrando
uma fraqueza. Alguns, entre eles Roland Barthes, brincaram com gêneros
híbridos, especialmente memórias ou autobiografias, úteis como pontes para a
ficção. Outros, como D. S. Mirski, príncipe e soviético e, portanto, mártir,
respeitaram a restrição e não cometeram desses pecados, nem mesmo na juventude.
Eu cometi tal pecado com um breve romance (
William pescador) em 1997.
No mundo anglo-saxão, durante as
décadas vitorianas, sonhou-se com um ideal puritano do crítico perfeito (penso
num esquecido como George Saintsbury, que o encarnou), aposentado no campo ou
no campus, sem conhecer os autores e não tendo com eles outro tratamento que
não fosse a sua leitura. O seu contato com o mundo limitava-se ao carteiro e
se, por acaso, tivesse sido colega de jardim de infância de um romancista ou
primo em segundo grau de um poeta, tinha de se abster de escrever sobre eles. A
promiscuidade política e erótica das repúblicas literárias latinas, forjadas à
imagem e semelhança da “turma da literatura francesa”, como a chamava Jorge
Luis Borges, dificultou em Madri, Buenos Aires, Bogotá ou Cidade do México,
importar esse isolamento. Os críticos literários foram contaminados pela
endogamia e pela militância. E por causa da política cultural, cujo imã (o
dinheiro público) provocam-se mais com querelas e insultos do que com os
próprios livros ou as ideologias conflitantes.
Na própria Inglaterra, este modelo
foi logo superado pelo grupo de Bloomsbury, para o qual o mundo moderno havia
começado em algum momento de fevereiro de 1910, após o escândalo causado por
Virginia Woolf. O moderno trouxe entre suas antiguidades que romancistas e
poetas continuassem a fazer crítica literária, na tradição de Diderot, Balzac,
Dostoiévski, Clarín, Emilia Pardo Bazán. Ou seja, para todos os efeitos, não
apenas Woolf, mas John Updike, André Gide, Mario Vargas Llosa, Ezra Pound, T.
S. Eliot, Borges, Thomas Mann, Mary McCarthy, J. M. Coetzee e García Ponce
foram, além de romancistas e poetas, críticos literários mais frequentes do que
ocasionais, como é o caso, volto à casa mexicana, de Octavio Paz, Antonio Alatorre,
Ramón Xirau, Gabriel Zaid ou José Emilio Pacheco. Seria mais interessante fazer
uma lista de prosadores ou poetas que nunca se dedicaram à crítica literária.
O papel do crítico literário
profissional foi assim limitado, forçado a competir com os “modernistas” por um
lado e com os professores acadêmicos por outro. Os “críticos literários puros” —
que apenas escrevem resenhas, prólogos e ensaios ou dão palestras sobre
literatura — são uma raridade e nem mesmo Antonio Castro Leal, que se aproxima
dessa figura e foi meu antecessor como crítico no El Colegio Nacional, o
encarnou plenamente.
Embora às vezes alguns “críticos
puros” ministrassem aulas — Sainte-Beuve e Wilson o faziam —, foi somente por
volta da Segunda Guerra Mundial que eles começaram a competir com
universitários em tempo integral ao prepararem suas aulas, fazerem trabalhos de
filologia e ainda compartilharem, vulgarizadas ou não, com seu público através
de jornais e revistas. Foram e são os E. R. Curtius, os George Steiner, os
Harold Bloom. Mas a que lado, por exemplo, pertencia um Lionel Trilling: à
Universidade de Columbia ou ao público que ele orientava livremente com seus
livros e artigos? Aos dois, certamente: talvez Trilling tenha sido o último dos
grandes críticos — com o francês Albert Thibaudet, falecido em 1936 — a fazer
na revista literária o mesmo que na universidade, sem que ninguém pensasse em questionar
a naturalidade do seu trabalho nas duas frentes.
Quando chegaram os anos sessenta
do século passado, as revistas habituais da velha crítica, como
La Nouvelle
Revue Française,
Sur,
Horizon,
Partisan Review e
outras feitas pelos intelectuais de Nova York, a
Revista de Occidente,
El
Hijo Pródigo e sua sucessão mexicana, foram desaparecendo. Diante desse
fenômeno, nasceu há pouco mais de cinquenta anos
The New York Review of
Books, que conseguiu fazer o que os franceses não fizeram: recrutar
professores e ensiná-los a escrever bem para o público interessado em literatura.
No México, a antiga tradição pôde continuar, renovada, graças à
Plural e
à
Vuelta e outras publicações de diferente natureza ideológica.
O crítico literário, então, é um
tipo de escritor submetido a quase todas as demandas artísticas e intelectuais
sofridas pelos poetas e romancistas, às quais se acrescenta uma peculiaridade
importante: o crítico exerce juízo sobre as obras dos demais escritores utilizando-se
sua própria linguagem. Ao contrário do crítico de pintura (ou de dança ou de
cinema), ele utiliza um instrumento idêntico (as palavras, a literatura) como
material para a sua crítica. Os críticos de pintura, dança ou cinema, claro,
também escrevem, mas não partilham dessa analogia instrumental entre a sua
crítica e a criação.
Além disso, não acredito que a crítica
e a criação sejam equivalentes. Primeiro é a criação. Quando jovem optei por
essa igualdade até que Tomás Segovia, com
Poética y profética, me
desiludiu: primeiro há a criação e depois a crítica. O resto é questão de
galinheiro onde a galinha e o ovo mantêm o seu eterno julgamento de origem.
Albert Béguin ou Mario Praz foram, como escritores, muito superiores a muitos
dos primeiros ou últimos românticos que comentaram, mas sem as obras de Novalis
ou D’Annunzio as suas não existiriam. Isto não significa que os críticos não
possam ser estilistas formidáveis, pensadores ousados
ou te
óricos fant
asistas, desde que tenham em mente que devem predicar com um
duplo exemplo: escrever melhor do que aqueles insultados e cumprir a sua obriga
ção, mesmo nas mínimas coisas, o seu trabalho é tocar o terreno
da criação com rigor hist
órico e filol
ógico.
E se a da crítica não é outra
linguagem, é, evidentemente, outra natureza: o crítico, para começar, modula a
sua vaidade de diferentes maneiras e não costuma pedir aos seus amigos
romancistas e poetas que escrevam sobre ele, mesmo que deseje as mesmas glórias
do resto do grêmio e padeça de misérias semelhantes. A vaidade do crítico
alimenta-se da autoridade que os seus leitores lhe conferem.
Volto ao meu breve panorama
histórico: o estrago estava feito e o velho crítico, por volta de 1965, estava
condenado. Um maravilhoso crítico literário formado na academia como Frank
Kermode via o velho Connolly como um não muito rico
amateur desprezível
por continuar trabalhando na imprensa sem querer se aposentar. Mas ainda
faltava o golpe: a chamada “virada linguística” e seus estruturalismos fizeram
do professor crítico literário um bem-sucedido fabricante de teorias. Este
“especialista” com ares de grande “cientista” postulou desconstruções que
excluíam, primeiro da universidade e depois da crítica, um humanismo rotulado
como antropocêntrico (que insulto) e “generalista”.
Grande protagonista das antiquadas
humanidades, o crítico literário — tão popular quanto o dinamarquês Georg
Brandes, que esteve perto de receber o Prêmio Nobel de Literatura antes da
Grande Guerra — foi condenado. Na melhor das hipóteses, seu destino foi se
ofuscar na “imprensa burguesa”, comentando livros para a classe média, alheio
aos arcanos da virada linguística. Que o jargão da academia seja, na maioria
dos casos, abstruso e complicado tem a sua razão: quanto maiores e
indecifráveis
forem os
mistérios revelados de uma nova religião, maior será a dedicação dos
catecúmenos na descodificação dos seus códigos e ainda mais fervorosa sua
ansiedade iniciática.
A belicosa “teoria literária” é
ainda uma curiosa engenharia que, fabricada a partir das ciências sociais,
reivindica a total autonomia do texto, ao gosto dos
logocidas ignorantes
para quem “tudo é texto”: é a mesma coisa um conto de Wilde, um anúncio de
máquinas de lavar, um soneto de Ronsard, uma palavra cruzada do
Times
Literary Supplement ou um romance de Severo Sarduy. O demônio da teoria,
como diria Antoine Compagnon, é mutante e polimorfo, mas a ferida infligida por
Jacques Derrida continua a inflamar: a literatura é um gênero discursivo como
qualquer outro, se diz. Jogar a velha crítica literária na lata de lixo da
história junto com a história literária, “sua serva”, não queria dizer que, com
todos os seus abusos universalmente denunciados, algumas das descobertas
daqueles teóricos — que faziam malabarismos com as ciências duras — não tenham
sido muito estimulantes para o conhecimento da literatura, como sabe o bom
leitor de Claude Lévi-Strauss ou de Michel Foucault. Um exemplo disso, como já
se sabe, é Barthes, que depois de ter assassinado o Autor, com letra maiúscula,
fugia das teorias, das escolas e dos seminários que fundara quando foi
atropelado em Paris, em 1980.
O império universitário da teoria
literária fez com que os afinados à gramatologia acabassem pensando o mesmo que
os jornalistas mais grosseiros: que praticar crítica literária é fazer resenhas
de livros, os restos do jornalismo do qual a vítima só se liberta ao
“promover-se” a poeta, romancista, comentarista político. Muitos foram
condenados a esse destino cruel das personagens de Guy de Maupassant e houve
críticos que se deram (e se dão) importância atribuir estrelas aos romances
como se fossem filmes de sucesso. Claro que todos os críticos têm leitores,
curiosos inoportunos, que nos perguntam o que devem ler entre as novidades
editoriais (nem sempre representativas da literatura contemporânea e muitas
vezes fugazes) e a quem devemos ignorar com franqueza. No crítico literário
(por sua segunda natureza) há sempre, queiramos ou não, um pedagogo.
Mas acreditar que a essência da
crítica é fazer resenhas é limitar o crítico literário à mais básica de suas
funções: a de decidir se um livro é bom, ruim ou mediano, destruindo tudo o que
há de cultura humanista, de percepção estética e profundidade histórica num perfil
de Sainte-Beuve, num convite à leitura de Woolf, numa breve resenha de Borges, num
comentário quase teológico de Eliot ou num ensaio de Steiner, para dar cinco
exemplos de críticos literários: “a pura”, aquela crítica que também é autora
de romances, comentarista filosófico do conto (para chamar de alguma forma o
argentino), o grande poeta do século XX ou alguém que lecionou nas principais
universidades do Ocidente. Li resenhas de Borges ou Zadie Smith, escritora
britânica nascida em 1975, que são curtas e magistrais obras de crítica
literária. Repito, deontologicamente: a resenha é a expressão mínima na
extensão de uma arte maior, a crítica. Esta se manifesta preferencialmente
através do ensaio polimorfo, embora o tenha feito através do tratado histórico,
da fenomenologia filosófica, da dissertação acadêmica, da poesia (Alexander
Pope), do aforismo (os casos são numerosos) e de um longo etc. É talvez a mais
bela das artes, como disse Logan Pearsall Smith, porque é aquela em que
distinguir o trigo do joio tem mais mérito.
Se a grande maioria daqueles que
me educaram através da sua leitura são hoje professores esquecidos como Bloom,
Steiner ou Denis Donoghue, como poderia eu ser antiacadêmico? O fato de estes,
meus professores a distância, serem rejeitados como patriarcais e
conservadores, me diz que estou no caminho certo. Tenho sido um oponente da
“virada linguística” e de suas teorias literárias. Estive assim graças a Paz e
ao brasileiro José Guilherme Merquior, outro dos meus guias, que relacionou a
seita pós-estruturalista com o antiliberalismo culpado predominante no
“proletariado intelectual” dos nossos dias, como diriam os populistas russos.
Estas teorias e o seu corpo acadêmico engrossaram as filas da Escola do
Ressentimento, pronta a dinamitar o cânone humanista, uma aventura já
abandonada por alguns desses radicais, como contado na
Crítica da Crítica
(1984) de Tzvetan Todorov, um que foi convencido a refazer o seu caminho por
outro venerável professor, Paul Bénichou.
A maior parte dos grandes críticos
literários não desprezou a formação acadêmica e alguns deles exerceram o ensino
e a erudição de forma impecável, fugindo, o que é essencial, da servidão às
modas teóricas e ideológicas que lhes foram impostas quer pelos seus chefes de
departamento, quer pela boa e velha consciência dos seus alunos. Os maus
críticos literários acadêmicos tendem a ser aqueles que foram, sucessivamente,
existencialistas, marxistas de diversas obediências, estruturalistas de prequela
ou sequela, tendo mesmo atuado como psicanalistas, percorrendo todo o globo
terapêutico.
Curtius usou Karl Jaspers, mas não
se tornou um fantoche dos jasperianos da mesma forma que Erich Auerbach fez da
Mimesis
uma libertação pessoal, quase poética. Barthes, como sabemos, fugiu do
Frankenstein que inventou e até Menéndez Pelayo, há algum tempo, libertou-se do
neocatolicismo intemperante da sua juventude, ao descobrir que só um moderno
pode conceber-se numa chave tradicionalista. É preciso dizer, por sua vez, que
os críticos literários formados na escola livre de leitura e escrita de poesia
ou narrativa chegaram a conclusões luminosas semelhantes às dos professores
acadêmicos, por outro caminho — não sei se mais curto ou mais longo. Contudo,
nenhum dos críticos que procuro imitar permaneceu por muito tempo sob a
servidão de uma teologia, secular ou eclesiástica, de história sublunar ou de
vida após a morte. “A academia se abre com pauladas!”, gritava uma personagem
de Benito Pérez Galdós. Expressar livremente a sua opinião, correr riscos e
fazer da crítica um modo de vida acontece com ou sem a proteção estatal das letras:
mesmo nas piores condições, os verdadeiros escritores perseveram. A casa dos
mortos na Sibéria não silenciou Fiódor Dostoiévski e o mecenato dos castelos
por onde Rainer Maria Rilke divagava permitiu-lhe ser ainda mais poeta. Sou
liberal,
ma non troppo. Acredito, com Merquior, que o Estado,
bonapartista, deve cuidar das mãos do mercado quando este ataca ou manipula,
economicamente, as liberdades do criador. Da mesma forma, os críticos devem
vigiar a vulgaridade difundida pelo mercado, obcecado em vender romances,
geralmente péssimos livros, e fazer com que se esqueçam poetas que — da
modéstia com que vivem, publicam e sem outro meio de fazer circular os seus
livros a não ser suas próprias bagagens — nos lembram onde permanece a grande
literatura.
Por motivos acidentais, assim que
entrei na universidade, desisti e não tenho habilitações acadêmicas. Mas, não
sendo acadêmico, sou crítico literário profissional porque quando tinha vinte
anos, no México e em 1982, o mundo das revistas e suplementos literários
acolheu-me, na sua hospitalidade intelectual, na sua modéstia economia e na sua
riqueza intelectual. Este mundo criado por Paz e Fernando Benítez, então em
vigor, expandiu-se para
Proceso, onde, graças a David Huerta, comecei a
publicar regularmente resenhas, enquanto escrevia ensaios mais longos para
La
Gaceta do Fondo de Cultura Económica. Desde então, consegui ganhar a vida,
primeiro modestamente, depois de forma moderada, publicando artigos, dando
palestras e escrevendo livros.
Fui guiado, num primeiro momento, pelo
Os marginalizados (1975), de Hans Mayer, e seu ideário sobre a exclusão
de judeus, mulheres e homossexuais do Iluminismo, bem como do marxismo,
autodestrutivo por ser heterodoxo, como aprendi com Roger Bartra. Lamento que
um jovem de hoje, com as minhas ambições e sonhos daquela época, veja
desaparecerem os espaços onde poderia aprender a escrever com liberdade em meio
da generosidade e da exigência. Os nativos da rede terão que travar sua
batalha. Ofereço-me para acompanhá-los como uma rêmora presa à proa do seu
navio.
Embora evite a superstição de que
o tempo em que vivemos sempre detém o monopólio de todos os infortúnios, é
impossível negar que — embora o livro, eletrônico e tradicional, goze de boa
saúde — a nossa época não é boa para a crítica literária. Pelo menos, não como
foi durante o século e meio que acompanhou o nascimento e o desenvolvimento do
romantismo, graças ao fato de, em 1800, uma mulher, Madame de Staël, ter
esquecido as “belas letras” e começar a falar de “literatura”, fundando,
juntamente com o espírito romântico, a crítica moderna. Aquela literatura era o
paraíso perdido da crítica: um ensaio literário de Eliot, Ortega y Gasset, André
Gide, Simone de Beauvoir ou Paz, eram, de início, sempre matéria de expectativa
jornalística.
Mas num mundo onde parece
prevalecer a opinião expressa através da ditadura fugaz imposta pelas redes
sociais, as ideias confundem-se, mais do que nunca, com fatos e os autores são
despachados, fora de contexto, em 140 caracteres. Com algumas exceções, típicas
do humor aforístico, esta prática viola a reflexão calma e o silêncio profundo
exigidos pela leitura. Criticar não é difamar ou caluniar, mas argumentar detidamente
em público. Debater com a razão, em vez de atacar primeiro, seria aconselhável
para aqueles que se sentem pessoalmente ofendidos pelas opiniões dos outros. De
qualquer forma, precisamos de leis justas, céleres e eficazes, e não de pessoas
ofendidas que praticam a microagressão da
performance, como disse Martha
Nussbaum.
Se a era da literatura, com
aquelas horas dedicadas ao silêncio sobre as quais Marc Fumaroli meditou, já
acabou, vejamos o seu lado benigno nos tempos difíceis. Aqueles que “não têm
tempo para ler” irão embora e ficaremos sozinhos os
happy few. Ao
império desastroso da opinião fugaz, diante do tweet ou da recomendação via
YouTube — que seria fácil referir ao sempre lotado curral da vulgaridade —
soma-se a redução dos espaços que a crítica literária teve no jornalismo,
graças à moda das revistas e dos suplementos culturais. Sempre pensei que o
sonho de todo crítico literário é manter com os escritores uma relação
semelhante à que existiu entre Haydn e Mozart: tendo sido seu professor, o
primeiro — que lhe sobreviveu — morrerá como o mais talentoso de seus alunos.
No nosso tempo, a redução dos
espaços de crítica agrega-se às verdades alternativas e aos novos ofícios
sagrados da Inquisição, prontos para substituir os antigos. Os primeiros
permitem que as pessoas mintam conscientemente e se governem mentindo. Sempre
aconteceu, talvez, mas nunca aconteceu com um cinismo tão portentoso. Por sua
vez, o espírito inquisitorial provém hoje da liberdade da mesma maneira que
anteriormente dependia da opressão. É bom que assim seja. Mas entramos num
mundo de palavras proibidas, aquelas que os “ativistas da suscetibilidade”
consideram impronunciáveis. Estes noviços puritanos estabelecem um vínculo
perverso e uma consequência ilógica, insisto, entre ideias supostamente nocivas
e os costumes mais intoleráveis. As consequências foram totalmente
contraproducentes. Diante da identidade multiplicada, um louco que, em nome da
liberdade de expressão, a persegue e denigre, governa em Washington, tendo o
tweet como seu assessor.
1
Aqueles de nós que acreditam, à
moda antiga, que o gênio possui ambos os sexos do espírito, são acusados
de misoginia e de coisas ainda
piores. Numa literatura que se tornaria a literatura mexicana, fundada por uma
mulher, Sor Juana In
és de la Cruz, um cr
ítico liter
ário como eu n
ão poderia
deixar de ser um comentador recorrente das nossas escritoras. Desde a grande escritora
e dramaturga Elena Garro, apesar do seu comportamento odioso e documentado
durante o movimento estudantil de 1968, agora uma fonte cinquentenária das
nossas atuais liberdades públicas, até às mais jovem de nossas autoras, são
poucas escritoras de importância que tenham sido poupadas dos meus julgamentos,
certos ou errados. Fui educado por feministas e só nisso sou um orgulhoso filho
do meu século. Meu feminismo é clássico, baseado na igualdade e não na
diferença, em dias que não professar as ideias de Judith Butler se considera
uma violação da moral pública. No caminho para o inferno das verdades
alternativas estiveram, entre outras poções, as boas intenções — raça, gênero e
identidade — da Escola do Ressentimento.
Há quem me considere um crítico
literário excessivamente politizado ou um último refém das ideologias
professadas na juventude. É verdade, embora nisso eu não seja diferente, temo,
dos críticos literários dos quais me considero um prosélito. Se é verdade, como
disse Matthew Arnold, que a literatura é a crítica da vida, é natural que o
crítico faça da própria crítica uma extensão da literatura por outros meios, e
estes são os da história e da política. Intrusiva, toda crítica tem origem
comum no Iluminismo, enquanto Sainte-Beuve, Menéndez Pelayo e Wilson escreveram
obras polêmicas de ordem histórica e política:
Port-Royal (1840-1859),
Historia
de los heterodoxos españoles (1880-1882) e
Rumo à estação Finlândia
(1940).
Sainte-Beuve procurou num mosteiro
a espiritualidade jansenista que fez da França a fronteira onde se encontraram
a Reforma de há quinhentos anos e o Concílio de Trento, que a quis domesticar; dom
Marcelino se propôs a exorcizar os demônios que revelavam a Espanha negra do
Trono e do Altar, e o revelado acabou sendo ele; Wilson iniciou a ruptura com a
Revolução Russa, a senhora do século XX. Os três (poderia haver muitos outros
exemplos) fizeram, erráticos ou virtuosos, política a partir da crítica
literária porque viam na literatura o espelho capaz de deformar, como deseja a
arte, a nossa visão da sociedade. Menos que politizar as letras, fizeram da
literatura uma outra forma de interpretar o mundo, tendo renunciado a mudá-lo,
uma vez que o crítico é, em si, conservador, por mais vanguardista que seja o
seu credo estético ou revolucionário o seu momento histórico.
Seguindo essa linhagem, escrevi
uma biografia (
Vida de fray Servando) na qual o dominicano de Monterrey
nascido em 1763, um involuntário gênio da prosa, me permitiu investigar as
origens do meu país e a natureza original da nossa cultura — anacronicamente
barroca no século XVIII e desesperadamente romântica no século XIX —, coleada primeiro
do Iluminismo, depois da democracia, expulsados os jesuítas, que regressaram na
altura errada, há meio século, tendo-se transformado em guevaristas e rodeados,
em metade do continente, por janíçaros sanguinários e, no México onde cresci,
do autoritarismo dos nossos ditadores constitucionais. Como crítico literário,
ecoando Chateaubriand, sou casado com a linguagem, mas minha amante tem sido a
história. Penso no Necromante zombando do conto apostólico do Dr. Mier e no “estertor
de Trótski e seus gemidos / de javali”, lançado de Coyoacán, como lemos em
Pedra
de sol.
Sou apaixonado pela vida pública e
tomo partido, num século muito diferente do de Paz, meu exemplo, em que a
opinião política é solicitada aos intelectuais por rotina e não por
necessidade, ao contrário do que aconteceu durante o czarismo ou sob Stálin,
onde, na ausência de liberdade política, o crítico literário ou o romancista
simplesmente ocuparam o lugar do jornalista independente, tornando-se a
consciência da nação. No México, o politeísmo da Revolução Mexicana
libertou-nos do terror ideológico. Fico feliz que a pluralidade torne as minhas
opiniões, e as de tantos colegas da imprensa, pontos de vista muito menos
importantes do que eram, nas vésperas da nossa democracia, os de Paz, Carlos Fuentes,
Carlos Monsiváis ou Enrique Krauze, mas também não gostaria de viver numa
democracia sem intelectuais. Os clérigos, digo isto citando Julien Benda, outro
dos meus penates, precisamos da tentação de trair. Exigimos essa prova.
A literatura mexicana, juntamente
com a literatura chilena e argentina, está no centro da língua espanhola,
falada por milhões de pessoas e em expansão por todo o planeta. Ser crítico
literário neste país é um orgulho e uma responsabilidade porque a nossa é uma
das grandes literaturas contemporâneas que faz e desfaz, de Rubén Darío a
Roberto Bolaño, incluindo desfigurações, no banquete da civilização. Nossos
infortúnios políticos e econômicos, a desigualdade e o crime, são compensados
pela variedade e a riqueza do
espanhol na América, enquanto a península de onde vem a língua é apenas um
canto cativante da Europa: tanto que, para colocar ordem na sarabanda catalã,
Mario Vargas Llosa, romancista peruano, foi chamado para ajudá-los.
A obstinação com que temos sido
menosprezados no chamado cânone ocidental ou no gueto onde espanhóis e
portugueses estão confinados nas universidades anglo-americanas, apenas
desqualifica estes professores. Exagerando um pouco, a culpa não é nossa mas sim
do desastre da Armada Invencível em 1588 que combinou o declínio do Império
Espanhol com a prostração das suas letras, até então regentes do gosto de
Montaigne ou de Shakespeare e revividas há mais de um século pelo autor de
Prosas
profanas. Enquanto não compreenderem que os modernos Darío, César Vallejo,
Gabriela Mistral, os Machado (Antonio e Manuel), Juan Ramón Jiménez, Olga
Orozco, Gonzalo Rojas, Gerardo Deniz, Raúl Zurita, Ida Vitale, Eduardo Lizalde —
para falar apenas de poetas — são tão importantes para o século XX como os
Eliots e os Pounds, os Saint-John Perse ou os Duncans, pior para eles. Se os
nossos grandes escritores do século XIX são pós-coloniais, por que não o seriam
também Herman Melville ou Emily Dickinson? Aqueles que nos discriminam em nome
de um progressismo que apenas esconde a habitual comiseração serão assombrados
pelo estigma do provincianismo.
A tradição ibero-americana é
cosmopolita e a tradição central, embora não a única, da literatura mexicana
não é nacionalista, como disse Cuesta, a quem dediquei meu primeiro livreto (
Jorge
Cuesta y el demonio de la política, 1986). Na década de 1930, Cuesta lutou
sozinho contra a heresia americana que nos transforma numa excentricidade, mas
não numa negação da literatura ocidental, lutando contra o nacionalismo
revolucionário e atacando não o marxismo e as suas deformações acidentais ou
genéticas, mas contra o próprio Marx. Talvez ele não tenha feito isso com muita
sorte, mas ousou atirar no alvo mais importante. Juan Rulfo é tão mexicano
quanto escandinavo e o drama de Emma Bovary ocorreu na Normandia, mas poderia
ter acontecido em Querétaro. Esse refúgio de universalidade me foi dado por
Cuesta. Acredito numa literatura mundial dividida apenas pela riqueza das suas
línguas e digo isto pelo sofrimento que tem sido para mim recuperar a língua da
minha mãe.
Mas nós, críticos, somos poucos em
qualquer literatura e muito poucos no México: cobrir, além de todas as nossas letras,
toda a linguagem é, para nós, impossível. A atualidade é o nosso trabalho
diário; a tradição, quanto mais antiga melhor, a alegria suprema no final da
jornada. Se somos odiados por nossos julgamentos, eunucos e não-criadores, mas quando
fazemos dicionários (a segunda edição do meu
Diccionario crítico de la literatura
mexicana [1955-2011], que reúne todos os meus textos sobre nossos
escritores, apareceu em 2012) e antologias, para cumprirmos a nossa obrigação
de deixar como legado uma geografia para o trânsito das novas gerações, os
mesmos malfeitores por vezes denunciam a sua exclusão. Se houvesse mais
críticos trabalhando haveria hospitalidade para quase todos porque quando
apenas um escolhe inevitavelmente apaga um autor para dar o seu lugar a outro.
Os críticos literários leem muito,
escrevem muito e cometem muitos equívocos. Conhecemos bem o remorso. Assim que
nossa nota é publicada — ou às vezes antes, logo quando enviada por e-mail ao
editor — basta que um leitor melhor, mais familiar, mais astuto e perspicaz, se
aproxime de nós para nos fazer mudar de ideia. Já é tarde, é sempre tarde.
Reparar os danos causados
à vaidade liter
ária alheia, a
come
çar pela pr
ópria,
ferida pelo entorpecimento,
é uma tarefa
árdua, assim como retirar do
canonizável aqueles que
elevamos pelo excessivo fervor. Não me arrependo de ter dedicado minha vida ao
“trabalho alheio”, como chamam aqueles que se compadecem do crítico literário
por supostamente adiar a sua própria escrita de uma obra. Também não me
arrependo de citar, parafrasear e glosar aqueles que admiro, porque minha
pré-história é a do menino escolar. Graças a esses que mencionei, tenho meus
livros sobre autores de nossa língua, enquanto devo a frequência aos clássicos
do século XIX e modernos a
La sabiduría sin promesa. Vida y letras del siglo
XX (2009) e
Los decimonónicos (2012). Um crítico literário, apesar
de sua reputação maliciosa, às vezes autocultivada e às vezes difundida entre o
público, costuma ser essencialmente um entusiasta. Se alguém fosse condenado ao
pesadelo de ler as minhas centenas de textos, descobriria, talvez com surpresa,
que a grande maioria celebra autores e livros.
Continua a ser um paradoxo que
Sainte-Beuve, tendo cometido erros grosseiros com Honoré de Balzac, Gustave
Flaubert, Stendhal e Gérard de Nerval — e foi isso que Proust atribuiu
postumamente e notoriamente — tenha sido e continue a ser o pai da crítica
moderna. Talvez seja devido, como afirma Roberto Calasso contra Proust, que
Sainte-Beuve também tenha deixado algumas palavras enigmáticas sobre o mais
moderno de todos, o poeta Charles Baudelaire.
Diante do trabalho crítico em si,
apesar de termos errado tantas vezes, apostando na corrida em cavalos ganhadores
e perdermos, teremos o consolo de ter estado jogando duro todos os dias no hipódromo.
Continuarei a fazê-lo por amor à crítica, mas também porque a minha
responsabilidade para com os leitores aumenta à medida que o meu trabalho é
apreciado. Talvez vocês, benevolentes, quisessem me recompensar por essa
perseverança, por acreditar que mesmo em nossos tempos, monopolistas não só da
vida, mas do próprio tempo, o verdadeiro mistério a ser decifrado continua a
ser o da letra impressa.
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