|
Lazarilho de Tormes. Capa da edição de Medina del Campo de 1554 (detalhe) |
Lazarilho de Tormes é mais que um clássico da
literatura, é um símbolo e uma referência cultural de Espanha. Sua história foi
levada ao cinema e à televisão, ao rádio e aos podcasts, aos palcos de teatro,
música e dança, incluindo o
break dance, às pinturas de pintores como o
próprio Goya, aparece em todos os níveis de ensino e foi publicado em livros
adaptados para crianças e para quem está aprendendo espanhol como língua
estrangeira. O que há na história de Lazarilho de Tormes que o tornou tão
importante na cultura e na sociedade?
Possui, antes de tudo, uma qualidade e complexidade
literária que faz com que especialistas na área continuem dia após dia falando
sobre o livrinho em monografias científicas, revistas de pesquisa, teses de
doutorado, seminários universitários e conferências acadêmicas ao redor do
mundo. Em segundo lugar, tem a virtude de ser escrito com clareza, o que
juntamente com a sua graça e frescura a tornam uma história que resiste à
passagem do tempo. Por fim, o personagem do pícaro, encarnado naquele que sem
recursos usa o seu engenho para ganhar o pão, é muito reconhecido na sociedade
espanhola. Coincide com o que muitos vivenciaram durante o longo período de
ditadura que mergulhou o país na miséria enquanto o restante do mundo passava
por um contexto de modernização; e também coincide com o estereótipo do espanhol
em grande parte do mundo, especialmente em países como França ou Alemanha,
lugares aonde muitos espanhóis chegaram com pouco e se contentaram com
trabalhos braçais, como fizeram os pícaros do passado. De certa forma, as
sucessivas crises dos últimos anos e os seus consequentes fluxos migratórios
fizeram com que esta situação se repetisse.
Agora, o que tudo isso tem a ver com o texto original de
Lazarilho
de Tormes? Provavelmente menos do que pensamos. A obra é muito publicada e
muito discutida, mas, na realidade, pouco se sabe a seu respeito. Sem ir mais
longe, não se conhece o autor, nem a data ou local exato de publicação. E há
interpretações do texto para todos os gostos, desde quem vê uma história real
por trás da ficção até quem acredita que a vida de Lazarilho nada mais é do que
um símbolo da própria arte de escrever. Existem, no entanto, algumas certezas
em meio a toda a imprecisão e variedades de leitura. O paradoxal aqui é que
estas certezas são menos conhecidas e não se enquadram bem na imagem mais
difundida de Lazarilho. Sua história é, basicamente, a de um homem que se
orgulha porque sua esposa o trai. É por isso que ele escreve uma carta na qual
conta as façanhas de sua vida, para justificar porque leva chifre com
satisfação. Lázaro nasceu pobre numa família marginal, o seu pai era mouro e
ladrão, a sua mãe era prostituta. Não restou nada melhor para ele do que servir
os clérigos, os cegos e os nobres que não o tiraram da pobreza. Como não
aceitar o casamento com uma mulher que dorme com um arcipreste, se em troca do
acordo o desgraçado ganha comida e moradia? Essa é a principal questão que se
coloca ao leitor de
Lazarilho, pelo menos na sua versão original.
Essa versão original, porém, permaneceu oculta por muito
tempo. Foi censurada pela Inquisição, que só permitiu, depois de muitos anos,
uma versão que, por ter sido mutilada, ficou conhecida como
Lazarilho castigado.
Ficou expurgado, por exemplo, o capítulo em que Lázaro se encontrava com um
frade que, além de “outras coisinhas” que não se querem contar, mantinha
relações vergonhosas com diversas mulheres. Este
Lazarilho castigado
foi o que, décadas depois, começou a ser relacionado com outros textos
pertencentes à chamada literatura picaresca. A relação do Lazarilho original
com o gênero picaresco, portanto, não deve ser facilmente tomada como certa.
Mais de meio século se passou entre eles, tempo suficiente para que os gostos
literários e a corte dos reis, entre outras coisas, se transformassem. O autor
de
Lazarilho já teria morrido quando o seu texto, metamorfoseado pelo
Santo Ofício, começou subitamente a ganhar vida numa corte, a de Madri, muito
diferente daquela de Toledo que conhecera. Em suma, a novela que é conhecida
como palavra de ordem da literatura picaresca não contém a palavra pícaro em
lugar nenhum e pode muito bem ser considerado estranho a esse tipo literário.
É claro que durante todo esse tempo os chifres continuaram a
ser exibidos nas ruas, especialmente as da corte real, como nos lembram os
poetas da época. O argumento principal de
Lazarilho manteve, portanto, a
sua vigência e foi inteiramente coerente com a Espanha do Século de Ouro, que
Quevedo chamou de “Século do Chifre”. Considere que, naquela época, arrastar
chifres era uma profissão e tanto e havia a figura do “corno paciente”,
perseguido pelas autoridades tal como no texto de
Lazarilho. Então,
Lázaro cometia um delito ao permitir o adultério de sua esposa? Sim, mas ele já
conseguiu isso em sua carta, que constitui o texto da novela, para culpar o
arcipreste e fazer-se figurar como vítima. Essa é a arte de escrever, de
defender um argumento e convencer o leitor. De fato, para escapar às
perseguições e continuar a usufruir dos benefícios derivados do consentimento, existia
na Espanha um texto legal conhecido como “carta de perdão dos cornos”, que
aparentemente não acarretava consequências para a mulher.
Lazarilho de
Tormes pode assim ser entendido como uma versão literária dessa fórmula
jurídica.
Por outro lado, a imagem de um Lázaro que consente a
infidelidade de sua esposa também é coerente com as teorias que estão sendo
consideradas sobre a autoria do livro, já que Diego Hurtado de Mendoza, a quem
a obra foi atribuída quase desde o início, também tratou do assunto em seus
sonetos e em seu poema “Em louvor do chifre”, no qual graciosamente afirmava
apoiar a figura do macho chifrudo, já que o chifre servia para ascender
socialmente:
Só ele é basta para curar da pobreza,
através dele vemos que muitos combalidos
vieram ascender a grande alteza.
Por fim, é preciso lembrar que entre os romances publicados
na época do florescimento do picaresco havia um publicado por um certo Juan de
Luna, e que não era outro senão a
Segunda Parte de Lazarilho de Tormes.
Não há dúvida sobre quem escreveu a obra. Por quê? Porque o autor renunciou ao
catolicismo e publicou em Paris, entre os protestantes, um texto que teria sido
mais do que punido pela Inquisição se tivesse caído nas suas mãos. Esta segunda
parte confirma o argumento — o “caso” — da primeira, pois boa parte desta
continuação centra-se nos desajustes entre Lázaro, sua esposa e o arcipreste,
com os três passando a dividir a cama ao mesmo tempo. Lázaro se encontra
repetidamente deslocado e até seu lugar de marido consentido é ocupado por
outro homem, um novo corno. Confirmado que os filhos da esposa não são dele,
mas do arcipreste, o protagonista é banido de Toledo e encontra novas
aventuras, novamente entre clérigos e frades, em orgias clandestinas e mulheres
que quase acabam cortando seu
passarinho, que é como o chamam.
Esta sequência literária sobre a vida de Lázaro, apesar de
ter sido traduzida para mais de uma dezena de línguas diferentes, foi
subvalorizada pela academia espanhola e não foi republicada em espanhol durante
quase quarenta anos; na verdade, as melhores avaliações do texto ficam por
conta de pesquisadores franceses, alemães e norte-americanos. A novela contém,
porém, humor e um nível de subversão não muito distante do da primeira parte.
Afinal, as duas partes denunciam as desigualdades sociais e as perversões
eclesiásticas das quais o corno consentimento celebrado em
Lazarilho de
Tormes nada mais é do que uma consequência.
Comentários