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Jorge Semprún. Foto: Frederic Maligne. |
A vida de Jorge Semprún é uma
espécie de compêndio do que foi o século XX, ou melhor, do que a esquerda quis
ser no século XX, das suas idas e vindas, dos seus projetos e fracassos. Mas
nunca como ideia, ou não apenas como ideia, e sim como vida. Semprún encarna a
história da esquerda, torna-a viva, real. Quando se trata de sua trajetória não
importam tanto o laboratório de ideias ou o peso das organizações que, sim,
também importam: o que vem à tona é a peripécia. A ação.
Ele tem cerca de vinte anos quando
participa da Resistência contra os nazistas na França, vai parar em Buchenwald
e consegue sobreviver ao pesadelo do campo de concentração. Depois é Federico
Sánchez, o revolucionário profissional que arrisca a vida na Espanha de Franco
para combater a ditadura, aquele que organiza as células comunistas, que
trabalha na clandestinidade, sempre à beira de ser apanhado pela polícia e ser jogado
na prisão, e com pouco mais de trinta anos já faz parte do Comitê Central do
Partido Comunista. É o dirigente que acaba expulso dessa formação com pouco
mais de quarenta anos por questionar a linha imposta pelos seus dirigentes.
A partir desse momento, é também o
escritor, o que toma a palavra para continuar por outro caminho a exploração
das margens de liberdade que ainda podem ser conquistadas quando as coisas
correm mal. É o intelectual que agarra a bandeira da Europa para continuar a
batalha. E é ele quem se torna ministro de um governo socialista por volta dos
65 anos, para terminar de montar uma biografia que primeiro palpitou nas ruas,
mas só poderia acabar nos gabinetes, da barricada e da revolta à gestão: no fim
de contas o que é preciso é fazer as coisas, e para fazê-las é preciso ocupar o
poder.
Há muitas histórias na história de
Semprún, e todas elas são marcadas pela “ilusão lírica”, para usar uma
expressão que lhe serviu num ensaio de 1992 — incluído em
Pensar na Europa
— para definir o grande movimento que Lênin desencadeou depois de tomar o poder
com os bolcheviques em 1917. Sua vitória, diz ele, “provocou e propagou, não
apenas por toda a velha Rússia czarista, mas por todo o mundo, o mais
formidável movimento social, a mais vertiginosa 'ilusão lírica' de história
moderna. Observação curiosa, mas também enormemente precisa: aquele projeto que
se cansou de dizer a si mesmo que era viável porque obedecia aos dados da
ciência — as suas referências teóricas vinham do materialismo científico de
Marx e Engels — tinha muito de voluntarioso e nele se implicou um exército de
idealistas que queriam mudar o mundo. No final do século XX, Semprún ousava
dizer que tudo o que os comunistas fizeram fora um erro lamentável. Era preciso
ter a coragem de assumir, explicou, que aquela vitória dos bolcheviques em 1917
foi “um desastre para a classe trabalhadora mundial”, e era também urgente pôr
fim a uma ideia inerente ao marxismo, de que havia “uma classe universal cuja
missão é mudar o mundo.”
Semprún esteve mergulhado até os
olhos no comunismo durante os primeiros vinte anos da sua vida adulta, e os que
se seguiram foram em grande parte um exercício de reconstituição do caminho que
percorreu durante aquele período de entusiasmo revolucionário. Refazer o
caminho, desvendar o cerne dos afetos, desmontar os andaimes teóricos. O que se
encontra sobretudo nas conferências que reuniu em
Pensar na Europa, o
último dos que publicou, os fragmentos de um longo processo de reconstrução, de
voltar a olhar o mundo e de rever o passado, de voltar a pensá-lo a partir da
sua vocação inalienável pela liberdade e pela justiça. Num dos seus discursos
afirmou que se tivesse que se definir, diria que “o que sou antes de tudo, ou
acima de tudo, é um ex-deportado de Buchenwald”.
O pano de fundo, o queestá um
pouco antes de tudo começar na vida de Semprún, é a década de 1930, em que da
esquerda e da direita se enfrentam num questionamento radical sobre o que
significa a democracia liberal. O que o escritor abraçaria um pouco mais tarde,
quando era uma figura de pouco mais de dezoito anos, foi a luta antifascista, e
com ela a epopeia de parar a máquina que Hitler tinha posto em movimento e que
levou ao assassinato mais de seis milhões de judeus. Ele esteve em Buchenwald,
presenciou o que ali acontecia, ouviu pelos alto-falantes “a voz profunda e
harmoniosa de Zarah Leander” cantando aquelas canções de amor que os oficiais
SS tanto gostavam — “belo tempo que tanto amávamos”, dizia uma das letras —,foram
seus olhos que viram quanta verdade continham aqueles versos de Paul Celan:
"...e subirás como fumaça no ar/ e terás uma tumba nas nuvens…” Semprún
conheceu em primeira mão “o que grita nas entranhas da besta totalitária”, da
besta totalitária nazista. Em algum momento, já não pôde mais ignorar que outro
monstro também existia no século XX, o gulag.
Os dois sistemas eram igualmente
totalitários e se assentavam em premissas idênticas: desprezo pela pluralidade,
partido único, rigorismo moral, culto ao patrão, ódio à dissidência etc. “O
nazismo”, escreveu Semprún em 1999, no limiar do novo século, “é forjado em
torno de um conceito — mítico, aliás — de limitação, exclusão, parcialidade
arrogante: um conceito redutor, o de ‘raça’. Por sua vez, o comunismo é
concebido como um movimento de emancipação humana universal.” Semprún também
acreditava nisso, nessa “vertiginosa ilusão lírica”.
“Não há nada tão à esquerda como a
liberdade”, continuou a defender quando o século XX já desaparecia, após a
queda do Muro de Berlim e quando a União Soviética entrou em colapso. O homem
que organizara com mão de ferro os comunistas espanhóis que lutaram contra a
ditadura, e que teceu com eles uma rede de afeto e solidariedade mútua mesmo
sob as diretrizes e o peso esmagador do partido, concebia então a
democratização da Europa como “a única revolução permanente” pela qual valia a
pena lutar.
Esse foi o destino da parte final
da sua longa jornada. Desde meados dos anos sessenta empreendeu aquela tarefa
complicada e dolorosa: a de “livrar-se de si mesmo”, a de destruir aquela vertiginosa
ilusão que escondia aos comunistas que de nada serviria a sua superioridade
moral se manchassem as mãos com sangue e com puro e duro autoritarismo, e de
uniformidade e obediência cega e falta de espírito crítico. Então entrou o
século XXI, e quem sabe o que resta de tudo isso agora. Mas não há nada de novo
sob o sol, por isso as lições de Jorge Semprún certamente ainda são úteis.
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