O Lazarilho de Tormes mais desconhecido

Por Francisco Gómez Martos


Lazarilho de Tormes. Capa da edição de Medina del Campo de 1554 (detalhe)


Lazarilho de Tormes é mais que um clássico da literatura, é um símbolo e uma referência cultural de Espanha. Sua história foi levada ao cinema e à televisão, ao rádio e aos podcasts, aos palcos de teatro, música e dança, incluindo o break dance, às pinturas de pintores como o próprio Goya, aparece em todos os níveis de ensino e foi publicado em livros adaptados para crianças e para quem está aprendendo espanhol como língua estrangeira. O que há na história de Lazarilho de Tormes que o tornou tão importante na cultura e na sociedade?
 
Possui, antes de tudo, uma qualidade e complexidade literária que faz com que especialistas na área continuem dia após dia falando sobre o livrinho em monografias científicas, revistas de pesquisa, teses de doutorado, seminários universitários e conferências acadêmicas ao redor do mundo. Em segundo lugar, tem a virtude de ser escrito com clareza, o que juntamente com a sua graça e frescura a tornam uma história que resiste à passagem do tempo. Por fim, o personagem do pícaro, encarnado naquele que sem recursos usa o seu engenho para ganhar o pão, é muito reconhecido na sociedade espanhola. Coincide com o que muitos vivenciaram durante o longo período de ditadura que mergulhou o país na miséria enquanto o restante do mundo passava por um contexto de modernização; e também coincide com o estereótipo do espanhol em grande parte do mundo, especialmente em países como França ou Alemanha, lugares aonde muitos espanhóis chegaram com pouco e se contentaram com trabalhos braçais, como fizeram os pícaros do passado. De certa forma, as sucessivas crises dos últimos anos e os seus consequentes fluxos migratórios fizeram com que esta situação se repetisse.
 
Agora, o que tudo isso tem a ver com o texto original de Lazarilho de Tormes? Provavelmente menos do que pensamos. A obra é muito publicada e muito discutida, mas, na realidade, pouco se sabe a seu respeito. Sem ir mais longe, não se conhece o autor, nem a data ou local exato de publicação. E há interpretações do texto para todos os gostos, desde quem vê uma história real por trás da ficção até quem acredita que a vida de Lazarilho nada mais é do que um símbolo da própria arte de escrever. Existem, no entanto, algumas certezas em meio a toda a imprecisão e variedades de leitura. O paradoxal aqui é que estas certezas são menos conhecidas e não se enquadram bem na imagem mais difundida de Lazarilho. Sua história é, basicamente, a de um homem que se orgulha porque sua esposa o trai. É por isso que ele escreve uma carta na qual conta as façanhas de sua vida, para justificar porque leva chifre com satisfação. Lázaro nasceu pobre numa família marginal, o seu pai era mouro e ladrão, a sua mãe era prostituta. Não restou nada melhor para ele do que servir os clérigos, os cegos e os nobres que não o tiraram da pobreza. Como não aceitar o casamento com uma mulher que dorme com um arcipreste, se em troca do acordo o desgraçado ganha comida e moradia? Essa é a principal questão que se coloca ao leitor de Lazarilho, pelo menos na sua versão original.
 
Essa versão original, porém, permaneceu oculta por muito tempo. Foi censurada pela Inquisição, que só permitiu, depois de muitos anos, uma versão que, por ter sido mutilada, ficou conhecida como Lazarilho castigado. Ficou expurgado, por exemplo, o capítulo em que Lázaro se encontrava com um frade que, além de “outras coisinhas” que não se querem contar, mantinha relações vergonhosas com diversas mulheres. Este Lazarilho castigado foi o que, décadas depois, começou a ser relacionado com outros textos pertencentes à chamada literatura picaresca. A relação do Lazarilho original com o gênero picaresco, portanto, não deve ser facilmente tomada como certa. Mais de meio século se passou entre eles, tempo suficiente para que os gostos literários e a corte dos reis, entre outras coisas, se transformassem. O autor de Lazarilho já teria morrido quando o seu texto, metamorfoseado pelo Santo Ofício, começou subitamente a ganhar vida numa corte, a de Madri, muito diferente daquela de Toledo que conhecera. Em suma, a novela que é conhecida como palavra de ordem da literatura picaresca não contém a palavra pícaro em lugar nenhum e pode muito bem ser considerado estranho a esse tipo literário.
 
É claro que durante todo esse tempo os chifres continuaram a ser exibidos nas ruas, especialmente as da corte real, como nos lembram os poetas da época. O argumento principal de Lazarilho manteve, portanto, a sua vigência e foi inteiramente coerente com a Espanha do Século de Ouro, que Quevedo chamou de “Século do Chifre”. Considere que, naquela época, arrastar chifres era uma profissão e tanto e havia a figura do “corno paciente”, perseguido pelas autoridades tal como no texto de Lazarilho. Então, Lázaro cometia um delito ao permitir o adultério de sua esposa? Sim, mas ele já conseguiu isso em sua carta, que constitui o texto da novela, para culpar o arcipreste e fazer-se figurar como vítima. Essa é a arte de escrever, de defender um argumento e convencer o leitor. De fato, para escapar às perseguições e continuar a usufruir dos benefícios derivados do consentimento, existia na Espanha um texto legal conhecido como “carta de perdão dos cornos”, que aparentemente não acarretava consequências para a mulher. Lazarilho de Tormes pode assim ser entendido como uma versão literária dessa fórmula jurídica.
 
Por outro lado, a imagem de um Lázaro que consente a infidelidade de sua esposa também é coerente com as teorias que estão sendo consideradas sobre a autoria do livro, já que Diego Hurtado de Mendoza, a quem a obra foi atribuída quase desde o início, também tratou do assunto em seus sonetos e em seu poema “Em louvor do chifre”, no qual graciosamente afirmava apoiar a figura do macho chifrudo, já que o chifre servia para ascender socialmente:
 
Só ele é basta para curar da pobreza,
através dele vemos que muitos combalidos
vieram ascender a grande alteza.
 
Por fim, é preciso lembrar que entre os romances publicados na época do florescimento do picaresco havia um publicado por um certo Juan de Luna, e que não era outro senão a Segunda Parte de Lazarilho de Tormes. Não há dúvida sobre quem escreveu a obra. Por quê? Porque o autor renunciou ao catolicismo e publicou em Paris, entre os protestantes, um texto que teria sido mais do que punido pela Inquisição se tivesse caído nas suas mãos. Esta segunda parte confirma o argumento — o “caso” — da primeira, pois boa parte desta continuação centra-se nos desajustes entre Lázaro, sua esposa e o arcipreste, com os três passando a dividir a cama ao mesmo tempo. Lázaro se encontra repetidamente deslocado e até seu lugar de marido consentido é ocupado por outro homem, um novo corno. Confirmado que os filhos da esposa não são dele, mas do arcipreste, o protagonista é banido de Toledo e encontra novas aventuras, novamente entre clérigos e frades, em orgias clandestinas e mulheres que quase acabam cortando seu passarinho, que é como o chamam.
 
Esta sequência literária sobre a vida de Lázaro, apesar de ter sido traduzida para mais de uma dezena de línguas diferentes, foi subvalorizada pela academia espanhola e não foi republicada em espanhol durante quase quarenta anos; na verdade, as melhores avaliações do texto ficam por conta de pesquisadores franceses, alemães e norte-americanos. A novela contém, porém, humor e um nível de subversão não muito distante do da primeira parte. Afinal, as duas partes denunciam as desigualdades sociais e as perversões eclesiásticas das quais o corno consentimento celebrado em Lazarilho de Tormes nada mais é do que uma consequência. 


* Este texto é a tradução de “El Lazarillo de Tormes más desconocido”, publicado aqui, em Jot Down.

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