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José Guilherme Merquior. Foto: Fernando Bueno. |
Se a literatura brasileira quando comparada com as da velha
Europa é vista como jovem, sem com isso desapontar em face das grandes
produções, a produção intelectual em nosso meio advoga para si a maturidade de
análises de grandes pensadores com significativas produções. São evidentes as
envergaduras intelectivas de vultosos intérpretes da nossa cultura, ideias,
aspectos históricos, filosóficos, literários, a exemplo de Gilberto Freyre,
Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Boris Fausto, Luiz Costa Lima,
entre muitos outros, que nada deixam a dever quando cotejados aos basilares
pensadores do século XX no mundo. Dessa gama de imponente representatividade,
destacamos José Guilherme Merquior. O propósito destas linhas é problematizar, por
meio de microideias, algumas questões diante do seu vigor intelectual, tendo
como norte a inquietação expressada por muitos: de que maneira podemos
reavaliar a obra e pensamento de José Guilherme Merquior hoje em dia? Alguns
pontos argumentativos aqui apresentados fazem parte de uma obra nossa a ser
lançada:
Esboço de um método crítico de José Guilherme Merquior.
Considerações iniciais
Apesar de todas as riquezas que dispomos no nosso território
como a heterogeneidade de povos, diversidades culturais, aspectos naturais
exuberantes e fornecedores de alimentos e belezas, o Brasil também possui no
DNA tristes marcas que mais nos atrasam do que qualificam, como a discriminação
e o preconceito. Tais questões, além de estarem enraizadas no nosso imaginário
coletivo e serem responsáveis por tantas atrocidades socioculturais, também
empobrecem o nosso campo das ideias. Não é nada incomum estabelecer estereótipos
no intuito de inferiorizar o outro diferente e ou desconhecido. Por exemplo, no
campo da cultura, quando se menciona o conceito regionalista, é como se se estabelecesse
um teor exótico e de delimitação cultural estreita à produção realizada. Como
se ela de repente fosse incompatível e inferior a qualquer outra obra radiada
pelos grandes centros econômicos do país. Estes ganham a legitimidade nacional,
enquanto outros, por serem de regiões norte e nordeste, como locais.
Essa prática além de corriqueira é empregada sem nenhum
constrangimento ou sinônimo de ignorância extrema. Como explicar em um país tão
miscigenado alguém reivindicar pureza racial e assim depreciar qualquer outro
que julga não ter a sua “pureza”?
Em
outra questão, como alguém pode estabelecer que a possível hegemonia de ideias fosse
a única a ser validada e qualquer outra diferente constitui uma aberração ou
até mesmo um grande equívoco? No nosso seio de ideias socio-histórico-culturais,
esses pontos parecem ter aprovação até por quem luta pelo direito da
diversidade e diferença. Parece que tem de ser a “minha diversidade e diferença”.
Entre os grandes que ficaram à margem com base neste item aparece José
Guilherme Merquior, que teve o seu pensamento pouco difundido na sua época, e
os prejuízos à nossa formação por conta disso foram significativos.
Nos últimos anos, tem acontecido, por meio de projeto
editorial ousado e muito bem-vindo, a edição da obra completa de José Guilherme
Merquior lançados por ele e até mesmo alguns inéditos como
Estruturalismo
como pensamento radical. Também são realizados debates temáticos sobre as
suas ideias como ocorreu em comemoração, se estivesse vivo, dos seus 80 anos.
Todavia, com alguma afobação, por querer desenvolver certa patente ou
autoridade maior sobre as ideias de Merquior, determinadas pessoas se lançam em
equívocos incompatíveis tanto ao seu pensamento, quanto às suas posturas
defendidas. Evidenciamos algumas, como as tentativas de criação de categorias
para um pensamento tão vasto, complexo e singular. Outra, seria certa tietagem às
suas formulações. Desenvolvem-se, portanto, concepções muito mais de exaltação às
ideias de José Guilherme do que um crivo crítico qualitativo acerca delas. Como
o próprio Merquior se via como um crítico anarquista cultural que, na
interpretação de João Cezar de Castro Rocha, deve ser visto como um pensador
com liberdade para pensar e assim não se fechar em linhas específicas, regadas
de doutrinas, dogmas e visões únicas sobre as coisas, com a disposição de
elaborar conhecimento com objetividade e profundidade como efetivas contribuições
não só no campo das ideias, mas socialmente também.
Em relação ao segundo ponto de exaltação sacrossanta e,
portanto, acrítica, de qualquer pensamento, em sua obra
As ideias e as formas,
nos evidencia Merquior: “Devemos, como Voltaire, defender até o fim o direito
dos outros à discordância — mas isso absolutamente não implica que se renuncie
ao direito de julgar as ideias conforme critérios rigorosos de observância
lógica e veracidade empírica”. Destarte, não podemos renunciar a essa condição
salutar de passar pelo crivo toda e qualquer ideia, mesmo daqueles autores que
mais nos sentimos influenciados, porque isso, além de significar um
amadurecimento intelectual e crítico, dinamiza, oxigena e potencializa o campo
das ideias e traz inúmeros benefícios a todos, inclusive à obra e ao autor em
discussão.
O ressignificado de se pensar e ser crítico em José
Guilherme Merquior
No mundo do império ilimitado de exposições por meios
conectados tais como as denominadas redes sociais, as plataformas de vídeos e
áudio, os textos disponibilizados na internet, ficou bem mais fácil manifestar
posicionamentos, ideias, opiniões e até mesmo mundos paralelos por intermédio
delas. Se antes tinha-se dificuldades em ter acesso a algum meio para
divulgação de algo, hoje, literalmente, a solução está na palma da mão. Diante
disso, quase todos se apressam em apregoar alguma coisa, seja relevante ou não,
fruto de conhecimento ou equívoco, realizada por uma leitura completa sobre
algo ou não. Para muitos, exercer o seu direito à livre manifestação é expor
todo ou qualquer conteúdo ou achismo sobre qualquer coisa. E daí muitos se
autointitularem como escritor, crítico literário, cientista social, analista
político e tantas outras designações. Mesmo sem um mínimo preparo ou repertório
de ideias à disposição. Todavia, ao nos depararmos com quem exerceu com
propriedade essa capacidade crítica e analítica, se percebe quão bizarros são muitos
“produtores de conteúdo”. Desta maneira, a crítica e as abordagens lançadas por
Merquior fazem bem a toda e qualquer mente que se queira saudável e preenchida
com algo do mais fino e significativo conhecimento.
Costuma-se mencionar entre aqueles que estudam de maneira
crítica e tentam dialogar com as ideias de Merquior que, ao contrário de muitos
autores proclamados pelos modismos midiáticos e defensores de ideias
“engajadas”, que fazem você se sentir inteligente pelo conteúdo propagado, ao
fim e ao cabo se percebe que no fundo nada de interessante trazem essas
interpretações. Com José Guilherme, diante dos seus textos, ele o faz sentir-se
bem, mesmo se percebendo, de maneira nítida, quão distante se está de uma bagagem
que realmente faz a diferença, pois ele o estimula e de certa forma aponta
caminhos para que você se realize e se forme verdadeiramente um intelectual e
não um pirotécnico enunciativo que no final não acrescenta nada. Temos então em
Merquior um legítimo crítico cultural, no sentido amplo e formativo do termo.
Assim o percebemos, como ele frisou ao mencionar o que vem a
ser um crítico cultural em
As ideias e as formas: “Um crítico cultural é
um ensaísta que questiona, de maneira original, no todo ou em parte, a cultura
em que vive. Um crítico cultural literário é alguém que o faz dentro do gênero
crítico, isto é, principalmente a propósito de obras consideradas literárias
pelo critério da imaginação ou da sua qualidade verbal”. Assim, todos aqueles
propensos a ser críticos de algo deveriam tomar essas ideias como linhas
orientadoras na sua condução, para o bem do conhecimento de modo geral.
Outro ponto norteador presente nos textos de José Guilherme,
que deve nos servir como parâmetro construtivo para adotar em nossos percursos,
se encontra inicialmente no firme propósito de clareza intelectual. Para
Merquior, todo pensamento deve ter como destino o meio social e ser voltado
para a qualificação dos indivíduos e não apenas para exaltação de egos.
Destinar-se à intelectualidade não é apartar-se da vida social, abrir mão de
algo, pelo contrário, é dedicar-se tenazmente, com a devida seriedade, e pôr à
prova teses e discussões que possam elevar o campo das ideias ao tempo em que
promove melhorias concretas no âmbito da sociedade. Para tais realizações,
passa-se pelo discernimento e seletividade da excelência de autores e obras com
desprovimento de qualquer juízo de valor ou de preceitos não justificáveis
racionalmente, em ações interativas entre os pensamentos que compõem as tradições
associadas com as produções na contemporaneidade, que possam elucidar gargalos
de incompreensões e desfazer equívocos promotores de injustiças. Com essa
postura, teremos o devido distanciamento das autorreferencialidades tão em voga
hoje em dia e dos neoconceitos fruto das abordagens de não-leitores, de não-intelectuais
que divulgam ideias errôneas, superficiais e até mesmo incompatíveis com a
realidade no percurso dos tempos, realizando deformações.
Nos textos de José Guilherme Merquior, promoveram-se diálogos
interessantes entre autores, obras e ideias, não com mero motivo retórico ou de
uma erudição tão somente informativa, mas de provocar bons debates e até mesmo
abalar o consenso por acomodação ou por aceitação acrítica de ideias ou ações
por nomes consagrados no meio intelectual e que de repente deslizaram em algum
aspecto, no entanto, não fora devidamente abordada a questão. Outro ponto
evidenciado por Merquior e que lhe produziu uma crítica voraz, mas que constitui
um método analítico, é buscar na verticalização do conhecimento a segurança
para se tratar de questões, sejam elas grandes ou pequenas. E, por essa
orientação que o conduzia na elaboração das suas ideias, José Guilherme não caía
em modismos teóricos do momento, buscava na tradição do pensamento substâncias
que pudessem sustentar e apresentar aspectos realmente significativos no campo
das ideias, nos aspectos socio-histórico-filosófico-culturais, com o que agora
se fazia presença. Dessa maneira, não só não aderia às pressas aos modismos
como também os denunciava diante da fragilidade do argumentativo e precário
terreno de conceituações. Exemplo disso fora o embate contra os tidos
pensadores pós-modernistas, como ele menciona em
As ideias e as formas,
que “a anarquia da exegese, o obscuro e monótono ritual da ‘desconstrução’
confere status filosófico ao triste resultado da inchação universitária”. A até
então propagada corrente filosófica revolucionária e que era nutrida da fácil
aceitação nos bancos acadêmicos, para ele faltava mais respaldo que
justificasse tamanha fascinação pelas formulações, a título de Jacques Derrida.
Com o seu agudo senso crítico consolidado pela qualidade da
sua escrita, pela exposição das suas ideias e pela forte presença dos maiores e
melhores autores da tradição e da contemporaneidade, fazia com que Merquior
fosse um severo adversário a toda e qualquer forma de pensamento compreendido
por ele como irracionalista. Entenda-se por esta forma de conceituação, como
mencionamos, interpretações baseadas em questões de gosto, impressões,
achismos, desejos, paixões desvinculadas de qualquer traço de congruência de
ideias ao longo das jornadas de pensamento. Além da condenação aos adeptos do
irracionalismo como virtude e prática intelectual, José Guilherme também irá se
opor ao que ele denominou na sua obra
Formalismo e tradição moderna de intelectuais
kitsch, pois estes “são intelectuais que abjuraram a fé nos valores da cultura”.
Portanto, tinham em sua formação o alheamento aos aspectos históricos e
culturais e provavelmente a elaboração de seus estudos era desvinculada das
contribuições sociais. Seriam apenas, então, formas discursivas em grupos, constituídas
em bolhas.
Microideias na produção crítica de Merquior
O gênero textual de
maior preferência e produção de José Guilherme Merquior fora o ensaio. A
maioria dos livros publicados era composta de textos previamente esboçados
diante de determinada temática que, mesmo lançados em um primeiro momento em
diversas revistas ou outros livros organizados por outros autores, estavam
todos estruturados para compor um único livro. Na forma ensaísta, percebemos
grande influência no desenvolvimento dos textos de autores como Montaigne,
Lukács e Walter Benjamin. A principal diferença entre as suas formas de
elaboração dos ensaios para estes mestres do ensaio era que ele não se permitia
divagações subjetivas. Todas as partes estavam devidamente articuladas com
argumentos bem definidos, com o propósito a ser alcançado no debate das ideias.
Mas, se por um lado esse aspecto que ele tomaria como
irracionalista o distanciava dos mentores do ensaio, por outro, o aproximava, tal
qual na concepção erasmiana, como podemos ilustrar na sua obra
Saudades do carnaval,
em que se percebem os direcionamentos de finalidade dos textos imbuídos de
ideias renascentistas, pautadas na formulação de uma educação Paideia, na qual
o conhecimento estava a serviço da constituição de um sujeito ético e
consciente, à semelhança de Montaigne, Lukács e Benjamin.
É notória a propagação realizada por Merquior na defesa do
racionalismo como base de interação entre as ideias. Todavia, esse racionalismo
não era uma projeção cartesiana ou moderna de entendimento do mundo por um viés
lógico e até mesmo matemático. A racionalidade era fonte, mas o potencial para o
desenvolvimento das análises, interpretações e posicionamentos críticos em
Merquior estava vinculado a intuições perceptivas muitos aguçadas e singulares.
Neste aspecto, o filólogo alemão Eric Auerbach parece ser um dos grandes
pensadores a influenciar o desenvolvimento da exegese em Merquior. Destarte, a
observância de vinculação de Merquior com Eric Auerbach em atenção aos textos e,
em especial, aos literários, tendo esse ponto de intuição atrelando-se à razão,
que produz um significativo aprofundamento no tento das ideias, das presenças de
sutilezas disponibilizadas nas diversas camadas da escrita que, ao olhar atento
em se captar ao não tão evidente, mas existente, não de maneira especulativa ou
vidente, e sim, substancialmente, que só ao crítico diferenciado revela-se.
Assim como Auerbach, Merquior se debruça pelos aparentes detalhes
insignificantes, todavia, essenciais para sagaz interpretação elucidativa. Em
Merquior, isso acontece em todos os textos, desde a sua discussão linguística,
histórica, conceitual, entendimentos pacificados, em que ele destrinça cada
elemento e vê possíveis elos, equívocos, contribuições e condenações.
Portanto, diante dessas microideias esboçadas e retomando a
pergunta inicial, de “como reavaliar a obra e pensamento de José Guilherme
Merquior hoje em dia”, teremos como resposta que a formação intelectual e
humana depende sobremaneira de influências e mediações de pensadores
significativos como Merquior, principalmente, em um mundo tão relativista e
irracionalista como o de hoje.
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