O Neorregionalismo na Literatura Brasileira Contemporânea

Por Herasmo Braga

John Graz. As baianas. Óleo sobre tela, 1930.


 
Superando as discussões que desqualificam as produções literárias tidas como regionalistas, adentramos no universo contemporâneo, sob a presença do Neorregionalismo Literário Brasileiro. Destacamos, para maior aprofundamento da questão, a sugestão da obra Neorregionalismo literário: análise de uma nova tendência na literatura brasileira, de nossa autoria. Nela, analisamos como se dá a configuração da estética literária nas produções correntes, dos anos 1960 aos dias atuais.
 
Em linhas gerais, a estética neorregionalista apresenta, entre as suas caraterísticas, aspectos como autonomia das personagens femininas. No tocante ao espaço, este se desenvolve nas narrativas, nas saídas das zonas rurais para os espaços urbanos, como também, não mais constitui apenas um elemento de ornamentação para situar as personagens num determinado lugar; o espaço acaba atuando na subjetividade das personagens e até mesmo como personagens, sendo, portanto, copartícipe dos enredos. Adita-se a presença do teor memorialista no desenvolvimento das tramas. Além da presença marcante e significativa dos traços culturais regionalistas, que em nada diminuem a qualidade estética da obra e menos ainda dificulta ou isola a produção ficcional, retirando os seus caracteres universais, pois as questões humanas, como seus dilemas, aflições, anseios, problematizações, não estão particularizadas sob a égide de uma determinada essência local.
 
Não é apenas em análises de cunho sociológico ou em análises literárias ligadas à sociologia que temos a presença significativa dos aspectos sociais e históricos, como nos esclarece uma das famosas ideias do crítico Wilson Martins, em A crítica literária no Brasil, ao abordar um dos primeiros críticos, Sílvio Romero, por ele denominado de linhagem crítica sociológica, escreve que: “nem a literatura é apenas um produto da sociedade [...], nem a sociedade está ausente das fontes da criação literária”. Essa ideia nos importa por reconhecermos nas obras neorregionalistas o constante diálogo entre Literatura e Sociedade, em seus textos e contextos sociais, históricos, econômicos, políticos, sociais e culturais. Assim como ocorrera com as produções regionalistas oriundas das décadas do romance iniciado, segundo Alfredo Bosi, nos anos a partir de 1930, as produções contemporâneas neorregionalistas não são indiferentes aos entornos da realidade que servem como base para elaboração das suas criações ficcionais.
 
Destarte, a autonomia das personagens femininas que se apresentam nas obras reflete o reconhecimento do protagonismo das mulheres ao longo da história, e só nos últimos anos tem ganhado mais espaço. Com isso, independente de os autores ser homem ou mulher, o protagonismo feminino exercido na autonomia das suas vontades, dos seus desejos, mesmo em ambientes ainda sob esteio de marcas patriarcais e de ambientes machistas, as mulheres conseguem praticar com habilidade, mediação, quando isso não se faz acontecer com o uso impositivo das suas manifestações, sem estar atreladas a qualquer aspiração de ordem tradicional, que as condicionam a um lugar de figurante na vida social. Em suma, o autor que propor a presença de uma personagem feminina subordinada aos anseios e ordens masculinas estará possivelmente produzindo algo anacrônico não só com a realidade de luta das mulheres marcada por conquistas de muitas que virão também até mesmo no âmbito literário.
 
Outra característica nas ficções neorregionalistas que constitui até certa inovação não só na técnica narrativa, mas de elaboração da prosa, consiste na projeção de novas concepções e linhas interpretativas em torno dos espaços. Há muito, a ideia determinista do espaço sobre as personagens foi abolida e ele ganhou relevância por estar mais relacionado às personagens e constituindo até mesmo mundos internos nelas. Assim, essa problematização do espaço possibilita novas leituras analíticas das obras, como também, uma dinamicidade na narrativa, que influencia e estabelece sentimentos como de lembrança, conflito e em algumas diegeses, como expressamos anteriormente, até mesmo como personagens. Neste último caso, podemos ilustrar com a obra Pacamão, de Assis Brasil, em que a casa habitada pelas personagens, de arquitetura aristocrática, acaba atuando entre elas, inclusive determinando quem pode habitá-la ou não.
 
No caso do espaço-lembrança, podemos tomar as obras Coivara da memória de Francisco Dantas ou a sua mais recente, Uma jornada como tantas outras, em que o espaço que habita o imaginário das personagens o referencia diante dos novos mundos, sejam eles lugares simples ou cidades cosmopolitas. Podemos acrescentar inúmeras outras sob esta percepção, como a cidade de Manaus, que habita o imaginário do personagem Mundo de Cinzas do Norte, de Milton Hatoum, e é refletida nas telas que ele produz, reproduzindo todo esse espaço narrativo dentro de si, tornando as suas pinturas singulares e marcantes a ponto de serem sucesso de público e de crítica no romance. Importante lembrar uma ideia bem elucidativa elaborada por Yi-Fu Tuan, em Espaço e lugar: perspectiva da experiência, quando, em linhas gerais, nos diz que lugar é um ponto físico e geográfico, enquanto espaço é o lugar que, diante da nossa interatividade com ele, ou seja, da construção e desenvolvimento de narrativas nossas e de outrem, passa a nos significar algo e, portanto, estará marcado na nossa subjetividade. Dessa forma, as personagens, não apenas habitam um espaço, mas o espaço as habita.
 
Essa dinamicidade dos espaços nas obras neorregionalistas constitui uma das suas características e inovações porque diante do relacionamento estabelecido com o espaço, teremos a presença de tensões que podem provocar, como mencionamos, lembranças, mas, por outro lado, quando se rejeita esse espaço que habita internamente, poderá levar as personagens a conflitos que refletirão nas suas conduções. Há também outra obra neorregionalista que podemos citar aqui: Galileia, de Ronaldo Correia de Brito. Nela, Adonias, criado na fazenda Galileia, do seu avô Caetano, quando adolescente, se muda para Recife e depois para Londres. Anos mais tarde, retorna para, talvez, o último aniversário do avô ao lado dos primos Davi e Ismael. No caminho em direção à fazenda e durante a sua permanência nela, inúmeras tensões são desenvolvidas através de explicações de acontecimentos passados e que de certa forma marcaram a vida da família, discordância de ideias e concepções e outros conflitos nas relações entre não só Adonias com os demais, como também entre as outras personagens. Todavia, o ponto marcante reside na relação conflitiva desenvolvida entre o protagonista e o espaço. O tempo todo ele procura invalidar essa identificação, ridicularizando o espaço rural da fazenda, da cultura regionalista, mas ao tempo em que almeja esta desvinculação, mais inquietações internas são acentuadas e maior identificação interna com o espaço regional. A narrativa se torna tão apreensiva neste ponto que até uma frase que de certa forma descaracteriza a qualidade da obra é imposta: “— Não há mais nada fora de moda do que um pensador regionalista”. Afinal, esta frase, desencaixada no romance, advém dos pensamentos de Adonias no seu conflito com a estirpe da família, com o espaço, ou do narrador, ou do próprio autor? Fica a provocação.
 
Dessa forma, a autonomia das personagens femininas, o espaço problematizado e marcado por dinamicidade nos enredos, sendo personagem copartícipe, como marcador de tensões, memórias e narrativas individuais das personagens, temos a existência dos traços memorialistas marcada pela presença significativa dos aspectos regionais, que não limitam a abordagem literária, nem desqualificam a sua qualidade estética, todavia, contribuem para valorização e singularidade dessas obras frente a uma cultura de massa cada vez mais global, homogênea e artificial, voltada apenas para o consumo de produtos. A presença das características regionais, não no sentido localista, essencialista, mas, sobretudo, de identificação dos sujeitos através de uma memória afetiva desenvolvida ao longo das narrativas, servirá como parâmetro de construção de sentido, tornando a narrativa crível, além de realizar algo inerente aos sujeitos escritores, que alguns denominam de “escrevivência”, que seria o resultado da presença das experiências dos autores enquanto indivíduos histórico-socioculturais, também como grandes leitores, que promovem com as suas produções o compartilhamento de experiências. Esses autores fogem de qualquer estigma limitador e suas obras ganham contornos universais, porque lidam com sentimentos, inquietações, dilemas de todo e qualquer sujeito no mundo, de toda e qualquer narrativa da literatura de qualquer nação ou tempo, de sujeitos e personagens, do mais simples ao mais complexo.
 
Assim, os aspectos neorregionalistas encontrados em autores aqui referidos, ou em outros nomes como Raimundo Carrero, Maria Valéria Rezende, Permínio Ásfora ou Itamar Vieira Júnior em nada desqualificam as suas obras.
 
 

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