Por Henrique Ruy S. Santos
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Monique Malcher. Foto: Arquivo CBL. |
Monique Malcher, nascida em 1988 na
cidade de Santarém, no estado do Pará, é escritora e artista plástica, com
formação nas áreas de Jornalismo e Antropologia. É uma profícua autora de
zines,
gênero que, por sua inerente marginalidade em relação ao mercado editorial
mainstream,
ainda encontra pouca repercussão entre a crítica dita especializada. A sua
estreia no formato mais tradicional e mais conhecido do livro se deu com
Flor
de gume, em 2020. Trata-se de uma coletânea de contos que tem chamado cada
vez mais atenção tanto da crítica quanto do público geral, ambos compelidos, em
parte, pela contemplação do livro com o Prêmio Jabuti em 2021, mas também pelo
esforço braçal e miúdo de circulação da obra entre grupos de leitura de
mulheres e grupos de estudo.
A escrita penetrante de
Flor de gume,
prenunciada desde o próprio título, não é avessa à narração do acontecimento
cotidiano, muitas vezes marcado pela violência urbana (casos em que o tom do
evento narrado adquire dimensão social relevante, flertando com a narrativa-denúncia,
como no conto “Um sorriso que atravessa o asfalto”) ou pela perda íntima (“As
marés guiadas pela Lua”, entre outros). Mas é na escrita reflexiva, não fixada
em situações narrativas bem delimitadas, que o livro encontra sua maior força.
Nessa seara, Monique Malcher dá prioridade à escrita introspectiva e
metafórica, sem abandonar a fisicalidade dos rios, das árvores, das ruas e dos
corpos.
A obra é dividida em três partes,
que apresentam uma certa coesão temática e até mesmo a recorrência de
personagens e/ ou narradoras. A primeira parte, intitulada “Os nomes escritos
nas árvores, os umbigos enterrados no chão”, apresenta protagonistas, na
maioria dos casos, infantis, relatando experiências formadoras conectadas
principalmente às relações familiares. Aqui já avulta a figura do pai
violentador como um dos eixos principais do livro, ao redor do qual as
narradoras se movimentarão ora em atração, ora em repulsa, até o que parece ser
uma espécie de sublimação dos traumas vividos. Embora essa problemática figura
paterna seja uma presença marcante já nessa primeira parte, de semelhante
importância para a fatura do livro nesse momento inicial são as figuras
femininas, notadamente as mães e as avós. Os rios, os igarapés e os espaços
afetivos e físicos da cidade paraense de Santarém são evocados também com
destaque.
Na segunda parte da obra, “Quando os
lábios roxos gritam em caixas de leis herméticas”, mantém-se certos aspectos
temáticos da primeira parte, ao passo que se aprofundam as relações entre as
narradoras e suas avós. Dos treze contos que constituem esse segundo momento do
livro, oito contam com a presença das avós, focalizando, muitas vezes, o
sentimento de perda e luto, e estreitando os laços de cumplicidade entre
mulheres que compartilham experiências comuns (as narradoras e suas mães, as
narradoras e suas avós etc.).
“O reflorestar do corpo, o abandonar
das pragas”, terceira parte do livro, merece destaque pelo encaminhamento oferecido
pela autora aos conflitos e traumas narrados nas outras duas partes. Tem início
aqui um certo processo de cura, que busca, pela ressignificação de traumas
passados das narradoras, novas formas de conduzir a vida e de se relacionar,
seja com outras pessoas, seja com outros espaços. Nesse processo, sob o signo
do renascimento e do retorno (um retorno disruptivo, deve-se dizer), o livro apropria-se
de uma certa linguagem da abjeção que põe em evidência (na escuridão, apenas
aparentemente de forma contraditória) corpos tidos como monstruosos, como uma forma
de enfatizar um “outro lado” da constituição de normalidade dos sujeitos. Vale
a pena investigar de que forma e por quais elementos de escrita isso se dá e
quais os impactos interpretativos que esse processo pode ter.
O primeiro conto dessa parte de Flor
de gume, “Rosa vermelha”, põe o corpo da narradora em foco a partir de um
discurso que incide ora sobre uma fisicalidade literal, ora sobre a força da
palavra metafórica, apta a devassar o seu mundo interior sob o manto de uma
concretude apenas aparente.
“Coloco o dedo mindinho no ouvido
direito, quero que pare essa sensação de preenchimento com vazio. Passei os
últimos dois dias enfiando tampas de caneta, pontas de lápis, perna de óculos,
tudo nesse ouvido maldito que está parando de funcionar bem. Engulo saliva para
ver se volta ao normal, mas sinto que tem um demônio roendo minha audição por
dentro, e tem tudo para ser uma bênção, pode ser, e eu não esteja aceitando.” (p.
106).
O desejo de perfuração do próprio
corpo instala-se de forma ambígua, motivado pela tentativa de correção da
audição, mas também pela vontade de interromper uma “sensação de preenchimento
com vazio”. Todavia, aquilo que de início é apresentado como algo a ser expulso
do próprio corpo passa, ao final do trecho citado, a ser vislumbrado sob a
possibilidade de ser, na verdade uma bênção. Instaura-se, dessa forma, um
cenário em que o corpo se torna arena de conflitos internos e no qual a
decomposição física delimita uma certa linguagem da abjeção que, ao contrário
do que se espera, é abraçada como possibilidade de libertação, e não de
deterioração:
“Pensei em colocar algo que perfure,
o furador de páginas com a ponta em forma de gota de madeira. É de um aço muito
higiênico, talvez estoure essa bolha interna que me agonia a audição
mequetrefe. Iria ser um prazer que estourasse feito as nascidas que tinha
quando comecei a morar sozinha, e jorrasse aquele pus tão amarelo, achava lindo
espremer a perna e sair aquilo em jato, misturado ao sangue. Era uma parte
podre do meu corpo, e a podridão me faz parte, me diz respeito, porque estava
lá quando tudo foi concebido.” (p. 106).
A narradora prossegue afirmando que
“os furúnculos foram os tapas que recebi, foram os puxões fortes de cabelo para
sentar direito, para ser uma mulher feminina, casta” (p. 106). Ela cita as
punições sofridas por não atender a determinadas práticas regulatórias de
gênero, fugindo do que se espera de uma mulher “feminina” e casta, situando-se
no “domínio de corpos impensáveis, abjetos, inabitáveis”, para usar as palavras
da filósofa estadunidense Judith Butler, em seu Corpos que importam. Trata-se
da impossibilidade, imposta de antemão por uma sociedade altamente reguladora,
de constituir-se como um sujeito viável.
O que parece ocorrer, portanto,
quando a narradora abraça sua podridão como forma de libertação pessoal é um
certo entendimento proposto em Flor de gume de que é possível transgredir
determinadas fronteiras regulatórias a partir de um certo “lugar-de-fora”,
inicialmente imposto por determinantes exteriores, mas em seguida abraçado como
forma de libertação.
Esses espaços exteriores são
invocados na narrativa de Monique Malcher a partir de signos que remontam a uma
certa negatividade. Seja a podridão física, a busca pela perda da audição (“Fique
surdo para me ouvir”, diz a narradora do conto “Os territórios que os pés
desenharam”) ou o encontro com as horas noturnas e a escuridão, esses signos
invocam o avesso de uma normalidade opressora. Nesse sentido, a alusão aos
ambientes noturnos e a tudo aquilo que os circunda, assim como a já citada
presença do abjeto, destaca-se como uma estratégia textual que enfatiza uma
oportunidade de renascimento, como se atesta no conto “A rua abraça a Lua em
eclipse”: “Agora observe o sangue que desce grosso, aguenta o cheiro da minha
verdade, nojenta, dizem de mim. [...] Acredito nessa maldição que eu sou, que
linda maldição! Só quem permanece em mim vai dançar na lua que se aproxima.” (p.
119).
A Lua, contrariando certos clichês
narrativos e líricos, é a metáfora preferida para indicar o renascimento da
narradora, o que ressalta a preferência pela escuridão como ambiente não só de
fuga, mas de uma moradia que se tenta construir: “Meu território é onde os pés
tocam, aqui também tinha que ser minha casa” (p. 146), afirma a narradora de “O
território que os pés desenharam”. Nesse conto, todo ambientado em uma noite
“em que os monstros tomam seus drinques sofisticados” (p. 143), realçam-se os
tons de verde que concatenam a narrativa ao projeto gráfico do próprio livro,
em uma alternativa estética que sinaliza a interação entre a natureza e os
embates psicológicos vivenciados pela narradora.
“São muitos os tons de verde, são
tantos como tantas foram as esperanças na caminhada até esse ponto, ainda
perdido, mas com mais questionamentos. Antes era uma certeza que era eu a dona
das respostas, sem perceber que são as dúvidas as salvadoras. Verde-claro,
cintilante, néon, opaco. A árvore que se apresentou para mim naquela noite
tinha todos os verdes nas folhas, era um degradê que sorria quando o vento
batia, e riam as folhas miúdas.” (p. 144).
É, como dizíamos, sob os signos da
noite e da escuridão, sinalizando ambos o exterior das fronteiras normativas
das condutas de sexo e gênero, que se dá o processo de renascimento das
narradoras. Nesse âmbito, Monique Malcher enceta uma espécie de “educação pela
noite”, como afirmou Antonio Candido sobre a produção em prosa de Álvares de
Azevedo. Todavia, se as aparições satânicas eram as figuras preceptoras da bildung
dos narradores de Noite na taverna e Macário, em Flor de gume,
as figuras das mães, das avós e de outras mulheres é que são os elementos
inspiracionais: “acredito em mim, acredito nas mulheres, pobres, fodidas,
trans, travestis, pretas, indígenas, sobreviventes, ribeirinhas. Acredito na
minha mãe, tias, avós, amigas” (p. 119).
Além disso, se há algo de romântico
nessa fuga para a noite, é preciso lembrar que ela não se dá como uma tentativa
de escape de um tédio byroniano típico da experiência citadina dos bardos
românticos do século XIX. A escuridão representa a zona para onde são
empurrados os corpos inviáveis, os não sujeitos, “as pessoas estranhas, que
perderam o caminho que alguém quis para elas” (p. 143), mas, ao mesmo tempo, é
o lugar onde os corpos “monstruosos”, isto é, aqueles que escapam a uma
normalização violenta e compulsória das identidades (e aqui o pensamento de
Butler é referência incontornável), podem se ver livres para dançar e amar no
escuro — “É dançando no escuro que a vida se alimenta” (p. 143). A claridade,
por outro lado, como símbolo de uma normalidade violenta, é por onde anda o
homem comum, e o homem comum “espanca, estupra, mata e diz que ama” p. 151).
É, também, o ponto exterior à
normalização compulsória das identidades a partir do qual é possível realizar
um retorno disruptivo, capaz de abalar estruturas de socialização:
“Quem queimou tudo, a si mesma,
mesmo sendo queimada e cuspiu o fogo nos carros pratas do sinal, volta. Sempre
volta.” (p. 119);
“Monstras, animem-se. As que foram
queimadas, seja por fogo ou por homem comum, voltarão. Quem foi queimada
renascerá das cinzas. Lembre bem, homem comum! Só as mulheres corcundas de
carregarem tanta dor podem voltar, e voltam, todos os dias.” (p. 151).
Flor de gume, de Monique
Malcher, considerando os aspectos analisados, é uma obra que merece, e
certamente receberá, mais atenção da crítica. A forma como tematiza a
violência, transitando entre a aparente pequenez das experiências
infantojuvenis até o escopo aparentemente mais abrangente das mazelas sociais
que convertem vidas em estatísticas, segue um caminho alternativo à crueza de muito
da literatura neorrealista em voga (independentemente de suas qualidades e
defeitos). O caminho seguido é o do intimismo, que, por si só, também não seria
capaz de injetar nenhum fôlego de originalidade a sua prosa, não fosse um
tratamento que o soubesse aproveitar de forma altamente lírica, flertando com a
prosa poética.
Ressaltam-se, assim, os liames
estéticos que conectam uma prosa imagética à concepção física e editorial do
livro, fazendo emergir o talento da autora também como artista plástica, sem
arroubos desnecessários.
No nível temático, o já mencionado
tópico da violência evidencia como se dá a construção de não-sujeitos, de
corpos tidos como monstruosos e, portanto, inviáveis do ponto de vista de uma
regulação física altamente agressiva. Não obstante esse processo, o livro,
principalmente em sua terceira parte, estipula uma possibilidade de
renascimento para as narradoras, um retorno disruptivo que põe em questão, a
partir do exterior, a normatização de corpos e identidades. Tal possibilidade
se articula, no nível textual, a partir de uma linguagem que expõe a abjeção
não pela ousadia formal, mas pelo tom impactante no uso da primeira pessoa,
expondo a “podridão” física e emocional de seus personagens, além do apego
imagético às tonalidades escuras e aos ambientes noturnos. Trata-se de um belo
expoente da nossa literatura contemporânea de caráter intimista.
______
Flor de gume
Monique Malcher
Ferina, 2020
232p.
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Referências
CANDIDO, Antonio. A educação pela
noite. In:
A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo, 1989, p.
10-23.
BUTLER, Judith.
Corpos que importam:
os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: N-1 edições, 2019.
MALCHER, Monique.
Flor de gume.
São Paulo: Ferina, 2020.
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