Muito mais que borboletas amarelas: García Márquez jornalista

Por Vicente Alfonso

O escritor Gabriel García Márquez no escritório de Bogotá da agência cubana de notícias Prensa Latina, 1959. Foto: Hernán Díaz.



 
Em La invención de la crónica (1992), Susana Rotker observa que “mais da metade da obra escrita de José Martí e dois terços da de Rubén Darío são constituídos por textos publicados em jornais, porém a história literária tem centrado o interesse basicamente em suas poesias.” Precisão semelhante pode ser aplicada a Gabriel García Márquez: além de escrever e publicar dez romances, quatro volumes de contos, uma peça de teatro e um volume de memórias, Gabo desenvolveu uma prolífica e ousada carreira jornalística. Entre 1948 e 1999 publicou centenas de artigos, resenhas, crônicas e reportagens que, compilados em cinco volumes, totalizam 3.288 páginas. Esses cinco volumes contêm histórias verdadeiras que comovem e entusiasmam tanto quanto suas melhores ficções. Na passagem dos dez anos da morte do escritor Prêmio Nobel da Literatura de 1982, a celebridade esmagadora do seu romance maior acaba ofuscando o resto do seu legado.¹
 
Por onde começar a ler o jornalista García Márquez? Uma resposta óbvia seria por causa de suas obras mais conhecidas nesta área: Relato de um náufrago (1970), A aventura de Miguel Littín clandestino no Chile (1986) e Notícia de um sequestro (1996). Mas quando se trata de García Márquez, a resposta mais fácil raramente é a melhor. Entre as centenas de histórias que o mestre registrou, há muitas outras que também merecem destaque: uma é a reportagem sobre um deslizamento de terra que, em 12 de julho de 1954, soterrou sessenta pessoas em Medellín (“Balanço e reconstituição da catástrofe de Antióquia”, El Espectador, agosto de 1954). Outra é a extensa crônica que escreveu em Roma, no ano seguinte, sobre o assassinato nunca resolvido de uma jovem italiana chamada Wilma Montesi (“O escândalo do século”, El Espectador, setembro de 1955). E mais um, o depoimento detalhado de um sobrevivente da explosão da bomba atômica em Hiroshima, o padre jesuíta Pedro Arrupe (“Fala uma testemunha da primeira explosão atômica”, El Espectador, maio de 1955).
 
García Márquez exerceu o jornalismo durante seis décadas, numa carreira que começou quando foi contratado como aprendiz para a redação do jornal El Universal de Cartagena, em 20 de maio de 1948. Não deve ter sido um trabalho simples, pois desde seu primeiro artigo, publicado aos vinte e um anos, enfrentou a censura. Dias antes, em 9 de abril, Gabo havia testemunhado o chamado Bogotazo: Jorge Eliécer Gaitán, candidato do Partido Liberal à presidência, foi morto a tiros, o que gerou uma onda de protestos e tumultos que se espalharam por outras partes do território colombiano. Começava a era que ficou conhecida como La Violencia. O primeiro artigo de García Márquez consistiu numa crítica ao toque de recolher. Como recorda o romancista nas suas memórias, o seu então chefe, Clemente Manuel Zabala, teve que reescrever o texto para que se autorizasse a sua publicação, porque “desde 9 de abril havia um censor do governo em todos os jornais do país que se instalava numa mesa da redação a partir das seis da tarde como se estivesse na própria casa.” Durante os sete anos seguintes — sob os governos de Mariano Ospina Pérez, Laureano Gómez, Roberto Urdaneta Arbeláez e Gustavo Rojas Pinilla — a censura oficial contra a imprensa seria mantida.
 
O próprio autor lembrou dessa época desta forma: “fiquei quase dois anos na redação, publicando até dois artigos por dia que conseguia vencer a censura, com e sem assinatura, e prestes a me casar com a sobrinha do censor.” Um exemplo desses artigos que venceram a censura é aquele que começa com a frase “Reto, empinado e magnífico caiu Braulio Henao Blanco sob o flamejante sopro da violência” (El Universal de Cartagena, junho de 1948). Trata-se de uma reivindicação pela morte de um líder liberal ferido por um tiro disparado por um policial.
 
Também não foi fácil exercer a profissão sete anos depois, em 1955, quando publicou no El Espectador uma reportagem baseada no depoimento do náufrago Luis Alejandro Velasco, que sobreviveu onze dias no mar após o naufrágio de um navio da marinha colombiana. O ponto central dessa reportagem foi a denúncia de práticas de contrabando em embarcações oficiais, o que causou a indignação do governo e uma enxurrada de ameaças contra o jornalista que a direção do jornal decidiu mandá-lo para o exterior. Outro momento difícil deve ter sido os meses de 1961, quando Gabo era correspondente da Prensa Latina em Nova York: há depoimentos de que, em estado de alerta pelas ameaças que recebia o tempo todo, o jornalista escrevia com uma barra de ferro ao lado da mesa. E o que dizer quando uma bomba explodiu na redação de Alternativa — revista que García Márquez fundou nos anos setenta junto com o sociólogo Orlando Fals Borda — num ataque que transformou em sucata carbonizada as máquinas de escrever?
 
Em todo caso, também graças ao jornalismo, García Márquez foi uma testemunha privilegiada do século XX: o referido Bogotazo foi o primeiro de muitos momentos-chave que teriam que haveria de registrar em primeira mão. O seu legado contém tanto a crônica resultante de uma visita a Castel Gandolfo, onde chegou no rasto de um ataque de soluços que afetava o Papa Pio XII (“S. S. sai de férias”, El Espectador, agosto de 1955), quanto as extensas reportagens que expõem as luzes e sombras da vida no bloco socialista (“90 dias na cortina de ferro”, série publicada na revista Cromos entre junho e agosto de 1959).
 
Os seus artigos também relatam algumas das suas muitas iniciativas humanitárias e diplomáticas: desde os seus esforços para libertar “dezenas de presos políticos” em diferentes países latino-americanos, até à sua participação nos processos de pacificação na Colômbia. Nessa vertente há passagens que bem poderiam fazer parte de um romance de espionagem. Uma delas ocorreu durante a década de noventa, quando o autor de Cem anos de solidão serviu de intermediário entre Fidel Castro e Bill Clinton. Aproveitando que em abril de 1994 Gabo visitaria a Universidade de Princeton para ministrar uma palestra, o escritor levava uma nota confidencial do presidente cubano onde informava a Clinton que seu governo havia descoberto uma conspiração terrorista que poderia afetar não só os Estados Unidos e Cuba, mas também outras nações. Por razões óbvias, a mensagem precisou ser entregue em mãos ao inquilino da Casa Branca (“A missão secreta de García Márquez”, publicada no El País de 5 de junho de 2005).
 
É necessário reconhecer que o auge que o jornalismo narrativo e a crônica alcançaram hoje se deve em grande parte às iniciativas do próprio García Márquez. Desde setembro de 1951, ano em que fundou em Cartagena com um grupo de amigos o jornal Comprimido (assim chamado porque oferecia notícias condensadas e porque era minúsculo), até quase seis décadas depois, García Márquez embarcou em numerosos projetos interessados na informação: jornais, revistas e até telejornais.
 
A Fundação para o Novo Jornalismo Latino-Americano (hoje Fundação Gabo) merece menção especial. Desde a sua criação em 1995 até à data, a instituição tem promovido inúmeros cursos e seminários jornalísticos no âmbito da língua espanhola, ao mesmo tempo que patrocinou uma grande coleção de livros, manuais e podcasts em torno daquilo que García Márquez chamava de “o melhor trabalho do mundo.” 


Notas da tradução:
1 Os cinco volumes referidos estão traduzidos e publicados no Brasil pela editora Record. São eles: Textos caribenhos (1948-1952); Textos andinos (1954-1955); Da Europa e da América (1955-1960); Reportagens políticas (1974-1995); e Crônicas (1961-1984). Clicando sobre os títulos, você tem a possibilidade de adquirir os livros. 



* Este texto é a tradução livre de “Mucho más que mariposas amarillas: García Márquez periodista”, publicado aqui, em Letras Libres.

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