Por Sérgio Linard
“A letargia química que invadia
todo o seu corpo de cão, com as tripas inchadas de comida do praznic,
iria reduzir pouco a pouco sua respiração, emudeceria seus latidos e sua
torrente de sangue desembocaria em um pântano eterno”1.
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Claudia Ulloa Donoso. Foto: GEC |
O animal que dá título ao texto de
estreia da autora peruana Claudia Ulloa Donoso no gênero romanesco, ainda que
não pareça a partir da citação acima, é, certamente, um dos seres vivos que
menos passa por sofrimentos dentro dessa narrativa. Matei um cachorro na
Romênia é uma história que está dividida em quatro partes, sendo a primeira
delas conduzida por um cachorro, e caracteriza-se como uma espécie de road
book, porque intenta apresentar a história de uma professora na Noruega,
acompanhando um ex-aluno em uma viagem à Romênia para que, conforme o convite
inicial, esteja ao lado dele durante o praznic do pai daquele homem.
A órbita lúgubre dos aspectos
extra e intratextuais do romance fica mais evidente ainda quando se constata
que praznic seria uma espécie de “celebração” após decorrido um
determinado período da morte de algum indivíduo, neste caso, do genitor de
Mihai. Em uma primeira mirada, sem que nos adentremos nos meandros da história
lida, pode-se desconfiar de que essa seria uma comum jornada de
autoconhecimento, de reconhecimento de outros e de descobertas somente
possíveis quando se coloca na vulnerável posição de mudança de hábitos. No
entanto, não é isso o que a leitura confirma. A anunciada morte lida desde a
capa do texto não é utilizada somente como forma de chamar atenção de algum
leitor. Essa morte está ali, na verdade, porque ela será sombra e luz durante
tudo aquilo que se lerá; do início ao fim. Explico.
É comum que façamos uma relação
direta entre morte, sombra e/ ou obscuridade, isso porque temos a prática de
compreender finais como momentos em que as luzes cessam e o escuro faz-se
dominante. Claudia Donoso não questiona ou se propõe a subverter essa perspectiva.
Contrário a isso. A luz gerada pela morte na condução da história está
especialmente na leitura que se faz dela, posto que, após a percepção de que
será a ausência de vida o fio condutor do que se lê, pode-se alcançar maior luz
sobre as escolhas e os caminhos — literais ou não — pelos quais história é
desenvolvida. Esse elemento, portanto, comumente obscuro, faz-se como que
ambíguo, porque mostra-se passível de encerrar dores de personagens envolvidas
na trama, lançando, ao mesmo tempo, sombras e luzes. Sombras pela própria
natureza temática e luz pela possibilidade de se enxergar nessa escuridão
alguma silhueta que, se não for de esperança, pelo menos de alívio momentâneo
será.
O que serve como gatilho para o
início da escrita do romance que se tem em mãos é o acontecimento de quando, em
uma sessão de psicoterapia, a protagonista da história recebe de seu analista e
pecha de “mata-cachorra”. No país de origem da paciente, usa-se, conforme dito
por ela mesma, a expressão “mata-cachorro” para se falar de “meninos de rua, os
revoltados, os problemáticos”. Como medida de confrontamento, o terapeuta não
mede palavras e a classifica como um destes meninos; ela, em resposta,
aceitando a adjetivação, faz somente a acomodação de flexão de gênero na
palavra. A partir disso, a história dessa mulher, de seu ex-aluno e do cachorro
a ser morto na Romênia começa a ganhar forma.
Quando ministrava aulas de
norueguês a Mihai, a professora, embora alimentasse uma protoatração pelo
estudante, conseguiu controlar impulsos e desejos para que não houvesse
quaisquer rompimentos éticos entre os dois. O máximo que se construiu, durante
aquele período, foi uma relação amistosa, sem indícios explícitos de que
ganhariam diferentes proporções. Então, a docente desenvolve um profundo estado
depressivo que a faz afastar-se da sala de aula. Com vistas a ajudá-la ou
motivá-la em um processo de recuperação, o aluno — cabe pontuar que ambos são
adultos em todo o tempo da narrativa —, decide convidá-la para uma viagem ao
seu país natal. Por parte da professora, não se percebe resistências ao chamado,
posto que prontamente aceita o convite; inclusive, as entrelinhas de seus
enredos psicológicos permitem entrever que há, agora, a possibilidade de se
confirmar a reciprocidade das atrações que ambos pareciam nutrir um pelo outro.
Contudo, Mihai transforma-se em Ovidiu.
A fim de construir perspectivas
diferentes para a mesma história, ou, ainda, para simular a condução da
narrativa como se fosse a condução de uma tocha olímpica — mão a mão —, é comum
que se recorra a este expediente de alternância de narradores, de personagens
ou de nomes. Na literatura contemporânea, porém, por vezes, tem-se percebido
uma troca de nomes de condutores da narrativa, mas que, efetivamente, possuem
entre si a mesma dicção, revelando, infortunadamente, pouco domínio autoral
diante da técnica escolhida. Isso não ocorre em Matei um cachorro na Romênia.
A história que lemos é narrada
pela professora, por Ovidiu e por um cachorro, os três com importância de vozes
equiparadas e dicções muito próprias de seus lugares sociais e de suas posições
dentro da história. Surpreende, inclusive, a constatação de que o
cachorro-narrador seja construído de modo que consegue, desde as primeiras
linhas, garantir o pacto leitor-obra, quanto à concordância e credibilidade
daquilo que se lê, sem recorrer, necessariamente, a um realismo mágico:
“Durante a agonia, nós, cães, recuperamos a linguagem”.
A muito bem estruturada
alternância de vozes narrativas garante ao romance, além das múltiplas
possibilidades de perspectivas, as condições necessárias para que os processos
de mutações vividos pelos personagens sejam clarificados tanto pelo ponto de
vista de quem está sofrendo a mudança como pelo olhar daqueles que, em certos
casos, são somente observadores. Ademais, isso ajuda na verticalização de
sentidos sobre o texto porque mostra como o mesmo fato narrado pode atingir
diferentemente a história a depender de quem a narra.
Quando Mihai, por exemplo, pede
para ser nomeado de Ovidiu, a justificativa dada é para que ele seja chamado,
na Romênia, pelo nome com o qual seus familiares a ele se dirigem. No entanto,
no decorrer da leitura, vê-se que, efetivamente, este novo nome traz também um
novo-velho homem que, agora, comporta-se como o típico sujeito que recorre às
vantagens sociais geradas pelos machismos para afirmar sua masculinidade.
Enquanto Mihai, na Noruega, buscou formas de ajudar a professora a sair do
estado depressivo em que se encontrava; Ovidiu, na Romênia, afirma, reiteradas
vezes, que aquela situação dela é gerada pela vontade de dopar-se, pela
ausência de trabalho, pela ausência de credo ou algo similar a isso. Mihai, que
antes poderia ser visto como um homem gentil e compreensivo, agora é visto e
narrado, por ela, como alguém desprezível e abusivo. Essa descoberta,
porém, só foi possível ocorrer no caminho da convivência que ambos trilharam. A
formação de personagens que, ao mudarem de nome e de país, mudam de
personalidade é muito positiva para se pensar a integralidade do romance e
acaba por confirmar a qualidade estética da obra literária em tela.
“[...] é bom para ela lembrar que para
mim isso aqui não são férias”
Após um dos vários
desentendimentos — muitas vezes envoltos por largos silêncios por parte da
professora — em que os protagonistas se envolvem, Ovidiu emite esse pensamento.
A partir disso, a narrativa consegue, de forma bastante pertinente, fugir do
maniqueísmo comum que tem sido visto em textos da atualidade: o de colocar
personagens em engessados polos de bem versus mal, excluindo as
subjetividades possíveis deles. A leitura de Matei um cachorro na Romênia
parece apontar justamente para a necessidade de se olhar bem para cada
uma das perspectivas da história e, por isso, a necessidade de se alternarem,
praticamente a cada capítulo, as vozes dos narradores. Uma vez que ele tenha
viajado para encabeçar rituais fúnebres de seu amado pai, não é de se esperar
que haja a mesma disponibilidade de tempo para as demandas que ela
apresenta. A professora, por seu turno,
não compreendendo a dimensão que o praznic tem para a cultura de Ovidiu,
assim como motivada pela doença que a assola, tem dificuldades de perceber o
caos e a pressão mental em que o homem se encontra. Não há certos ou errados,
aparentemente. Há perspectivas distintas e muito bem construídas que elevam
fartamente a qualidade da história.
Uma ressalva sobre o romance,
porém, precisa ser feita: a de que a figura canina acaba sendo subaproveitada.
Veja-se. O cão é responsável por narrar o capítulo de abertura da obra, está no
título e é parte indispensável para o encerramento, no entanto, a história
principal acaba fazendo com que aquele ótimo narrador inicial acabe se tornando
secundário, porque há muitos acontecimentos entre Ovidiu e sua professora para
serem narrados. Essa parece ser uma estratégia para criar e alimentar um
suspense sobre como e porque ocorrerá a morte anunciada desde a capa da obra,
mas essa escolha poderia ter sido reduzida em prol de uma melhor exploração desse
personagem.
Ao cabo, Matei um cachorro na
Romênia é uma excelente obra que merece detidas leitura e atenção. Trata-se
de um caso que nos ajuda a pensar a importância de se ter perspectivas para que
as descobertas e os caminhos se materializem. Finda a descoberta dessa obra, parece-nos
pertinente concordar com a professora construída por Claudia Ulloa Donoso: “A
descoberta de algo provoca a sensação de estarmos levitando. Ou talvez já
estejamos levitando, porque para entender alguma coisa é preciso ter distância
e perspectivas.” E esta é uma história sobre perspectivas. Vale a
pena tê-las.
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Matei um cachorro na Romênia
Claudia Ulloa Donoso
Bruno Cobalchini Mattos
Mundaréu, 2024
360 p.
Notas:
1 Todas as citações da obra foram retiradas da edição brasileira, publicada pela editora Mundaréu, com tradução de Bruno Cobalchini Mattos.
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